a paideia grega revisitada

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A PAIDEIA GREGA REVISITADA MARIA DE JESUS FONSECA * É comum considerar-se que há dois períodos na história da educação grega: o período antigo, que compreende a educação homérica e a educação antiga de Esparta e Atenas, e o novo período, o da educação no "século de Péricles", correspondendo este ao período áureo da cultura grega, o qual se inicia com os Sofistas e se desenvolverá com os filósofos/educadores ou educadores/filósofos gregos Sócrates, Platão e Aristóteles. Depois, seguir- se-á o período helenístico, já de decadência, em que a Grécia é conquistada, primeiro pelos macedónios e depois pelos romanos. Atenas perde, então, a sua posição de centro cultural do mundo em favor, sobretudo, de Alexandria. E, se é certo que, apesar de vencida, a Grécia triunfou pela sua cultura, que se difundiu e universalizou - Graecia canta ferum victorem cepit et artes intulit agresti Latio (Horácio) -, não é menos verdade que o que ganhou em universalização o perdeu em originalidade e alento criador. Somos herdeiros dos gregos e fiéis depositários do seu legado cultural; na sua actividade racional e nos seus ideais se encontram algumas das nossas raízes culturais mais profundas. Enfim, a nossa cultura europeia ocidental é o produto do cruzamento de algumas linhas de força essenciais, a saber: a inteligência grega, o direito romano e a religião cristã. Ora, também a educação grega, sobretudo a educação ateniense no seu apogeu, universalizada pelos romanos (Roma helenizou-se e depois romanizou)1, patenteia ainda hoje as suas influências tanto no modo como continuamos a conceber o que seja educação, como nos seus ideais educativos, como mesmo nalgumas das formas de realizar esses ideais, nomeadamente através de conteúdos educativos privilegiados. Em suma, em matéria de educação, os gregos não só definem o modelo como , simultaneamente, indicam a pedagogia a seguir. Será por isso que, ao manusearmos qualquer compêndio de História da Educação, o lugar que aí é reservado à educação nos povos primitivos e nas civilizações orientais ou é diminuto - algumas breves linhas - ou, pura e simplesmente, não existe.2 Somos, então, forçosamente levados a concluir que uma história da educação, com sentido e significado para nós, na nossa realidade educativa actual, começa na Grécia, porque é com os gregos que, autenticamente, o problema educativo se põe ou é entre eles que a educação se põe como problema. E esta preocupação com o problema educativo é a preocupação dominante na Atenas do século V a. c. Os sinais disso são bem evidentes: aparecimento dos Sofistas que se apresentam com novas propostas e soluções educativas, com um novo plano de estudos e como outros e novos mestres, em nada semelhantes aos do passado; Sócrates que se diz impelido a realizar uma única missão, uma "missão divina", que ele entende como "missão educativa", e que questiona e problematiza: O que é educar? O que é ensinar e aprender?

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O sistema educacional grego revisitado.

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A PAIDEIA GREGA REVISITADA

A PAIDEIA GREGA REVISITADA

MARIA DE JESUS FONSECA *

comum considerar-se que h dois perodos na histria da educao grega: o perodo antigo, que compreende a educao homrica e a educao antiga de Esparta e Atenas, e o novo perodo, o da educao no "sculo de Pricles", correspondendo este ao perodo ureo da cultura grega, o qual se inicia com os Sofistas e se desenvolver com os filsofos/educadores ou educadores/filsofos gregos Scrates, Plato e Aristteles. Depois, seguir-se- o perodo helenstico, j de decadncia, em que a Grcia conquistada, primeiro pelos macednios e depois pelos romanos. Atenas perde, ento, a sua posio de centro cultural do mundo em favor, sobretudo, de Alexandria. E, se certo que, apesar de vencida, a Grcia triunfou pela sua cultura, que se difundiu e universalizou - Graecia canta ferum victorem cepit et artes intulit agresti Latio (Horcio) -, no menos verdade que o que ganhou em universalizao o perdeu em originalidade e alento criador.

Somos herdeiros dos gregos e fiis depositrios do seu legado cultural; na sua actividade racional e nos seus ideais se encontram algumas das nossas razes culturais mais profundas. Enfim, a nossa cultura europeia ocidental o produto do cruzamento de algumas linhas de fora essenciais, a saber: a inteligncia grega, o direito romano e a religio crist.

Ora, tambm a educao grega, sobretudo a educao ateniense no seu apogeu, universalizada pelos romanos (Roma helenizou-se e depois romanizou)1, patenteia ainda hoje as suas influncias tanto no modo como continuamos a conceber o que seja educao, como nos seus ideais educativos, como mesmo nalgumas das formas de realizar esses ideais, nomeadamente atravs de contedos educativos privilegiados. Em suma, em matria de educao, os gregos no s definem o modelo como , simultaneamente, indicam a pedagogia a seguir. Ser por isso que, ao manusearmos qualquer compndio de Histria da Educao, o lugar que a reservado educao nos povos primitivos e nas civilizaes orientais ou diminuto - algumas breves linhas - ou, pura e simplesmente, no existe.2 Somos, ento, forosamente levados a concluir que uma histria da educao, com sentido e significado para ns, na nossa realidade educativa actual, comea na Grcia, porque com os gregos que, autenticamente, o problema educativo se pe ou entre eles que a educao se pe como problema.

E esta preocupao com o problema educativo a preocupao dominante na Atenas do sculo V a. c. Os sinais disso so bem evidentes: aparecimento dos Sofistas que se apresentam com novas propostas e solues educativas, com um novo plano de estudos e como outros e novos mestres, em nada semelhantes aos do passado; Scrates que se diz impelido a realizar uma nica misso, uma "misso divina", que ele entende como "misso educativa", e que questiona e problematiza: O que educar? O que ensinar e aprender? O que a virtude e pode a virtude ser ensinada? (Cf. PLATO, Protgoras 325c - 326e e Mnon); Plato que na Repblica e em As Leis prope as suas respostas a estes mesmos problemas; Aristteles cuja tica a Nicmano constitui tambm uma viso do problema educativo, e que na Poltica versa ainda o mesmo tema. Mas esses sinais encontram-se no s na filosofia como tambm na literatura grega desta poca, nas suas diferentes formas, seja na poesia (pica ou lrica), na tragdia ou na comdia (tambm elas escritas sob a forma potica), cuja inteno ltima , afinal, uma inteno educativa. Relembrem-se, por exemplo, as Odes de Pndaro, o Prometeu Agrilhoado ou a Oresteia de squilo, a Antgona, o Rei dipo e a Electra de Sfocles, a Medeia e o Orestes de Eurpedes, As Nuvens e As Rs de Aristfanes. Nestas duas comdias de Aristfanes o que est em questo , visivelmente, a educao, mais precisamente, a educao do seu tempo e no seu tempo: a educao dos sofistas (grupo no qual Aristfanes inclui, erradamente, Scrates, porquanto o confunde com os sofistas) em As Nuvens, e a educao proporcionada pelos poetas e tragedigrafos, seus contemporneos, em As Rs. O que se pe em confronto , portanto, a nova educao e a velha educao, a educao tradicional. E este ltimo tipo de educao que o autor elogia - ela formou os guerreiros de Maratona. Quanto nova educao, os seus resultados so desastrosos: ela subverte todos os valores tradicionais, corrompe os jovens, de modo que os mais novos j no respeitam os mais velhos e, agora, at os filhos j batem nos pais. (Cf. As Nuvens, sobretudo a discusso entre o raciocnio justo e o raciocnio injusto.)

Mas os novos ideais educativos do sculo V a. c. aliceram-se, por um lado, em ideais j anteriormente expressos e, por outro, constituem um desenvolvimento, um alargamento e um enriquecimento desses mesmos ideais. Como diz Jaeger, "a histria da formao grega (...) conserva bem clara a marca da sua origem." (JAEGER: s.d., 22)

Quais so, afinal esses ideais educativos que os gregos vo laboriosamente construindo e de que modo vo evoluir at se plasmarem, na sua forma ltima (aquela que to persistentemente encontramos ao longo da cultura ocidental), na ideia de Paideia?3

Contudo " ... no se pode utilizar a histria da palavra Paideia como fio condutor para estudar a origem da educao grega, porque esta palavra s aparece no sec. V." (JAEGER: s.d., 23) De facto, a palavra Paideia encontra-se pela primeira vez em squilo, Os Sete contra Tebas, e designa, to somente, a "criao dos meninos"(Pais, Paidos = criana), significado "em nada semelhante ao elevado sentido que mais tarde adquiriu" (JAEGER: s.d., 23)

