os universais - porfirio, boecio e ockham

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    ANTOLOGIA DE TEXTOS

    (Porfrio, Bocio, Ockham)

    Bento Silva Santos(UFES Departamento de Filosofia)1

    I. A QUERELA MEDIEVAL DOS UNIVERSAIS O PROBLEMA

    Antes de explicitar a problemtica inerente aos Universais, impem-se

    observaes preliminares acerca do objeto de estudo, de seus pressupostos e

    paradoxos. Uma vez descrita a histria do problema dos Universais,

    distinguiremos duas problemticas fundamentais da questo que o texto de

    Porfrio de Tiro formulou e legou aos Medievais.

    A. Objeto, pressupostos e paradoxos do problema

    De onde provm o problema que os Medievais designaram como

    Querela dos Universais? Ter sido o texto fundador da Isagoge de Porfrio

    no sculo III d.C. que fez eclodir teses fortes chamadas nominalismo e

    realismo? Supondo, porm, que o problema dos Universais seja um

    corpus estranho Isagoge, o movimento complexo da exegese do conjunto docorpus aristotlico, que veicula um platonismo residual, ter sido ento o

    1 Os textos aqui disponibilizados so o resultado de uma pesquisa intitulada A QuerelaMedieval dos Universais: as principais interpretaes (sculos III-XIV), iniciada em 2001com uma bolsa de recm-doutor concedida pelo CNPq e foi executada no Departamento deFilosofia da UFRJ at maio de 2002. Desde ento venho aprofundando a pesquisa sobre osUniversais no Departamento de Filosofia da UFES (www.ufes.br), da qual sou docente deHistria da Filosofia Medieval desde 2002.

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    responsvel pelo emaranhado de conceitos, de objetos tericos e de problemas

    dos quais o pensamento medieval extraiu, como uma de suas figuras possveis,

    o problema dos Universais? possvel ilustr-lo intuitivamente? Enfim, o

    problema se reduz s entidades historiogrficas designadas sob as formas de

    realismo e nominalismo ou remete a diversos domnios ou disciplinas

    mais fundamentais que concernem s relaes entre ser, linguagem e

    pensamento, tais como teoria da percepo, ontologia dos qualia, teoria da

    cognio, semntica e filosofia da linguagem? As respostas a tais questes

    constituiro o contedo das pginas subseqentes.

    a) Ilustrao intuitiva do problema dos Universais?

    Uma abordagem assaz elementar do problema dos Universais poderia

    ser a seguinte2: diante de ns existem duas mas vermelhas (naturalmente

    este dado no muda se as mas fossem verdes ou amarelas). Observemo-lasatentamente como se fssemos crianas curiosas ou extrovertidas. As

    observaes concerniriam naturalmente a aspectos, por assim dizer,

    empricos desses dois objetos: a forma, a grandeza, os matizes da cor e

    eventuais caractersticas que se encontram em uma ma e no na outra, de

    sorte que seramos capazes de distingui-las, mesmo que primeira vista

    paream iguais.

    Uma vez superadas estas primeiras observaes, diante de ns, seja

    como for, esto duas mas vermelhas, diante das quais no temos dificuldade

    2 Retomamos aqui a apresentao do problema fornecida por P. V. SPADE, Introduction,em J. WYCLIF, On Universals (Tractatus de universalibus) (tr. A. KENNY).Oxford,Clarendon Press,1985, XV-XVIII

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    em reconhecer como iguais, ao menos, em relao a cor. Enfim, ao

    vendedor tnhamos pedido duas mas vermelhas e ele nos deu essas duas

    mas, que reconhecemos ser da mesma cor. Neste momento em nossa mente

    se insinua uma questo mais sutil: diante de meus olhos existem, de fato, duas

    mas, a ma A e a ma B; estas mas so da mesma cor. Mas a cor

    que vejo na ma A, mesmo sendo igual da ma B talvez no seja a

    mesma cor, mas uma outra cor. Em suma, poderei pensar que, alm de ter

    duas mas iguais, poderei ter tambm duas cores iguais, mas distintas.

    O ponto nevrlgico ento: quantas cores eu vejo?... vejo uma s cor

    ou duas cores? Alguns podero afirmar que se tem uma s cor o vermelho -,

    que se encontra em dois objetos distintos: as duas maas. Esta a posio do

    realismo: eu vejo uma s cor a vermelhido que simultaneamente

    partilhada pelas duas maas ou comum s duas -, portanto, uma s e mesma

    cor, ainda que inerente s duas coisas distintas e presente ao mesmo tempo emdois lugares diferentes. O que preocupa o realista o fato de que sem

    conceitos universais gerais como, por exemplo, o conceito geral de

    vermelho no estou mais em grau de fundar objetivamente as minhas

    afirmaes sobre cores vermelhas singulares que encontro na realidade;

    torna-se ento absolutamente arbitrrio qualificar como vermelho a corque

    encontro nas rosas, nas mas ou nas folhas. O meu conhecimento de tais

    cores cairia em uma espcie de mbito privado e, portanto, me conduziria ao

    ceticismo acerca das possibilidades de conhecer, de modo objetivo, o mundo

    externo.

    Outros, ao contrrio, podero sustentar que existem duas cores, que

    certamente aparecem iguais, mas que so, respectivamente, o vermelho da

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    ma A e o vermelho da ma B. Tal a soluo oposta do nominalismo:

    vejo duas cores que so certamente semelhantes, mas que basta observar

    para ver que elas no deixam de ser, porm, duas cores vermelhas. Os

    argumentos aduzidos a favor de uma tese e aqueles adotados a favor da outra

    tese so muito semelhantes. Aqueles que sustentam a presena de uma s cor

    afirmaro que basta observar para ver somente a cor vermelha, mesmo se a

    encontro aqui nesta ma e acol naquela outra ma. Se no se tratasse da

    mesma cor haveria uma grande aporia na linguagem porque todas as vezes em

    que falo de vermelho, quer se trata de mas ou de outras coisas,

    compreenderemos sempre uma coisa diversa. Neste sentido talvez no

    poderamos falar de nada, ou ento a linguagem se tornaria uma coisa assaz

    complicada para ser til porque deveremos impor um nome a cada ocorrncia

    de uma cor, a cada ma e assim por diante.

    b) Da ilustrao s relaes entre semntica e ontologia

    At aqui esbocemos uma ilustrao intuitiva do problema dos

    Universais a partir as entidades historiogrficas chamadas realismo e

    nominalismo, mas ser necessrio indagar at que ponto esta ilustrao

    articula suficientemente o problema da explicao dos conceitos gerais e o da

    teoria psicolgica da percepo das cores, j que todas as teorias dos filsofos

    medievais dificilmente correspondem a esta ilustrao da problemtica dos

    Universais. Se admitimos que o realismo e o nominalismo correspondem, em

    geral, a maneiras de ver, deve-se igualmente perguntar pelo critrio que

    justificaria o fato de que o realismo no v, como todo o mundo, duas mas

    vermelhas quando ele v duas coisas vermelhas. Na realidade, mesmo que

    verificssemos que a viso de um realista fosse diferente daquela do comum

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    dos mortais, dever-se-ia explicar como - em razo do simples fato de que ele

    v o mesmo vermelho em duas coisas vermelhas o realista chega a pensar

    que uma mesma entidade a vermelhido atualmente partilhada por essas

    duas coisas. Por conseguinte, tal como P. V. Spade a apresenta, a psicognese

    da crena em entidades universais faz do realismo o resultado de um

    simples paralogismo. O exemplo dado ilustra, na realidade, uma problemtica

    j constituda e suposta filosoficamente no sentido do nominalismo. Na

    realidade, existe aqui um s problema: o nominalismo de Guilherme de

    Ockham, que no uma filosofia da semelhana, nem sua teoria dos

    Universais uma antecipao do empirismo clssico3.

    Supondo que o realismo e o nominalismo sejam posies

    filosficas determinadas e homogneas ao longo da Idade Mdia - para

    caracterizar a querela dos Universais -, o historiador da filosofia medieval

    dever definir, antes de tudo, um quadro, um domnio de problemas, uma

    linguagem conceitual, um universo terico onde as doutrinas, os argumentos,as problemticas adquirem seu sentido, sua identidade e suas fisionomias

    prprias. Assim, quanto especificidade do objeto estudado, existe uma

    verdadeira dialtica entre continuidades e rupturas provenientes das mudanas

    de paradigmas: no sculo XIII, com a chegada do peripatismo greco-rabe e

    de novos questionamentos metafsicos; no sculo XIV, com as inovaes

    escotistas e a revoluo de Ockham cuja teoria semntica veicula

    indissoluvelmente psicologia cognitiva, teoria do signo (semitica) e teoria da

    referncia. Neste sentido, poderamos dizer que a querela dos universais no

    o problema dos universais.