E se queremos encontrar um fio condutor que nos guie ao longo da histria da educao grega e lhe d unidade, encontramo-lo no conceito de aret. De facto, "o tema essencial da histria da educao grega (...) o conceito de aret que remonta aos tempos mais antigos" (JAEGER: s.d., 23). este conceito que exprime a forma primeira, original e originria, do ideal educativo grego. Mas se o ideal educativo grego, na sua forma mais alta e acabada, se consubstancia no conceito de Paideia, inegvel que este conceito "conserva bem a marca da sua origem" (JAEGER: s.d., 22), j que Paideia, na densa riqueza do seu sentido - no possvel traduzi-lo em portugus numa nica palavra - inclui, tambm, o conceito de aret, para o qual remete. No por acaso que, nas grandes discusses sobre educao que o sec. V a.c. conhece, os dois conceitos - Paideia e aret - esto sempre presentes, interpenetrando-se de modo to profundo que vai at quase sinonmia. Assim, os sofistas reclamam-se professores de aret poltica4 e a sua Paideia consistir em ensinar a techn politik, a qual permitir o domnio da aret poltica. Tambm Scrates, cuja misso ele prprio to bem esclarece nesta passagem do texto platnico: " nas minhas idas e vindas pela cidade, no fao outra coisa seno persuadir-vos, novos e velhos, a que vos preocupeis mais, nem tanto, com o vosso corpo e as vossas riquezas do que com a vossa alma, para a tornardes o melhor possvel, dizendo-vos 'A virtude (aret) no vem da riqueza, mas sim a riqueza da virtude, bem como tudo o que bom para o homem, na vida particular ou pblica." (PLATO: 1972, 85-86). Igualmente, para Plato, a questo central e decisiva se resume, afinal, a saber o que a virtude (aret). O tema de todos os dilogos platnicos bem a prova disso; verdade que se questiona e se procura saber o que a coragem, a sabedoria, o amor, o belo, a justia... e tantas outras virtudes! O problema que esses valores so, ao fim e ao cabo, apenas exemplos de virtudes ou atributos do homem virtuoso, mas no so a virtude. Leiamos o que se diz no Mnon:

"Mnon - ...A justia virtude, meu caro Scrates!

Scrates - Como? Ela a virtude, ou uma virtude?"

Ora, o problema est no em saber quais so as virtudes, mas, precisamente, em saber o que a virtude. Ouamos Scrates, ainda no dilogo Mnon:

"Pois o mesmo se d com as virtudes. Por mais numerosas que sejam, haver sempre um certo carcter geral que as abrange a todas e por fora do qual elas so virtudes. este carcter geral que se deve ter em vista, para se saber o que a virtude. Compreendes o que digo?" (PLATO: 1969, 71)

Enfim, o tema da virtude - aret - como tema central e ncleo fundamental volta do qual gira toda a discusso acerca da questo educativa, da Paideia, - porque educar , em ltima anlise, tornar melhor o homem, aperfeio-lo, torn-lo mais virtuoso - bem visvel ainda em Aristteles5, j do sculo IV a. c., bem como em toda a literatura da poca que chegou at ns: na poesia, na tragdia, na comdia.

Sigamos, ento, a evoluo do conceito de aret (traduzido, vulgarmente, por virtude, como j vimos, traduo esta que, de modo nenhum, esgota o sentido mais profundo e mais amplo que aret tem em grego) desde que, pela primeira vez, aparece formulado como primeiro ideal educativo dos gregos.

em Homero e nos chamados poemas homricos, a Ilada e a Odisseia,6 que tal ideal educativo aparece originalmente formulado e explicitado. E se, em ambos os poemas, o ideal homrico de homem - o heri - se define pela aret, o modo de a conceber no , contudo, igual nos dois poemas. Assim, na Ilada, entre todas as suas muitas hericas personagens, (Agammnon, jax, Ptrocles, Diomedes, Menelau, Nestor, Ulisses - do lado dos Aqueus - Heitor, Pris, Pramo, Hcuba e Andrmaca - estes do lado dos troianos, constituindo as duas ltimas as figuras femininas, em conjunto com Helena), todas com as suas qualidades, destaca-se claramente a figura de Aquiles, o heri modelo, nobre, valente e corajoso, o melhor - arists - entre todos. Aquiles encarna, pois, a aret e na sua figura que se caracteriza esse ideal. Para alm do guerreiro valoroso, valente, corajoso e honrado, Aquiles o prottipo do perfeito cavaleiro da poca homrica, arcaica, corts, cavalheiresco, de boas maneiras, fino e polido no trato social. Mas se em Aquiles que melhor se realiza este ideal, evidente que no se chega l espontaneamente, antes se pressupe uma educao apropriada. dessa educao que Homero nos fala no canto IX, quando pe na boca de Fnix, o velho preceptor e educador de Aquiles, estas palavras: "Fui eu que te fiz o que s!", ou ainda quando Fnix declara que foi a ele que Peleu, o pai de Aquiles, confiou o filho aquando da partida para a guerra de Tria:

"Para isso me enviou, a fim de eu te ensinar tudo isto

a saber fazer discursos e praticar nobres feitos."

Estes versos, dos mais citados, definem com exactido a aret da Ilada e consagram o ideal educativo nela presente. Mas ser aristos (possuidor de aret), como superlativo que , ser, de entre todos, o mais valente, o mais conceituado, e comportar-se como o primeiro, conforme o significado do verbo aristein.7

Esta aret j, nos poemas homricos, algo que no dado mas sim conquistado, algo conscientemente procurado, por isso mesmo um ideal de cuja realizao nos queremos aproximar o mais possvel. Contudo, aret no ainda aqui entendida como virtude, como em grego clssico, mas sim como excelncia, superioridade8 , enfim, aret designa um atributo prprio da nobreza, um conjunto de qualidades fsicas, espirituais e morais tais como: a bravura, a coragem, a fora e a destreza do guerreiro, a eloquncia e a persuaso, e, acima de tudo, a heroicidade, entendida esta como a fuso da fora com o sentido moral. A esta concepo de aret se juntou, no pela etimologia mas pelo sentido, agaths. Ser agaths ser nobre, ter fora ou coragem ou habilidade para qualquer fim superior. Enfim, aret, assim entendida, caracteriza aquilo que Burckhardt, pela primeira vez, designou por esprito agnico ou ideal agonstico grego e que to lapidarmente aparece definido por Nestor na Ilada "ser sempre o melhor e distinguir-se dentre os demais."

Este ideal de homem (o homem de aco - cujo modelo exemplar Aquiles - e o homem de sabedoria, protagonizado por Ulisses) e este esprito agonstico perduraro na Grcia, mesmo durante a poca clssica. A realizao dos grandes festivais (as Panateneias e as Grandes Dionsias, que incluam competies vrias, provas atlticas, recitao dos Poemas Homricos) e dos Jogos Pan-helnicos (Olmpicos e Pticos, de 4 em 4 anos, Nemeus e stmicos, de 2 em 2 anos) so bem a prova disso. A combatividade e a competitividade constituam o esprito do concurso e se, como se sabe, o prmio, para o vencedor, no tinha valor pecunirio, consistindo numa coroa de folhagem de rvores simblicas dos vrios Deuses em honra dos quais se celebravam os Jogos, ento lutava-se apenas pela honra e pela glria, pela superioridade e pela heroicidade. De facto, o vencedor dos Jogos cobria-se de glria pessoal e, sendo considerado um heri, isso reflectia-se na sua polis. Em Atenas, por exemplo, ele era recebido com pompa e circunstncia, entoando-se cnticos em sua honra, compostos por grandes artistas, e tanto ele como os seus descendentes eram alimentados no Pritaneu, a expensas da cidade.

Se esta a aret da Ilada, a da Odisseia j mais alargada. A Odisseia relata o regresso do heri - Ulisses - a casa, vindo da guerra de Tria. Ora, Ulisses junta fora, coragem, bravura e eloquncia, a astcia, a manha, o engenho e a inteligncia, que o levam a desenvencilhar-se das situaes mais complicadas, nas aventuras do regresso. Por isso, no poema, o seu epteto mais comum "Ulisses dos mil artifcios". Mas, mais uma vez, estas qualidades incutem-se e desenvolvem-se apenas atravs da educao. Assim, na Odisseia, Telmaco, filho de Ulisses, o nico jovem em formao e a sua educao, que lhe ministrada pela deusa Atena, disfarada de Mentes ou Mentor, amigo e hspede de seu pai, que o poema descreve logo no canto I, mais conhecido por Telemaquia. E graas a essa educao, Telmaco transforma-se: do jovem dcil e passivo do comeo do poema, torna-se o prncipe consciente dos seus deveres, o companheiro de luta, valente e ousado que ajudar o pai, na sua vingana, a enfrentar os pretendentes de Penlope, sua me e fidelssima esposa de Ulisses.

Mas, quer na Ilada quer na Odisseia, a educao que se prope traz, agarrada a si, uma pedagogia que lhe corresponde: a pedagogia fundada no exemplo vivo ou no exemplo mtico, a pedagogia do paradigma. O heri prototpico institui-se como modelo exemplar a seguir; imitar os heris, o que desperta a emulao, para, como eles, ser heri, possuidor da aret herica.

Homero , entre todos os poetas gregos, considerado o maior e, a crer nos testemunhos, a opinio corrente ao tempo indica-o tambm como o educador de toda a Grcia. De facto, a tradio homrica e o ideal educativo que nela se prope so transmitidos oralmente, de gerao em gerao, pelos aedos e rapsodos. Tambm s assim se pode compreender a afirmao " Nele [em Homero], pela primeira vez, o esprito pan-helnico atingiu a unidade da conscincia nacional e imprimiu o seu selo sobre toda a cultura grega posterior". (JAEGER,s.d.,77)

Na verdade, separados politicamente e organizados em cidades-estado independentes, os gregos esto, contudo, espiritualmente unidos. Antes de mais, pela unidade de lngua, mas outros elementos presidem a essa unio: os jogos pan-helnicos, os grandes santurios religiosos e, sobretudo, a mesma cultura. este esprito, que se veio a designar de pan-helnico, que aparece j claramente definido por Iscrates "...o nome de Gregos j no parece ser usado para designar uma raa, mas uma mentalidade, e chamam-se Helenos mais os que participam da nossa cultura (Paideusis) do que os que ascendem a uma origem comum." (ISCRATES, Panegrico, 50 in: PEREIRA,1971,303)

Para alm de Homero, inegavelmente o mais influente, tambm so cantados e recitados outros poetas dos quais se deve, com justia, destacar Hesodo, autor da Teogonia e dos Trabalhos e Dias. Nesta ltima, introduz uma outra concepo de aret: o heri agora o homem que trabalha duramente e o trabalho fonte de dignidade e conduz superioridade,

"Trabalho no vileza, vileza no trabalhar." (verso 311)

Para alm do elogio do trabalho, h tambm o elogio da Justia9 e do Direito, valores estes que constituem o tema fundamental do poema e os ncleos centrais do mundo moral de Hesodo. pela justia que o homem se distingue dos animais e ambos, trabalho e justia, conduzem aret - ao mrito e glria do homem.

J acima o referimos, os primeiros educadores do mundo grego so os poetas, que surgem no apenas como educadores da sua poca, mas, porque a sua influncia perdurou muito para alm do seu tempo, como educadores de toda a Grcia. E porque Homero , de todos, o mais considerado e o mais influente, ele, fundamentalmente, o educador da Grcia e mesmo de todo o mundo antigo. Ser culto ou homem cultivado era, na Antiguidade, saber Homero de cor e ser capaz de o citar em qualquer ocasio. o que pode constatar-se em fontes vrias, as mais importantes das quais so Plato e Xenofonte. Assim, pode ler-se na Repblica "Por conseguinte Glucon se algum dia encontrares encomiastas de Homero, que te afirmem que esse poeta foi o educador da Grcia e que, no que toca a administrao e educao (Paideia) humana, digno de ser tomado como modelo para aprender com ele e regular toda a vida segundo as normas deste poeta..." (PLATO,606 e - 607 a)

Do mesmo teor so as declaraes de Xenofonte. Por exemplo, quando no Banquete pe na boca de Nicrato estas palavras: "O meu pai, que tinha a preocupao de fazer de mim um homem de bem (agaths), obrigou-me a aprender os Poemas Homricos inteiros. E ainda agora, eu seria capaz de dizer de cor a Ilada e a Odisseia." (XENOFONTE, Banquete, III,5-6 in: PEREIRA,1971,370) Ou ainda quando afirma "Podeis ouvir de mim como haveis de vos tornardes melhores (...) Sabeis, sem dvida, que Homero, o mais sbio (sophs) de todos, poetou sobre quase todas as actividades humanas. Portanto quem quiser tornar-se um bom administrador da sua casa, orador pblico, ou general, ou semelhante a Aquiles, jax, Nestor ou Ulisses, que fale comigo, porque eu sei disso tudo." (XENOFONTE, Banquete, IV,6 in: PEREIRA,1971,371)

E, diga-se de passagem, que estas duas fontes so tanto mais fidedignas quanto sabemos que, quer Plato, quer Xenofonte, so visceralmente contra este tipo de educao e a deploram. (Cf. PLATO, A Repblica,607 a - 608 b)

Mas j muito antes de Plato e Xenofonte, esta hegemonia dos poetas e a sua influncia na educao tinham sido postas em causa pelos primeiros filsofos, Xenfanes e Heraclito.O primeiro, Xenfanes, reconhecendo embora a omnipresena de Homero "uma vez que desde o incio todos aprenderam por Homero" (Frg. 10 Diels), considera nefasta essa influncia pois que

"Quanto h de vergonhoso e censurvel

Tudo isso atriburam aos deuses Homero

E Hesodo: roubos, adultrios, mentiras."

(Frg. 11 Diels in: PEREIRA,1971,121. Confronte-se tambm o frg. 2 Diels in: PEREIRA,1971, 119-120)

Igualmente Heraclito acusa " Homero merece ser expulso dos concursos e ser aoitado bem como Arquloco" (Frg. 42 Diels in: PEREIRA,1971,124) Mas estas crticas no conseguiram abalar o domnio dos poetas, que mantiveram sempre a sua influncia.

At poca clssica, e mesmo durante a poca clssica, onde este tipo de educao coexistiu com a nova educao, manteve-se esta educao tradicional e este ideal educativo.

No entanto, pelos fins da poca arcaica, j este ideal tinha sido alargado: no bastava cobrir-se de honra e glria, como nos tempos homricos, mas pretendia-se alcanar a excelncia tanto no plano fsico como no plano moral. Tal ideal exprime-se pela palavra Kalokagathia: beleza e bondade so os atributos que o homem deve procurar realizar. "O ideal de harmonia expressa-se (...) com a aspirao kalokagathia, na qual se via a bondade indissoluvelmente ligada beleza, bondade resultante de um firme e equilibrado domnio de si e beleza que representa exteriormente a serena ordem interior da alma. (...) Aristteles assinalou que o fim do homem 'viver feliz e belamente'. Por isso a educao grega a busca de uma perfeita euritmia." (MORANDO,1961,40-41) Assim, o homem forma-se segundo o princpio da autarquia, de um crescente domnio de si, pela libertao relativamente aos seus instintos, desejos e paixes, que devem ficar submetidos razo. Eis como Plato o define: "- Que entendes tu por governar-se a si prprio?

- (...) ser temperante, ter autodomnio, comandar em si prprio os prazeres e as paixes." ( PLATO, Grgias, 491 e)

Para alcanar tal ideal propem-se a ginstica, para desenvolver o corpo, e a msica, com a leitura e o canto das obras dos grandes poetas, para o esprito. Tratava-se, com tal programa educativo, de desenvolver uma das qualidades do homem, a sofrosune, que podemos traduzir por temperana e que implicava um perfeito domnio de si, aliando sabedoria e aco avisada, porque fundada nessa sabedoria. Msica no tem, nesta altura, o sentido estrito que ainda hoje lhe damos, mas inclua tudo o que estava relacionado com as actividades presididas pelas Musas: poesia, drama, histria, oratria e tambm, claro est, msica no sentido restrito. este ideal de kalokagathia que os latinos plasmam na frmula "Mens sana in corpore sano." Este estudo dos poetas, na msica, tinha fins essencialmente morais e psicaggicos e, conjuntamente com a ginstica, eram considerados uma formao completa, total e equilibrada. O ideal era, portanto, um ideal de sabedoria, pelo domnio dos instintos, desejos e apetites pela razo, um ideal de equilbrio e harmonia, um ideal de medida, de justa medida. Desenvolver o corpo e o esprito de forma equilibrada e harmnica, tanto um como o outro, no mais um que o outro. Este ideal ainda hoje continua presente e vivo.

O programa completo de estudos era constitudo pela ginstica, ensinada nos ginsios e nas palestras, sendo o pedotriba ou paidotriba o mestre de educao fsica, e pela msica que ensina as crianas a tocar ctara, para se acompanharem enquanto cantam as obras dos grandes poetas, sendo o mestre o citarista. Nesta altura, o citarista ensina ainda a ler e escrever, porque para cantar os poetas preciso saber ler as suas obras. J no fim da poca arcaica, o programa completava-se com a frequncia da escola do gramtico (este depressa se passar a chamar didscalo), o mestre de ler e escrever, que ensinava tambm rudimentos de clculo.10 Como parece que se tratavam de escolas diferentes, aparece a figura do pedagogo, ou seja, do escravo que acompanhava o menino escola e que, igualmente, superintendia no seu aconselhamento, vigiando o seu comportamento moral.

Sendo estas escolas pblicas, mas no do Estado, eram contudo supervisionadas pelo Estado, atravs de um funcionrio, o sofronista, em Atenas. Figura idntica aparece em Esparta, o pedonomo ou paidonomo, com funes de vigilncia sobre as crianas e sobre o tipo de educao que lhes era ministrado.11

No Protgoras, mais uma vez, Plato d-nos um retrato fiel desta educao tradicional e, apesar de longo, cremos que vale a pena transcrev-lo:

"- Logo que a criana comea a compreender o que lhe dizem, a ama, a me, o pedagogo e at o prprio pai se esforam por que ela se torne o mais perfeita possvel. A cada aco ou palavra lhe ensinam ou apontam o que justo e o que no , que isto belo e aquilo vergonhoso, que uma coisa piedosa, e outra mpia, e 'faz isto', 'no faas aquilo'. E, ou ela obedece de boa mente, ou ento, corrigem-na com ameaas e pancadas, como se fosse um pau torto e recurvo. Depois, mandam-na escola, com a recomendao de se cuidar mais da educao das crianas que do aprendizado das letras e da ctara. Os mestres, por sua vez, empenham-se nisso, e, depois de elas aprenderem as letras e serem capazes de compreender o que se escreve, (...) pem-nas a ler nas bancadas as obras dos grandes poetas, e obrigam-nas a decorar esses poemas, nos quais se encontram muitas exortaes e tambm muitos (...) elogios e encmios da valentia dos antigos, a fim de que a criana se encha de emulao, os imite e se esforce por ser igual a eles.