    3 A. DE LIBERA, La querelle des Universaux. De Platon la fin du Moyen Age.Paris,Seuil, 1996, 17-20

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    De um lado, mesmo que nos limitssemos a um perodo relativamente

    breve da histria do pensamento medieval a idade mdia tardia (sculos XII

    e XV) nenhuma definio clara de realismo se impe a priori ao

    Historiador. Isto se verifica, primeiramente, no mbito da diversidade das

    acepes do termo realismo na filosofia moderna e contempornea, desde o

    atomismo lgico de Bertrand Russel afirmando a existncia especfica das

    relaes independentemente de seus termos at o realismo como afirmao da

    realidade do mundo exterior. Para fugir proliferao das relaes duais onde

    o realismo se encontra hoje engajado (realismo e idealismo, realismo e

    instrumentalismo, realismo e fenomenismo, realismo e operacionalismo,

    realismo e verificacionismo), devemos estabelecer que a significao do

    realismo medieval se circunscreve ao mbito das relaes entre semntica e

    ontologia. neste domnio que o realismo se ope ao nominalismo. Os dois

    realismos conhecidos na filosofia antiga o realismo platnico das Idias e o

    realismo aristotlico das substncias -, a mistura de suas problemticas e o

    antogonismo de seus discursos esto na base da Querela dos Universais. Esta

    resultou precisamente do quiasma destas duas formas de pensamento, um

    resultado acobertado pela obra de embaralhamento realizada nas primeiras

    linhas daIsagoge de Porfrio, cuja problemtica no constitui, porm, a fonte

    nica de todas as discusses sobre os Universais.

    De outro lado, o caso de Guilherme de Ockham sintomtico; o seu

    pensamento recebeu o rtulo de nominalismo. No sculo XV, a designao

    de Ockham como chefe de grupo dos nominalistas corresponde a uma escola

    ou a um movimento histrico real? No tempo de Ockham, as condenaes de

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    1339 e de 1340 visavam autores reconhecidos como nominalistas e

    particularmente Ockham? Se a doutrina condenada e defendida no sculo XV

    faz meno especialmente da tese ontolgica particularista e do recurso ao

    estudo das propriedades dos termos para decidir a verdade das proposies4,

    as teses condenadas no sculo XIV e que a historiografia julgou por muito

    tempo como critrios do nominalismo concernem tambm onipotncia de

    Deus, ao papel da vontade, s relaes entre razo e f, possibilidade de um

    conhecimento do no-existente5. Alm disso, o sculo XII teve seus

    Nominales6, cuja identificao e doutrina no nos so conhecidas seno pela

    obra de Pedro Abelardo que, segundo a historiografia dominante, teria sido

    o personagem principal e talvez o iniciador desta corrente por certos

    tratados de lgica contemporneos de Abelardo e pelas referncias mais ou

    menos explcitas que podemos extrair da leitura dos textos da segunda metade

    4 , ao menos, a apresentao que fornece a carta endereada pelos professores da

    Universidade de Paris em resposta interdio feita por Lus XI de ensinar a doutrina decertos autores: Ockham, Gregrio de Rimini, Buridan, Pedro dAlly, Marslio dInghen,Adam Dorp, Alberto de Saxe, e outros nominalistas. A carta foi publicada por F.EHRLE, Der Sentenzenkommentar Peters von Candia, des Pisaner Papstes AlexandersV.Mnster,1925, 322-326

    5 No consideramos aqui os erros de perspectiva induzidos pelo recenseamento dessas tesespelos historiadores at os anos sessenta. Segundo crticos recentes, as condenaes de 1339so menos uma interdio de ensinar a doutrina de Ockham do que uma condenao daexclusividade que lhe era concedida por alguns. Quanto s de 1340, longe de serem anti-ockhamistas, elas seriam, antes, a obra do partido buridaniano e visariam um anti-

    ockhamista: Nicolas dAutrecourt. Cf. C. MICHON, Nominalisme. La thorie de lasignification dOccam.Paris,Vrin,1994, 15s

    6 H um consenso em afirmar que no sculo XII a Querela dos Universais eclodiuverdadeiramente no ocidente. nesta poca que se situa, em torno das figuras carismticasde Roscelino de Compine ( 1120, que identifica os universais a simples signoslingsticos, ou, mais radicalmente ainda, a simples rudos de voz, flatus vocis,desprovidos de valor cognitivo) e de Pedro Abelardo (que foi um realista contra Roscelinoe um nominalista contra Guilherme de Champeaux), o aparecimento do nominalismo comodoutrina de conjunto sobre os Universais.

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    do sculo XII e da primeira metade do sculo XIII. A questo paradoxal que

    colocamos em relao aos protagonistas da querela dos Universais no sculo

    XII a seguinte: osNominales eram nominalistas? Desta questo deriva uma

    segunda: em funo de sua doutrina acerca dos Universais que osNominales

    receberam seu nome? Enfim, quaisquer que sejam as respostas, uma terceira

    questo se impe: quem eram os Nominales? Trata-se, como dissemos, de

    Abelardo e de sua escola ou de um grupo mais vasto, mais compsito, at

    mesmo mais heterogneo? Uma definio estrita do nominalismo a partir da

    doutrina reconstruda dos Nominales problemtica. Por conseguinte, tais

    fatores no se deixam coordenar em uma teoria de conjunto que pudesse

    abarcar univocamente o nominalismo dos autores dos sculos XII e XIV7. Se,

    portanto, a querela dos Universais mltipla e comporta tantos aspectos -

    noticos, lingsticos, lgicos, psicolgicos e ontolgicos -, a sua

    enunciao exigir uma abordagem mais precisa que identifique os objetos

    tericos que os medievais designaram sob a forma Querela dos Universais,querela que envolve as relaes entre semntica e ontologia.

    Sob um aspecto mais preciso, podemos dizer ento que o problema dos

    Universais uma figura de debate que, desde a antigidade tardia, ops e uniu

    ao mesmo tempo o platonismo e o aristotelismo. Posies historiogrficas

    restringiram o problema ao conflito entre realistas, conceptualistas e

    nominalistas e, assim procedendo, fizeram com que o problema dos

    7 Se verdade que os Nominales tiveram uma posio nominalista em relao aosUniversais, o terreno em que eles se manifestam no se restringe, porm, a tal problemtica.Cf. C. ARTHUR R. DO NASCIMENTO, A querela dos universais revisitada, Filosofia(Cadernos PUC, 13), s.d., 37-73

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    Universais se tornasse um problema eterno8, uma questo que atravessaria a

    histria para alm das rupturas epistemolgicas, das revolues cientficas e

    outras mudanas daejpisthvmhejpisthvmhejpisthvmhejpisthvmh9. Se descermos, porm, esfera dos corpora

    filosficos e aos procedimentos das tradies interpretativas, verificaremos

    que a estrutura problemtica imposta aos Universais pela trplice posio

    doutrinal do realismo, do conceptualismo e do nominalismo a que a

    escolstica neoplatnica tardia (sculos V e VI), imps, primeiramente, como

    chave de leitura, s Categorias de Aristteles. A questo que se coloca,

    portanto, a seguinte: como e por quais razes esta chave de leitura passou da

    categorias aos Universais?

    Ora, entre os Comentadores antigos de Aristteles, existiam trs teorias

    acerca da natureza das categorias: a primeira as considera comofwnaifwnaifwnaifwnaiv, isto ,

    sons vocais; a segunda, como o[ntao[ntao[ntao[nta, seres ou entes; a terceira, como

    nohvmatanohvmatanohvmatanohvmata, noemas ou noes, ou, como diramos hoje, objetos depensamento10. A definio das Categorias como sons vocais, noemas ou

    entes reapareceu na Idade Mdia, e a evoluo desta trade, mediante a

    adaptao de vocabulrio e das flutuaes terminolgicas - sob a forma de

    8 Cf. C. HUBER, Critica del sapere.Roma,PUG,1998: certamente um problema nsito

    na prpria existncia humana (...) Por essa razo um problema eterno, que talvez noser resolvido e que se coloca sempre de novo (341).