Os mestres de ctara, por sua vez, fazem outro tanto, cuidando do bom senso (sofrosune) e de evitar que os jovens procedam mal. Alm disso, depois de saberem tocar, aprendem as obras dos grandes poetas lricos, que executam na ctara. Assim, obrigam os ritmos e harmonias a penetrar na alma das crianas, de molde a civiliz-las, e, tornando-as mais sensveis ao ritmo e harmonia, adestram-nas na palavra e na aco. Na verdade, toda a vida humana carece de ritmo e de harmonia. Alm disso, ainda se mandam as crianas ao pedotriba, a fim de possurem melhores condies fsicas, para poderem servir a um esprito so, e no serem foradas cobardia, por fraqueza corprea, quer na guerra, quer noutras actividades. Assim fazem os que tm mais posses; e os de mais posses so os mais ricos. Os filhos desses comeam a ir escola de mais tenra idade, e saem de l mais tarde.

Depois de estarem livres da escola, o Estado (polis), por sua vez, obriga-os a aprender as leis e a viver de acordo com elas, a fim de que no procedam ao acaso. Tal como o mestre-escola que, para os que no sabem escrever, traa as letras com o estilete e lhes entrega a tabuinha e os fora a desenhar o traado dos caracteres, assim tambm a cidade, depois de ter delineado as leis, criadas pelos bons e antigos legisladores, os fora a mandar e a serem mandados de acordo com elas. (...) Perante tais cuidados com a virtude (aret) particular e pblica, ainda te admiras, Scrates, e pes objeces possibilidade de a virtude se ensinar?" (PLATO, Protgoras, 325 c - 326 e in: PEREIRA, 1971,397)

Mas este era apenas o programa educativo escolar que, de modo nenhum, esgotava a totalidade do programa educativo. Depois da escola, "a cidade continuava educando nas reunies polticas, administrativas e jurdicas, nos jogos, com o esplendor das artes figurativas e arquitectnicas, e, sobretudo, com a magnificncia das representaes dramticas. Nem em Atenas nem na Grcia o teatro era s para os privilegiados: era a escola de todos os cidados."12 (MORANDO,1961,45)

que "a educao ateniense, posta em prtica na escola e na cidade, tinha duas finalidades precisas: o desenvolvimento do cidado fiel ao Estado e a formao do homem que adquiriu plena harmonia e domnio de si" (MORANDO,1961,45), sendo, por isso mesmo, absolutamente autrquico.

Se, at agora, todo o problema educativo girava, essencialmente, volta da educao do homem como ser individual - por isso o objectivo fundamental da educao era a formao do homem, tratando-se de saber qual o caminho que o processo educativo devia seguir para que o homem, cada homem, pudesse alcanar o ideal, a aret individual, entendida neste momento como kalokagathia, a partir de agora, na Atenas do sculo V a.c., isso j no o bastante. Para alm de formar o homem, a educao deve, sobretudo, formar o cidado. A finalidade cvica da educao passa, claramente, a primeiro plano. originariamente grega a ideia, to actual, de que a educao preparao para a cidadania. Habitante da Plis, o homem s o que porque vive na cidade e sem ela no nada. E o que diz respeito cidade, comum, isto , afecta a todos enquanto comunidade e afecta cada um enquanto cidado ou membro dessa comunidade. Neste sentido, evidente que, antes de mais, o homem um animal poltico (zoon politikon), como bem o captou Aristteles, distinguindo-o, assim, do animal pela sua qualidade de cidado, e o Bis politikos a forma prpria e sublime de vida do homem como habitante da plis.

A conscincia da cidadania cedo faz sentir a necessidade de uma nova educao, pois que a antiga educao, com o seu receiturio bsico, simples e elementar de ginstica e msica, no servia j para a formao do cidado, nem correspondia s novas necessidades individuais nem s novas exigncias sociais e polticas. Politicamente, a forma democrtica de organizao do Estado foi a forma de governo escolhida pela Cidade-Estado de Atenas. Ora, no estado democrtico ateniense, a exigncia de todos os indivduos enquanto homens livres, ou seja, cidados, participarem activamente no Estado e na vida pblica so deveres cvicos inalienveis e aos quais ningum se pode eximir, e a participao nas assembleias torna indispensveis os dotes de eloquncia e apela para uma formao oratria. Neste contexto se compreende que tenha surgido uma nova estirpe de "educadores" - com o estrondoso sucesso que se lhes conhece - que se apresentam como professores no sentido actual do termo, (os primeiros professores da histria) e que oferecem, a troco de dinheiro, o ensino da "virtude", o ensino da aret poltica ou, como tambm lhe chamam os sofistas, a techn poltica. Mais uma vez a fonte platnica esclarecedora:

"O meu ensino tem por objecto a prudncia no que respeita aos assuntos prprios, de modo que a administrao da casa seja o melhor possvel, e, no que respeita aos da cidade, de maneira a dirigi-los na perfeio em actos e palavras.

Ento - disse eu - estarei a seguir bem as tuas palavras? Segundo me parece, referes-te arte de governar (aret politik)13 e prometes formar bons cidados?

- isso mesmo, Scrates - disse ele [Protgoras] - isso o que eu me proponho fazer." (PLATO, Protgoras,319 a in: PEREIRA,1971,394)

Os sofistas convertem, pois, a educao numa tcnica ou numa arte, na qual eles so mestres e, por isso, capazes de a transmitirem e a ensinarem, e os jovens, seus alunos, que vierem a dominar a techn poltica alcanaro, por isso mesmo, a aret poltica.14

Mas esta aret poltica, ou melhor, techn poltica, to em conexo com as finalidades prticas que se prope - formao de homens de Estado e de dirigentes da vida pblica - vai conduzir, necessariamente, valorizao do homem, cidado individualmente considerado, e vai, igualmente, orientar-se num sentido amoral ou mesmo imoral. Os seus contemporneos vo acusar os sofistas de imoralidade.

Indubitavelmente que o centro da vida poltica o homem (da falar-se em humanismo, ou no giro antropocntrico que a sofstica implica), mas o homem individual (de onde o individualismo sofstico) e, ento, o humanismo sofista no seno um individualismo ou um relativismo total. bem conhecida, e muito citada a este propsito, a paradigmtica frase de Protgoras "O homem a medida de todas as coisas".

Indubitavelmente, tambm, que o homem, assim situado no corao da plis, quer vencer na vida poltica, quer fazer valer os seus interesses ou as suas convices, quer ganhar um lugar de destaque, quer ser eleito para cargos pblicos, quer ser governante e aceder ao poder. Para isso, para ter xito poltico, precisa de saber falar bem, de encantar o auditrio, de construir discursos persuasivos, de formular os argumentos que justifiquem e validem as suas posies, fazendo-as prevalecer como as melhores. Precisa, pois, da arte sofstica da oratria, da retrica e da dialctica. Mas porque o que necessrio ter sucesso na vida pblica e poltica, vencer a todo o custo e a qualquer preo, e isso s possvel convencendo os outros das minhas razes, retrica e dialctica tornam-se armas potentssimas que preciso saber esgrimir com percia; tcnicas cujo domnio permite utiliz-las segundo as nossas convenincias, mas tcnicas que se podem aplicar a qualquer contedo. "...seja qual for o profissional com quem entre em competio, o orador conseguir que o prefiram a qualquer outro, porque no h matria sobre a qual um orador no fale, diante da multido, de maneira mais persuasiva do que qualquer outro profissional. Tal a qualidade e a fora desta arte que a retrica." (PLATO, Grgias, 456 e) Sendo assim, esse contedo esvaziado de sentido, pelo menos de sentido tico, e o discurso reduz-se, por isso mesmo, a um mero exerccio tecnicista, a uma mestria ou a um virtuosismo tcnicos. O domnio dessa tcnica permite construir os argumentos necessrios a fazer valer este ou aquele ponto de vista, conforme os meus interesses do momento e independentemente da contradio que possa existir entre esses pontos de vista. Entram assim em crise os sacrossantos valores da tradio: verdade, justia, virtude, rectido... Eles no importam, porque o que importa vencer! Quando muito o que importa o que bom para mim. Em todo o caso, no valem como valores absolutos, mas so relativizados. So o que o homem quer e decide que sejam a cada momento. A dialctica aplicada poltica vira, portanto, as costas tica. este o tema central do Grgias. De facto, trata-se de saber o que a retrica ou oratria, estabelece-se que no cincia mas tcnica e, em todo o caso, tcnica maldita, pois, como o prova Scrates, s precisa dela quem quer enganar e ludibriar os outros, quem quer praticar o mal e a injustia " para isto, Polo, que a retrica me parece ter utilidade, uma vez que, para quem no pensa em praticar a injustia, reduzido o seu prstimo, para no dizer que no tem nenhum..." (PLATO, Grgias, 481 b) Ora, os artfices desta tcnica so os sofistas, ("Sofistas e oradores so a mesma coisa" PLATO, Grgias, 520b), pelo que o Grgias, condenando a retrica porquanto conduz imoralidade, condena simultaneamente toda a sofstica, e de forma bem custica e veemente. No admira que os sofistas venham a ser acusados de imoralidade, de administrar uma educao perversa e pervertida, de corromper a juventude e de sublevar os valores tradicionais, minando as bases da ordem social e poltica estabelecida. esta situao, a que a nova educao conduziu, que Aristfanes ridiculariza, caricaturizando-a em As Nuvens. Ser esta tendncia degenerescente em que desabou a sofstica que Scrates quer inverter, reconstruindo a conexo da cultura do esprito, da cultura intelectual com a cultura moral e poltica e voltando a situar o ethos no corao do homem, no centro da actividade poltica e no centro da aret.