    9 A. DE LIBERA,La querelle des Universaux..., 13

    10 Um dos testemunhos mais antigos desta tripartio provm de CLEMENTE DEALEXANDRIA, Stromates VIII,8,23,1 (ed. Sthlin, III, 94,5-12), que distingueojnovmataojnovmataojnovmataojnovmata (nomes), nohvmatanohvmatanohvmatanohvmata (conceitos, dos quais os nomes so os smbolos) e

    uJpokeivmenauJpokeivmenauJpokeivmenauJpokeivmena (substratos reais, dos quais os conceitos so, em ns, as impresses oumarcas).

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    palavras/nomes, conceitos e coisas11 -, mostra que por trs das entidades

    historiogrficas (realismo, conceptualismo, nominalismo) existem escolhas e

    articulaes disciplinares (ontologia, psicologia, semntica) que condensam

    todas as questes conexas e verdadeiras do problema dos Universais: da teoria

    da percepo teoria da cognio. Um texto que permanece de um extremo ao

    outro da antigidade tardia e da Idade Mdia, companheiro inseparvel da

    Isagoge: as Categorias. As grandes opes filosficas sobre os Universais se

    decidem na teoria das Categorias e em seus textos satlites, como, por

    exemplo, o comentrio de Bocio12.

    As consideraes at aqui feitas supem, portanto, que se saiba porque

    os Universais entraram na esfera ontolgica da filosofia. Em sua introduo s

    Categorias aIsagoge -, Porfrio quis expor a doutrina aristotlica sobre as

    cinco espcies fundamentais de termos universais chamados Predicveis: o

    gnero, a espcie, a diferena, o prprio e o acidente. Mas, realizar esteprojeto, o autor desejou abster-se das questes mais elevadas, especialmente

    daquela que versava sobre a natureza dos significados dos Predicveis. Foi

    graas a Porfrio, atravs de seu segundo tradutor latino, Bocio (o primeiro

    11 O termofwnaifwnaifwnaifwnaiv, traduzido por voces (sons vocais) deu lugar progressivamente a outrostermos: sermo, nomen (em Abelardo), terminus (coma lgica terminista do sculo XIII) eterminus vocalis (com os nominalistas do sculo XIV); o termonohvmatanohvmatanohvmatanohvmata foi substitudo

    por conceptus, intentiones ou por outras expresses mais prximas de Aristteles, tais comoaffectiones ou passiones animae, ou terminus mentalis no sculo XIV; enfim, o prpriovocbulo o[ntao[ntao[ntao[nta deu lugar, portanto, res (coisas).

    12 Um exemplo privilegiado do liame entre a problemtica dos Universais e a doutrina dascategorias a controvrsia entre Abelardo e Alberico sobre a categoria de substncia.Ambos interpretam diferentemente o texto de Bocio, e a posio que cada um assumemostra as ambigidades do complexo aristotlico-neo-platnico na histria medieval dosUniversais. Cf. J. MARENBON, Vocalism, Nominalism and the Commentaries on theCategories from the Earlier Twelfth Century, Vivarium 30/1 (1992) 51-61

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    foi Marius Victorinus, 370)13, que os princpios da lgica penetraram desde

    o sculo V, e antes mesmo do renascimento da filosofia de Aristteles, no

    mbito do pensamento ocidental. Em outras palavras: saber o que Porfrio

    tinha por objeto de estudo o exame das quinque voces - permitir descobrir o

    que eram, em seu esprito, os objetos tericos que a Idade Mdia chamou de

    Universais. A ttulo de exemplificao, consideremos a sntese de J. Tricot

    acerca do livro de Porfrio:

    AIsagoge tem por objeto o estudo das quinque voces (ascinco vozes ou denominaes: o gnero, a espcie, a diferena, o

    prprio e o acidente), que desempenham um grande papel na

    doutrina de Aristteles, mas sobre as quais as obras do Estagirita

    no forneceram seno breves indicaes (J. TRICOT).

    Segundo este resumo, os Universais so o gnero, a espcie, a diferena,

    o prprio e o acidente, e os termos como taisaparecem inequivocamente nasobras de Aristteles. A formulao de J. Tricot no utiliza, porm, o termo

    universais, mas, sim, uma expresso latina de Bocio herdada do prprio

    Porfrio empregada acidentalmente e de seus comentadores gregos, os

    quais a generalizam: quinque voces: cinco vozes ou cinco sons, o que segure

    um ponto de vista nominalista, para no dizer vocalista, acerca do objeto

    de pesquisa. Em outras palavras: o captulo stimo da Isagoge intitulado:Peri; th'" koinwniva" tw'n pevnte fwnw'nPeri; th'" koinwniva" tw'n pevnte fwnw'nPeri; th'" koinwniva" tw'n pevnte fwnw'nPeri; th'" koinwniva" tw'n pevnte fwnw'n - Sobre as caractersticas comuns s

    cinco vozes (J. TRICOT) ou Sobre as caractersticas comuns do cinco

    predicveis (E. W. WARREN). O ttulo da seo na tradio latina o

    seguinte: De communitatibus omnium quinque universalium. A julgar pelo

    13 Cf. P. HADOT, Porfirio e Vittorino.Milano,Vita e Pensiero,1993

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    ttulo desta seo daIsagoge, Porfrio seria um vocalista. Acontece, porm,

    que o prprio texto abre-se com uma tese inegavelmente ambgua:

    Koino;n me;n dh; pavntwn to; kata; pleiovnwn kathgorei'sqaiKoino;n me;n dh; pavntwn to; kata; pleiovnwn kathgorei'sqaiKoino;n me;n dh; pavntwn to; kata; pleiovnwn kathgorei'sqaiKoino;n me;n dh; pavntwn to; kata; pleiovnwn kathgorei'sqai - O que h de

    comum a todas essas noes o fato de ser atribudo a uma pluralidade de

    sujeitos (J. TRICOT) ou Todos os predicveis so predicados de muitas

    coisas (E. W. WARREN). A traduo de Bocio ainda mais rigorosa:

    Commune quidem omnibus est de pluribus praedicari. Traduzindo o grego

    to; kata; pleiovnwnto; kata; pleiovnwnto; kata; pleiovnwnto; kata; pleiovnwn por omnibus (a todos), o tradutor latino no se

    posiciona. A traduo de J. Tricot elucida a questo no sentido do

    conceptualismo (cf. a expresso notions), como se Porfrio estivesse falando

    explicitamente denohvmatanohvmatanohvmatanohvmata; E. W. Warren esquiva-se do problema. Se o texto

    grego original oscila entre o vocalismo (tw'n pevnte fwnw'ntw'n pevnte fwnw'ntw'n pevnte fwnw'ntw'n pevnte fwnw'n) e a impreciso

    artstica (me;n dh; pavntwnme;n dh; pavntwnme;n dh; pavntwnme;n dh; pavntwn), surge uma questo bsica: em que sentido

    possvel existir em Porfrio um problema dos Universais? Falando como

    lgico, Porfrio se abstm de tratar de seu prprio problema. Disto prova ofato de que a considerao dos cinco como simples vozes (fwnaifwnaifwnaifwnaiv) deriva

    da lgica e no constitui a verdadeira perspectiva acerca da questo dos

    Universais, nem tampouco a ltima palavra do pensamento de Porfrio: neste

    sentido, aIsagoge possui uma teoria das cinco vozes, mas no uma teoria dos

    Universais.

    Em conseqncia, as observaes precedentes fecham qualquer

    possibilidade para o surgimento de um problema dos Universais a partir do

    projeto terico (ou, antes, da funo propedutica) daIsagoge: se o gnero, a

    espcie, a diferena, o prprio e o acidente so vozes, o problema no versaria

    sobre o que so os Universais, uma vez que ele j aparece resolvido. Sendo

    assim, se a perspectiva de Porfrio se inclina originariamente para o

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    nominalismo, tendncia confirmada pelo neoplatonismo tardio, compreende-