Ao longo dos dilogos platnicos so muitas as vezes que Scrates se escandaliza e considera um paradoxo o facto de para todos os ofcios se exigir uma competncia especfica e o mesmo no se verificar para os governantes e polticos. Por exemplo, um sapateiro, um alfaiate, um carpinteiro precisam de um certo saber para realizarem o seu trabalho, "ao passo que ao poltico bastava uma educao genrica, (...) muito embora o seu 'ofcio' tratasse de coisas muito mais importantes." (JAEGER, s.d.:136) Enfim, os sofistas apresentam-se como mestres de aret poltica, mas esto bem longe de corresponderem a tal presuno. verdade que ensinam os homens a discursar elegantemente nas assembleias, indo mesmo ao ponto de os instrurem a servirem-se despudoradamente de todos os meios para realizarem as suas ambies. Mas, afinal, aos olhos de Scrates e de Plato, os sofistas so, to s, demagogos e a especialidade de que se dizem mestres no outra coisa seno a demagogia. Por isso, ao que ensinam, "dou-lhe o nome geral de 'adulao' e partes da mesma adulao so para mim tambm a retrica (...) e a sofstica", como afirma Scrates. (PLATO, Grgias, 463 b)

Mas se comum a todos os sofistas o considerarem-se mestres da aret poltica, a sua opinio diverge no que respeita ao modo de a conceber e de a realizar. Assim, para uns, a educao que levar ao domnio da arte poltica consistir na transmisso de um saber enciclopdico, de uma polimatia da qual se gabam e dizem mestres - o representante mais significativo desta tendncia Hpias (Cf. PLATO, Hpias Menor, 368 b - 368 e in: PEREIRA, 1971:399-400), o qual, contrariamente maior parte dos outros sofistas, atribui um alto valor formativo s matemticas, incluindo ele prprio, no ensino que ministra, "o clculo, a astronomia, a geometria e a msica" (PLATO, Protgoras, 318 e in: PEREIRA,1971:394), disciplinas estas que, mais tarde, vieram a constituir o quadrivium; para outros, dos quais o principal representante Protgoras, a educao , essencialmente, formao, formao do esprito e formao do cidado, e o modo privilegiado de a conseguir pelo ensino da gramtica, da oratria e retrica e da dialctica, disciplinas estas que, na Idade Mdia, formaram o chamado trivium e que, conjuntamente com o quadrivium, constituram as sete artes liberais.15

A respeito da educao proporcionada por Protgoras, Plato , uma vez mais, uma fonte preciosa: "Mas talvez no tenhas na mesma conta, Hipcrates, o ensino de Protgoras e o que recebeste junto do mestre de gramtica, de ctara e de ginstica? Pois estudaste cada uma destas artes, no para as exercitares como um profissional, mas para receberes aquela cultura (Paideia) que convm a um leigo e a um homem livre.

- Ora esse o gnero de ensino (Paideia) de Protgoras, segundo me parece - disse ele." (PLATO, Protgoras, 312 a-b in: PEREIRA, 1971:391)

A verdadeira Paideia, conscientemente procurada, , portanto, para Protgoras, uma cultura geral de carcter superior, entendida como alimento para o esprito, ou melhor, como alimento que forma o esprito.

Plato que, tanto quanto se sabe, foi o primeiro a chamar-lhe formao, definir a educao como formao geral, insistindo, contudo, no facto de essa formao valer por si mesma e em si mesma, porque desinteressadamente procurada e no em vista de qualquer finalidade prtico-utilitria. Por isso se esfora tanto em a distinguir do saber especializado e tcnico dos profissionais, no s porque esse saber no um saber pelo saber, antes um saber-como, um saber-fazer, portanto um saber meramente tcnico, mas tambm porque, em consequncia, um saber utilitrio, isto , um saber que meio para um fim e no um fim em si mesmo.

De entre as novidades introduzidas pelos sofistas destacar-se- o facto de terem sido os primeiros a ministrar um tipo de educao superior e, sobretudo, a convico de que "a educao no acaba com a sada da escola. Em certo sentido, poderia dizer-se que precisamente nessa altura que principia." (JAEGER, s.d.:335) De facto, a sua educao dirige-se ao jovem que concluiu j o currculo escolar tradicional e quer iniciar a sua vida poltica. Esta mesma ideia ser alargada com Scrates,16 para quem a educao no consiste na transmisso de conhecimentos, mas sim na formao do homem como homem. Assim, "a verdadeira essncia da educao dar ao homem condies para alcanar o fim autntico da sua vida. Identifica-se com a aspirao socrtica ao conhecimento do bem, com a phronesis. E esta aspirao no se pode restringir aos poucos anos duma chamada cultura superior. S pode alcanar o seu objectivo ao longo de toda a vida do Homem; de outro modo no o alcana." Enfim, para Scrates, "a suma e o compndio do 'tudo o que eu tenho' a paideia." (JAEGER, s.d.:532) Plato17 retomar esta ideia socrtica, considerando que o processo educativo completo - o do filsofo governante - ter o seu termo aos 50 anos de idade. Assim, a formao dialctica realiza-se dos 20 aos 35 anos e dos 35 aos 50 consolida-se, pela prtica dessa mesma formao. Toda a educao anterior considerada como propaideia, como propedutica verdadeira Paideia. A longa durao da formao dialctica (15 anos na sua totalidade) , e, nem sequer, ao fim desse perodo, se pode considerar completada, pelo que, afirma Plato, s aos 50 anos (cf, PLATO, Repblica,540 a) se pode dar por concludo o processo educativo, isto no seno uma maneira metafrica, to ao gosto platnico, de dizer que a educao nunca acaba e que dura tanto quanto durar a vida do homem. O prprio do homem , portanto, encontrar-se permanentemente em processo de formao. Convenhamos que esta ideia, to valorizada nos nossos dias e, tantas vezes (!), apresentada como uma inveno e uma exigncia exclusivas do nosso tempo, no nada nova!

Mas o que Plato, no sec. IV a.c., assim plasma desta maneira to exemplar, duradoira e hodierna, algo que se encontra presente na cultura grega, desde as suas origens. Diz Jaeger a propsito do homem grego "... medida que avanava no seu caminho, ia-se-lhe gravando na conscincia, com crescente claridade, a finalidade sempre presente, em que a sua vida assentava: a formao dum elevado tipo de homem. A ideia de educao representava para ele o sentido de todo o esforo humano." (JAEGER, s.d., 6) O homem s homem pela educao, s vale pela educao - os gregos bem o perceberam. Da que a educao constitua para eles um interesse vital, de tal modo que o problema educativo se lhes impe como o problema fundamental do homem e como o problema decisivo para o destino do homem. Homem e educao encontram-se inelutavelmente vinculados, de tal modo que um s existe pelo outro.18 Por isso, Jaeger acrescenta mais frente "os gregos viram pela primeira vez que a educao tem de ser um processo de construo consciente" (JAEGER, s.d.: 12), caso contrrio, ela no forma o homem como homem e, muito menos, o elevado tipo de homem que se pretende.

O mesmo afirma Luzuriaga, traando simultaneamente uma sntese da evoluo do ideal grego de educao: "O ideal grego de educao o primeiro que aparece na histria de maneira consciente e caracteriza-se, em geral, pela formao do homem poltico, o homem da plis (...), do cidado, tanto no aspecto civil como no aspecto blico. Esse ideal sofre uma evoluo, a partir dos tempos hericos de Homero, onde predomina o guerreiro, at poca (...) de Pricles, em que sobressai o poltico." (LUZURIAGA, 1977: 106) Dentro deste desenvolvimento, a educao grega tem como aspirao a excelncia - aret - , mais tarde esse ideal completado pelo de kalokagathia, o ideal da perfeio do corpo e da alma em beleza, bondade, sabedoria e justia do indivduo na comunidade pblica. Mas todo o ideal grego aparece, finalmente, como Paideia. (Cf. LUZURIAGA, 1977, 106)

Mas, afinal, o que pode entender-se por Paideia, palavra esta que consubstancia o ideal grego de educao? Plato, define-a desta forma "...toda a verdadeira educao ou Paideia, a que educao na aret, que enche o homem do desejo e da nsia de se tornar um cidado perfeito, e o ensina a mandar e a obedecer, sobre o fundamento da justia " (PLATO, Leis, 643 e in: JAEGER, s.d.: 136); ou ainda desta outra " A formao (Paideia) que, desde a infncia, inspira o desejo apaixonado de se tornar um cidado completo e realizado", como diz o personagem, o Ateniense, num dos dilogos platnicos. (Cf. MIALARET e al., 1981:150) A Paideia , ento, entendida como formao, como uma formao geral que dar ao homem a forma humana, ou seja, que o construir como homem e como cidado.19 E este ideal aparece claramente como o ideal de Paideia no sec. IV a. c. e encontra-se bem presente, desde logo, com os sofistas, mas este tambm o ideal que encontramos em Scrates, em Plato, em Aristteles ou em Iscrates. A Paideia, assim concebida, torna inteligvel a afirmao "O princpio espiritual dos gregos no o individualismo mas o 'humanismo', para usar a palavra no seu sentido clssico e originrio. Humanismo vem de humanitas. (...) Significou a educao do Homem de acordo com a verdadeira forma humana, com o seu autntico ser. Tal a genuna Paideia grega (...). No brota do individual, mas da ideia. Acima do homem como ser gregrio ou suposto eu autnomo, ergue-se o Homem como ideia. A ela aspiraram os educadores gregos, bem como os poetas, artistas e filsofos. Ora, o Homem, considerado na sua ideia, significa a imagem de Homem genrico na sua validade universal e normativa." (JAEGER, s.d.:13) De facto, parece ser precisamente isto que constitui o cerne do ideal educativo grego, desde os seus primrdios. assim que o vemos nos poemas homricos, onde se desenha claramente um ideal de homem que todo e qualquer homem, para o ser, deve encarnar. tambm isso mesmo que, mais clara e nitidamente que em qualquer outro 'autor', encontramos em Scrates.