    se deste modo o fato de que a natureza do liame entre teoria dos Universais e

    teoria das categorias no problematizada. Alm disso, quando conhecemos o

    fato de que prprio Aristteles definiu, em diversas ocasies, o que entendia

    por termos universais ou predicveis, por que foi necessria a interveno

    de Porfrio para introduzir o leitor no estudo das Categorias? Emerge aqui,

    portanto, um primeiro paradoxo: a apresentao dos universais por Porfrio

    no contm o vocbulo universais, e J. Tricot, seu tradutor em lngua

    francesa, serviu-se de uma expresso (as cinco vozes) que veicula, antes de

    tudo, uma tese vocalista (nominalista). Alm disso, no se compreende bem

    como um problema dos Universais possa surgir de um estudo

    voluntariamente rido, mas assaz acessvel (sic) das cinco vozes ou

    denominaes, estudo, alis, inspirado parcialmente em diversas passagens

    dos Tpicos de Aristteles. Enfim, o problema dos Universais abarca um

    emaranhado de questes que, no movimento complexo da exegese doconjunto do corpus aristotlico, se concentraram em torno da Isagoge de

    Porfrio, cujo texto foi apenas um pretexto da problemtica. No seria o

    caso, ento, de encontrar a contribuio especfica de cada doutrina a de

    Plato, a de Aristteles, a de Porfrio em uma rede complexa na qual, a partir

    de Bocio, cada posio filosfica perde paulatinamente seu teor original?14

    B. Entre platonismo e a aristotelismo: o problema lgico e a noo de

    universal de comunidade

    14 Cf. A. DE LIBERA, A Filosofia Medieval.So Paulo,Loyola,1998, 436

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    possvel distinguir duas problemticas dos Universais, ou duas fontes

    para o problema. A primeira uma problemtica mais lgica, que encontraria

    sua fonte na definio aristotlica do universal, retomada por Porfrio e mais

    tarde por Abelardo15 : alguma coisa apta a ser predicada de muitas16. A

    predicao a noo-chave que permite distinguir particular, ou indivduo, e

    universal: o primeiro predicado de um s; o segundo, de vrios. Assim, por

    exemplo, animal um universal com relao s diferentes espcies animais;

    homem um universal relativamente a Scrates, Plato, etc. No texto doDe

    Interpretatione, Aristteles parece falar das coisas. Mas Ockham o interpreta

    como algo que versa sobre os signos; somente um signo predicvel, a

    fortiori s um signo predicado de muitos. O que dito (de) ou predicado

    (de) no pode ser seno um signo (uma coisa no pode ser dita, mas ela pode

    ser mostrada). Por conseguinte, o carter ontolgico do segundo captulo das

    Categorias distinguiria, pela propriedade ser dito de, os signos das coisas,

    ao passo que Bocio tinha assimilado esta propriedade universalidade edistinguido assim as substncias e acidentes universais das substncias e

    acidentes singulares. Esta limitao da predicabilidade s aos signos, ou da

    predicao a uma relao entre signos, determina o nominalismo, ao passo que

    o realismo sustenta que existe uma relao ontolgica de predicao. A

    interpretao de Aristteles em um sentido ou em um outro, se ela pode ser

    examinada em si mesma, no dirime a questo. O problema no consiste tanto

    em saber se Aristteles fala dos signos ou das coisas, mas em saber se aos

    signos universais correspondem realidades universais.

    15 PORFRIO, Isagoge 17-21; ABELARDO, Logica Ingredientibus 18-20: Aristtelesdefine o universal como aquilo que pode ser naturalmente apto para ser predicado demuitos seres.

    16 ARISTTELES,De Interpretatione 17a 34

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    Se a primeira grande problemtica de ordem lgica, ento o tema dos

    Universais, objeto do presente projeto, adquire grande relevncia para o

    estudo da Filosofia Medieval, pois toda pessoa instruda era treinada em lgica

    e gramtica. Essas disciplinas proporcionaram tcnicas de anlise e um

    vocabulrio tcnico que permeiam os escritos teolgicos, filosficos e

    cientficos. Ao nvel prtico, a lgica proveu o treinamento necessrio para a

    participao nas disputas que eram a caracterstica central da instruo

    medieval , e cuja estrutura com argumentos pr e contra uma tese, seguida

    de uma soluo - est presente em muitas obras escritas. Ao nvel terico, a

    lgica, como outros assuntos, envolveu o estudo de textos escritos mediante

    leituras e comentrios escritos. O curriculum dos estudos lgicos no sculo

    XII era baseado fundamentalmente naLogica vetus (aIsagoge de Porfrio, as

    Categorias e o Sobre a Interpretao de Aristteles), e o paradoxo que

    emerge o seguinte: a tradio latina disps por longo tempo s destaAntigaLgica para tratar de uma questo que, segundo o prprio Porfrio, a lgica

    como tal no podia nem devia assumir17.