De facto, a inscrio do frontispcio do templo de Delfos, que Scrates tomou como lema da sua filosofia e do seu projecto educativo, o "conhece-te a ti mesmo", considerou-a ele a frase que constitua a pedra de toque do seu destino e da sua misso, bem como nela se resumia, de forma prototpica, todo o sentido da vida humana - no apenas o sentido da sua vida, mas o sentido da vida. que, no modo socrtico de ver, o "conhece-te a ti mesmo" no se pode interpretar como um conhecimento individual e subjectivo, como apelo a um conhecimento de si mesmo como homem individual, como conhecimento do "eu", do seu eu, de forma mais ou menos introspectiva. Pelo contrrio, o "conhece-te a ti mesmo" s tem verdadeiro significado se entendido como procura do conhecimento do universal e do essencial, como busca do que comum a todos os homens, como pesquisa do que nos faz, a todos e a cada um, ser homens; a divisa socrtica reclama que, para l do que diferencia os homens se busque o que os une, para l do indivduo ou do eu se encontre o Homem. A questo originria, a questo primeira e fundamental, , pois, a questo sobre o Homem. O que o Homem?20 O que ser Homem? Esta a principal de todas as questes, seno mesmo e afinal a nica questo! O que Scrates exige e procura incansavelmente o conhecimento, no deste, daquele ou daqueloutro homem, mas do Homem. O que ele busca a essncia do Homem, a ideia de Homem, e se o homem isso que a ideia define, ento a ideia converte-se em ideal, porque todo e qualquer homem, para o ser, deve ser isso. Busca-se, portanto, o que h de humano no homem ou a humanidade do homem. Explicitamente formulado e conscientemente procurado, este o Humanismo socrtico. Constitui, tambm, a primeira formulao do que, essencialmente, se entende por humanismo. "Todo o futuro humanismo deve estar essencialmente orientado para o facto fundamental de toda a educao grega, a saber: que a humanidade, o 'ser do homem' se encontra essencialmente vinculado s caractersticas do Homem como ser poltico." (JAEGER, s.d.:15-16) tambm para isto que Scrates chama a ateno quando adverte que a procura do ser homem ou a resposta questo 'o que ser Homem?', s pode encontrar-se se for uma procura comum, um esforo partilhado por todos os homens. No esqueamos, por outro lado, que ser homem, para os gregos, era indissocivel do facto de o homem s ser plenamente homem enquanto habitante da plis.

Ora, toda a educao grega parece convergir na realizao deste ideal: construir o homem como homem, ajudar o homem a descobrir a sua humanidade, permitir a cada homem Ser Homem. A Paideia grega impe-se como um humanismo. E no continua a ser este, hoje como ontem, o esforo gigantesco e herico de toda a educao? A enorme e duradoura influncia do que os gregos entenderam por Paideia no pode tornar-se mais patente.

"O termo grego Paideia evoca tanto o prprio contedo da cultura como o esforo para constituir, na criana (Pais, Paidos) um patrimnio de valores intelectuais e morais que a integram na comunidade humana. Finalmente, Paideia implica tudo o que distingue o grego, o homem civilizado, do bruto e do brbaro ou ainda o que permite ao indgena aceder, pela educao, a um novo estatuto cultural, social, poltico. A educao impe-se como uma obrigao da qual a cidade no pode fugir e qual no pode escapar."21 ( MIALARET e VIAL,1981:165) Ontem como hoje, a educao impe-se como uma obrigao e um destino ao qual as sociedades e os poderes polticos22 no podem fugir e do qual no podem escapar.

Mas o termo Paideia no tem uma traduo to simples (ou aparentemente to simples): ele no significa, como vulgarmente se traduz, apenas educao. Significa muito mais que isso, aglutinando termos tais como cultura, instruo, formao... Alis, entre os Gregos, como j vimos, desde o seu surgimento, a palavra Paideia foi cobrindo um campo cada vez mais vasto de significados. O termo comea a ser utilizado no sec. IV a. c. e, nessa altura, to somente, comea por significar a criao dos meninos. Mas o seu significado depressa se alarga passando a designar no s o processo educativo, mas tambm o contedo e o produto desse processo. "O conceito [Paideia] que originariamente designava apenas o processo de educao como tal, alargou (...) a esfera do seu significado, exactamente como a palavra alem Bildung (formao) ou a equivalente latina cultura, do processo da formao passaram a designar o ser formado e o prprio contedo da cultura (...). Torna-se assim claro e natural o facto de os gregos, a partir do sec. IV, em que este conceito achou a sua cristalizao definitiva, terem dado o nome de paideia a todas as formas e criaes espirituais e ao tesouro completo da sua tradio, tal como ns o designamos por Buildung ou, com a palavra latina, cultura." (JAEGER, s.d.:328) Tal como ainda diz Jaeger "No se pode evitar o emprego de expresses modernas como civilizao, tradio, literatura, ou educao; nenhuma delas, porm, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por Paideia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global e, para abranger o campo total do conceito grego, teramos de empreg-los todos de uma s vez." (JAEGER, s.d.:1)

POST-SCRIPTUM

Algumas reflexes se nos oferecem a propsito da designao de Politcnico, usada para denominar um conjunto de escolas e instituies onde se ministra um ensino chamado, precisamente, politcnico. A palavra , toda ela, como se sabe, de origem grega: Poli = muito; techn = tcnica. Na expresso, o poli pode ser interpretado em duplo sentido: no sentido de que, neste tipo de instituies, se ministra um ensino apenas tcnico, muito tcnico, exclusivamente ou especializadamente tcnico e no sentido em que, nessas escolas, se ensinam e aprendem muitas e vrias tcnicas diversificadas. De qualquer modo, os dois sentidos encontram-se, evidentemente, inter-relacionados.23 Nesta acepo, a do sentido etimolgico e literal da palavra, nada nos parece mais afastado do ideal grego de Paideia do que uma educao politcnica. O ideal de Paideia era uma educao total do homem como homem, uma educao humana e humanista, no uma educao especializada e marcadamente tcnica. Total porquanto se almejava a formao do homem como homem e como cidado, formando-se o carcter e valorizando-se, deste modo, a educao moral e cvica e no apenas a educao intelectual. Por outro lado, Paideia era entendida como cultura geral, formao geral, a nica que convm ao homem como homem e como cidado livre. Assim concebida, nada nos parece mais alheio ao ideal educativo grego do que, precisamente, uma educao dita politcnica.

Techn, em grego, significa tcnica, ofcio, habilidade, arte, cincia aplicada. Usava-se para "descrever qualquer habilidade no fazer, mais especificamente, uma espcie de competncia profissional". (PETERS,1977:224) Os artfices ou artistas eram aqueles que dominavam uma determinada tcnica, que possuam um saber-fazer, isto , um conhecimento que lhes proporcionava como saber fazer determinada coisa.

No que os gregos desprezassem a tcnica, mas distinguiam bem diversas classes de saberes. A este propsito, Aristteles o filsofo paradigmtico, definindo claramente tipos de conhecimento distintos: o conhecimento emprico (empeiria), o conhecimento tcnico (techn), o conhecimento prtico (prxis) e o conhecimento terico ou teortico (theoria). Todos eles so saber (sophia): a empeiria um saber de experincias feito; a techn um saber como, um saber fazer24; a prxis um saber agir ou actuar e, por consequncia um saber prtico ou tico-moral; a theoria saber pelo saber, saber pelo desejo de saber ou saber pelo amor ao prprio saber. Por isso, de todos, a theoria o saber mais autntico, constituindo a verdadeira sophia ou o verdadeiro conhecimento (episteme), porquanto um saber que se busca por si mesmo, pelo prprio amor de saber, e no tendo em vista qualquer fim alheio a si mesmo, como o caso dos outros tipos de saber, cujo fim alheio ao prprio saber, instituindo-se, portanto, no como fins em si mesmos, mas fins para outra coisa; so saberes que se procuram pela sua utilidade, so, pois, meios para outros fins. Por isso tambm que a verdadeira sophia, a theoria, conhecimento verdadeiro, episteme s a filosofia - philo-sophia.

Aristteles "distingue entre poiein, no sentido de 'produzir' (da poietike episteme, cincia produtiva) e pratein (actuar), da praktike episteme, cincia prtica." (PETERS,1977:193-194) Ora, "o termo prprio que Aristteles usou para a cincia produtiva ou aplicada techn" e, para ele, "a poietike techn por excelncia a potica, qual (...) dedicou todo um tratado" (PETERS,1977:194)

A tcnica distingue-se, portanto, da prtica, a primeira estando ligada ao fazer, no sentido de produzir (poiein) e a segunda ao actuar (pratein).25

E "tal como foi definida por Aristteles (...) a techn uma caracterstica (...) mais dirigida produo (poietike) do que aco (praktike). Emerge da experincia (empeiria) de casos individuais e passa da experincia techn quando as experincias individuais so generalizadas (...): o homem experimentado sabe como mas no sabe porqu (...). Assim, um tipo de conhecimento e pode ser ensinado." (PETERS,1977:225-226) Se a tcnica um saber, um saber como se faz, como se produz, um saber aplicado ou cincia aplicada, mas porque se trata de um saber pode ser transmitido e ensinado. O sofista , precisamente, algum que possui uma tcnica, um saber tcnico: sabe como fazer belos discursos, sabe como manejar a palavra, sabe como convencer, sabe como argumentar. Dominando estes saberes ou estas tcnicas, pode ensin-las. Os sofistas aparecem, por isso, como tcnicos, porque dominam um saber tcnico especializado que transmitem. So, neste sentido, os primeiros politcnicos da histria.

Mas o saber por excelncia, o mais valorizado de todos a theoria, o saber contemplativo e especulativo, que se busca a si mesmo, por si mesmo e em si mesmo. Ela constitui o tipo superior da actividade humana. Por isso, ela o saber que mais convm ao homem como homem.

O sentido da paideia grega enquanto formao do homem como homem, enquanto formao geral de todo e qualquer homem, parece, pois, opor-se a uma formao especializada e meramente tcnica. Ou, se preferirmos, uma educao tcnica especfica no dispensa, como seu suporte e fundamento, uma formao geral do homem enquanto homem, isto , uma verdadeira paideia. Uma formao humanista como alicerce de uma formao tcnica: eis o que exige a paideia grega. No podemos deixar de considerar a pertinncia e actualidade desta posio.

No deixa de ser curioso que, no caso portugus, os Institutos Politcnicos tenham comeado por integrar e abrir Escolas Superiores de Educao e s posteriormente Escolas Superiores de Tecnologia - que hoje, alis, vo sendo cada vez mais procuradas, mais desenvolvidas e mais diversificadas e alargadas pela criao de mais cursos tcnicos; exactamente o contrrio do que se passa com as Escolas Superiores de Educao, diga-se de passagem. Ser que, porque as Escolas Superiores de Educao aparecem integradas dentro do Ensino Politcnico, e dado o sentido etimolgico e usual da palavra, no corremos o risco de encarar a educao apenas como uma tcnica? No haver o perigo de considerar que a educao possa ser reduzida meramente a uma tcnica? Que a formao de professores se reduza e se esgote numa mera formao tcnica, esbatendo ou subalternizando a formao cientfica em que ela se deve fundar e esquecendo ou desvalorizando a formao humanstica que constitui o seu horizonte e lhe confere todo o sentido e significado? Como se os professores e educadores fossem meramente tcnicos e, portanto, pudessem ser apenas reduzidos ao estatuto de funcionrios, como outros quaisquer funcionrios! que se a educao uma cincia tambm uma arte e uma arte no no mero sentido de tcnica, mas no sentido de criatividade, de originalidade, de predisposio e de vocao, que lhe esto associados. Convm, por isso, relembrar o ideal grego e voltar ao genuno sentido da paideia grega.

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* Professora-Adjunta da ESEV

Notas:

1 A romanizao o processo de aculturao ou enculturao dos povos conquistados, segundo o qual a cultura romana difundida, estendida e inculcada em todos os territrios pertencentes ao imprio; mas se a cultura romana, que vai alastrar e se vai levar a todos os pontos do imprio, j o resultado da fuso entre a cultura romana original e a cultura grega, segue-se que a romanizao tambm, embora indirectamente, uma forma de helenizao. assim e por esta via que, fundamentalmente, a cultura grega comea por exercer a sua influncia na Europa.

Especificamente, em matria de educao "O mesmo ideal triunfa em Roma (...) e tudo isso que Roma e atravs dela o Ocidente romanizado herdam do helenismo. Bem entendido, esta transferncia no acontece sem os retoques e as inflexes que lhe impem o gnio e a fora prprios da tradio romana. A interpretao romana da Paideia (...) constitui na histria humana uma etapa insubstituvel, pois que ela serve de mediao, transmitindo Europa moderna o sistema e a Pedagogia da Paideia grega." (MIALARET e VIAL: 1981, 187).

2 E as justificaes que se do para tal facto so do mesmo teor. Assim, o estudo da educao nos povos primitivos "... de pouca utilidade para a formao do pedagogo actual (...)

A mesma considerao nos leva a pr de lado o estudo da educao nos povos orientais, quer os do Extremo Oriente (chineses e hinds) quer os do Mdio Oriente (egpcios, caldeus, persas e judeus)." (GOMES: 1967,9) E conclui o mesmo autor "...o estudo da educao nas civilizaes orientais tem escasso interesse para a prtica pedaggica actual. Iniciaremos, por isso, o nosso Curso com o estudo da educao na Grcia, e principalmente em Atenas..." (GOMES: 1967,10)

No mesmo sentido vo as afirmaes seguintes: "Alguns autores consideram desnecessrio o estudo da educao nos povos primitivos e nos povos da Antiguidade Oriental, por o seu valor educativo, hoje, sob o ponto de vista educativo, ser escasso (...)" E acrescenta o autor, "Seguindo um critrio histrico, comearemos por dizer alguma coisa sobre tais sociedades, no esquecendo, no entanto, que a verdadeira educao nasceu na Grcia." (GUIMARES: 1974, 15)

3 Paideia e filosofia so, talvez, entre todas, as maiores e mais originais criaes culturais do gnio e do esprito gregos. A isso no alheia, com certeza, a sua eterna presena e a sua tenaz influncia, ao longo da histria e at aos nossos dias, na cultura ocidental. A este propsito diz Werner Jaeger no Prlogo da obra que dedica Paideia "o conhecimento essencial da educao (Paideia) grega constitui um fundamento indispensvel para todo o conhecimento ou intento de educao actual." Mais frente, afirma que "aprendemos muito dos gregos", e que "Isto aplica-se criao mais bela do esprito grego, ao mais eloquente testemunho da sua estrutura mpar: a filosofia." (JAEGER:,s.d., 11) Esta ltima posio extremada em dois outros especialistas na cultura grega: "A menos que queiramos usar o termo em sentido to lato que o esvaziemos de todo o sentido especfico, no h provas de que a Filosofia jamais se tenha originado em qualquer parte, excepto sob a influncia grega." (Burnet, The Legacy of Greece, cit. por PEREIRA: 1970. 201)

"No quereramos impedir ningum de, por convico ou por outros motivos polticos, elevar s alturas que lhe aprouver os clssicos hindus e chineses. Mas esses nada tm que ver com aquilo que, depois de Plato e Aristteles, somos historicamente obrigados a chamar filosofia." (Gigon, Grundprobleme der antikem Philosophie cit. por PEREIRA: 1970, 201)

Parecem ser estes os legados mais substantivos que herdmos dos gregos: a ideia de Paideia e a inveno da filosofia.

4 "E esses sofistas, que so os nicos a apresentarem-se como professores de virtude (aret) - crs que de facto o sejam?" (Plato, Mnon, 104)

5 Cf. Aristteles, tica a Nicmaco, obra que Aristteles dedica a seu filho Nicmaco, querendo seu pai que ele seja educado como um homem de bem, um homem bom, um homem virtuoso, isto , um homem feliz. Na realidade, para o Estagirita, o valor fundamental da tica o Bem e o maior de todos os bens, o Supremo Bem, a Felicidade. E a felicidade no outra coisa seno ser-se aquilo que se , ou seja, a suprema felicidade do homem consiste em tornar-se e em ser aquilo que o homem na sua essncia: animal racional, animal possuidor de logos. S o que s, comporta-te racionalmente como quem s, faz uso da tua razo - assim realizars o supremo bem e sers feliz, eis o que Aristteles ensina a seu filho e metaforicamente a todos os homens.

6 No nos deteremos aqui na chamada Questo Homrica, que consiste no problema, at agora no resolvido, da autoria da Ilada e da Odisseia, tratando-se de saber se ambos os poemas podem ser atribudos a um mesmo autor ou se, pelo contrrio, a autores vrios.

7 Tambm a palavra aristeia, da mesma famlia etimolgica, passou a designar a descrio dos combates valorosos entre dois guerreiros, narrao essa que termina com o triunfo de um heri sobre o seu feroz adversrio. Assim, por exemplo, a aristeia de Diomedes (canto V), a aristeia de Agammnon (canto XI), a aristeia de Menelau (canto XVII), o duelo entre jax e Heitor (canto VII), a aristeia de Ptroclo, tambm chamada Patrocleia, (canto XVI), terminando com a morte deste s mos de Heitor.

8 O termo aristocracia guarda ainda este sentido, enquanto o seu significado literal "governo dos melhores".

9 Mas a justia , agora, concebida como a lei dos homens. Thmis era o termo utilizado nos Poemas Homricos para justia. Mas thmis a justia divina, a justia estabelecida e distribuda pelos Deuses ou pelo Destino (moira). Como diz Heitor "Garanto-te que nunca homem algum, bom ou mau, escapou ao seu destino, desde que nasceu." Na poca clssica, Dyk ser o termo que designa justia, a justia que devida a cada um, e a justia que funda a eunomia, a boa ordem, a ordem estabelecida pela prpria justia, e a isonomia, a igualdade de direitos entre todos os cidados, ou seja, a mesma justia para todos.

10 Evidentemente que esta educao era exclusivamente dirigida a crianas livres do sexo masculino. A educao feminina domstica e a cargo da me, no gineceu. Ser preciso esperar por Plato para vermos, pela primeira vez, defendida a educao para as mulheres.

11 Porque a educao em Esparta possui, como se sabe, caractersticas muito especficas, as quais so, como cremos, mais ou menos conhecidas, e porque, dada a sua peculiaridade, um caso parte que no tem repercusses nem influncia significativa no ideal global da educao grega, no a trataremos aqui.

12 De facto, s representaes trgicas assistia, em peso, toda a cidade e at os mais pobres podiam levantar gratuitamente os seus bilhetes.

13 Em passos seguintes, a expresso utilizada por Protgoras j techn politiks (cf. Plato, Protgoras, 322 b in: PEREIRA, 1971,394-395.

Mas, como se sabe, ainda hoje est por resolver a questo de saber se a pedagogia uma cincia ou uma arte. Ora, no foi como cincia, mas sim como arte (techn) que os sofistas encararam a educao.

14 Cf. PLATO, Protgoras, 349 a, onde se afirma que os sofistas pretendem "ensinar a virtude" (Paideusis kai arets didaskalos), ou que afirmam "educar homens" (Paideuein antropous), como aparece na Apologia de Scrates (19 e), ou ainda que se reclamam "possuir conhecimentos de aret humana e poltica" (PLATO, Apologia de Scrates, 20 b. Na traduo portuguesa consultada ver pp. 69-70.

15 Neste sentido, pode talvez dizer-se que, com os sofistas, se realizou, pela primeira vez, o princpio da liberdade de ensinar e de aprender. De facto, eles ensinam aquilo em que, por opo sua, se tornaram especialistas (sophos) e s aceita os seus ensinamentos quem os deseja. Cf. PLATO, Protgoras, 318 e, onde o prprio Protgoras tece estas consideraes: "- Os outros sobrecarregam os jovens. Quando estes procuram fugir de um tecnicismo excessivo, os sofistas foram-nos a atirar-se sobre ele, ensinando-lhes o clculo, a astronomia, a geometria e a msica - e, ao mesmo tempo que dizia isto, lanava um olhar a Hpias - ao passo que quem vier ter comigo no estudar mais nada seno o assunto que o trouxe c."

16 Porque a concepo e o modo de educao socrtica j foi objecto de um outro artigo, abstemo-nos de o tratar aqui com mais detalhe. Cf. FONSECA, Maria de Jesus, Scrates..., in: MILLENIUM,1996,4, 38-55.

17 Tambm j nos referimos a Plato num outro artigo, para o qual remetemos o leitor, e embora a o tema no fosse exactamente a educao tal como Plato a concebe, para no alongar mais este texto, guardamos para uma outra oportunidade o retorno a Plato. Cf. FONSECA, Maria de Jesus, Cincias da Educao e Filosofia da Educao, in: MILLENIUM, 1997, 2, 119-126. (Ver, especificamente, p. 120)

18 A indissolubilidade destes conceitos, homem e educao, j foi realada noutro texto: Cf. FONSECA, Maria de Jesus, Conceitos fundamentais subjacentes ao tema proposto, in: MILLENIUM, 1997, 6, 133-138.

19 Por isso que o contedo desta formao geral se foi sucessivamente alargando: "no incio era apenas a ginstica e a msica mas o currculo estendeu-se leitura e escrita, depois arte da palavra ou retrica e finalmente arte de pensar ou filosofia." De qualquer modo, "o ponto de partida - ele vai deixar um trao profundo na prpria concepo de ensino - a formao desinteressada no visando a preparao para uma profisso mas simplesmente formar o carcter e o cidado." (MIALARET e VIAL, 1981:29)

20 S assim se compreende que Scrates possa ser considerado o fundador da antropologia filosfica.

21 O sublinhado nosso.

22 Parece oportuno relembrar aos poderes polticos que a educao se lhes impe "como uma obrigao e um destino", como uma tarefa da qual no podem demitir-se, sob pena de fugirem sua misso social que a sua prpria razo de ser. verdade que, entre ns e na actual situao portuguesa, o poder poltico assegura a sua misso social e educativa, mas apenas e essencialmente no que respeita Educao Bsica, ao Ensino Bsico que, por ser bsico, , necessariamente, universal e, corolariamente sua universalidade, obrigatrio e gratuito. Mas o que dizer relativamente ao cumprimento dessas funes no que respeita aos outros nveis de ensino? Temos em vista, evidentemente, o caso mais flagrante, mais na ordem do dia, o mais discutido e aquele onde a guerra se instalou h j longo tempo - o caso do Ensino Superior. Com efeito, relativamente ao Ensino Superior, o Estado quer delegar-se e desresponsabilizar-se da sua funo, considerando que a ele, ensino superior, que compete fundamentalmente encontrar as suas prprias fontes de financiamento e, portanto, assegurar a sua subsistncia ou mesmo a sua sobrevivncia. "O Estado, liberto da sua misso social, que deveria ser a razo das suas funes, deixa Universidade a 'liberdade' e o dever de angariar os seus prprios fundos, merc de convnios realizados com as empresas e at do elevado pagamento de propinas. Da que a autonomia universitria acabe por ser uma arma utilizada pelo Estado, no s para responsabilizar a Universidade pelos 'seus erros', mas tambm para justificar os baixos oramentos que lhe so por ele atribudos." (TORGAL, 1990:13) Ora, entender do mesmo autor quanto nosso que "A Universidade tem de manter uma finalidade social (...). E o Estado no pode descomprometer-se da construo dessa finalidade, luz dos princpios constitucionais que o regem" (TORGAL, 1990:14) e, sendo assim, evidente que "A Autonomia da Universidade uma conquista a preservar. Mas Autonomia no significa independncia, nem desresponsabilidade do Estado." (TORGAL, 1990:16)

Retorquir-nos-o que h que fazer escolhas e definir prioridades e que, por isso, h que assegurar o Ensino Bsico porque s ele bsico, isto , essencial e, tambm por isso, comum a todos. Responderemos que tudo depende do que se entende por bsico. Ser suprfluo, isto , no ser bsico, para uma sociedade, assegurar uma formao integral, de nvel superior, se no a todos pelo menos maior parte dos seus membros, aqueles que o desejarem? Ser excedentrio e, portanto, muito para alm do que bsico, formar cidados "com uma slida preparao cientfica e cultural" (ponto 3 do art. 11 da L.B.S.E.) ou com "uma slida formao cultural e tcnica de nvel superior"? (ponto 4 do art. 11 da L.B.S.E.) Ser que isso no se repercutir na prpria sociedade, no seu desenvolvimento e no seu progresso? Ser que, com isso, no promoveremos uma sociedade melhor?

23 Esta intercepo entre os dois sentidos referidos, constata-se na nossa LBSE onde, no ponto 2 do art14, se l "O ensino politcnico realiza-se em escolas superiores especializadas nos domnios da tecnologia, das artes e da educao, entre outros." (O sublinhado nosso.) Sendo assim, cada escola superior politcnica especializada num determinado domnio e todas, no seu conjunto, ensinam, ento, muitas e diversas tcnicas.

24 De facto, o possuidor do saber tcnico, sabe fazer, sabe como fazer, mas no sabe porque faz, isto , no fundamenta o como no porqu, incapaz de enquadrar o que faz e como o faz na razo de ser que lhe daria sentido e significado. Este desconhecimento do porqu, que suporta, legitima, ilumina, esclarece e funda o como se faz, implica que o saber tcnico, assim concebido, seja um saber fundado apenas na experincia, no hbito, na rotina, na repetio mecnica dos mesmos gestos. S a theoria permitiria explicar e compreender o como se faz, esclarecendo as razes do porque se faz assim e no de outro modo e, desta forma, s ela daria inteligibilidade ao como se faz.

25 "Segundo Aristteles, quando as aces se seguem a uma escolha deliberada (proairesis) podem considerar-se morais ou imorais (...), e da ciarem dentro do campo das cincias prticas" (episteme praktikai), isto , tica e poltica, que tm como objecto o bem que visado pela aco." (PETERS,1977:195) Cf. Aristteles, tica a Nicmaco.

SUMRIO