    A segunda fonte do problema dos Universais repousa na noo de

    universal de comunidade. A expresso pertence a Bocio, permitindo-nos

    levar em conta apenas o aspecto metafsico do problema: como uma coisa

    pode ser comum a vrias, sem que se caia nas absurdidades do platonismo?

    Tal ser a crtica, por exemplo, de Ockham que invalida totalmente o universal

    de comunidade, conservando, porm, o universal de predicao em sua

    17 Cf. E. J. ASHWORTH, Logic Medieval, em CRAIG, E. (ed.) Encyclopedia ofPhilosophy 5. London-New York, Routledge,1998, 746-759

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    interpretao lgica18. Seja como for, o universal compreendido como aquilo

    que dito de vrias coisas uma metamorfose da definio combinatria das

    substncias (primeiras e segundas) e dos acidentes (universais ou particulares)

    a partir das relaes de inerncia (esse in) e de predicao (dici de) formulada

    por Aristteles no captulo 2 das Categorias.

    A verdadeira disputa dos Universais comea no sculo XII, e o texto de

    Porfrio est no corao dos debates, onde sobressaem especialmente as

    figuras de Abelardo e de Ockham. No sculo XIII surge uma forte

    complicao do problema dos Universais, especialmente em relao s

    interpretaes divergentes desses dois lgicos, em virtude da chegada de

    textos daMetafsica de Aristteles e de seus comentadores rabes. A doutrina

    de Averris sobre o livro Z daMetafsica, que reflete um aristotelismo estrito,

    recusa o fato de que o universal possa ser substncia. Avicena sustenta,

    porm, uma certa indiferena da essncia ou da natureza em relao aexistncia ou no-existncia, da singularidade ou da universalidade: ela

    adquire a primeira nas coisas; a segunda, no intelecto. So provavelmente

    esses textos vindos do Oriente - no tanto Porfrio e Bocio - que veiculam

    com eles toda a tradio neoplatnica, bem como o tema do uno separado do

    mltiplo e causa de sua inteligibilidade. Por fim, a questo da natureza do

    universal no poderia ser dissociada da notica aristotlica e da doutrina da

    abstrao da forma.

    18 No final do sculo XIV, WYCLIF distingue entre universal de causalidade e o derepresentao do universal de comunidade.

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    II. TEXTOS TRADUZIDOS19

    PORFRIO DE TIRO20(ca. 233-305)

    EijsagwghvEijsagwghvEijsagwghvEijsagwghv= INTRODUO

    1. Meu caro Cresario, dado que para receber o ensinamento relativo s

    categorias de Aristteles, necessrio saber o que seja (1) o gnero, (2) o que

    seja a diferena, (3) o que seja a espcie, (4) o que seja oprprio e (5) o que

    seja o acidente, e visto que tal conhecimento igualmente necessrio para

    fornecer definies em relao a tudo que diz respeito diviso e

    demonstrao, sendo til este estudo, vou-te fazer uma breve exposio desses

    pontos, esforando-me em percorrer brevemente, sob a forma de introduo, o

    que se encontra entre os mais antigos, abstendo-me de entrar em questes

    mais profundas e tocando somente e de modo comedido nas questes maissimples.

    2. Antes de mais, no que tange aos gneros e s espcies, acerca da

    questo de saber (1) se so realidades subsistentes em si mesmas ou se

    consistem apenas em simples conceitos mentais, (2) ou, admitindo que sejam

    realidades subsistentes, se so corpreas ou incorpreas, e, (3) neste ltimo

    caso, se so separadas ou se existem nas coisas sensveis e dependem delas, eu

    evitarei em falar, porque tais questes representam uma pesquisa mais

    19 Para o comentrio dos textos aqui apresentados, ver os artigos que escrevi sobre Porfriode Tiro, Severino Bocio e Guilherme de Ockham em minha HomePage:http://www.bentosilvasantos.com

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    profunda e exigem uma outra investigao e mais ampla; em compensao,

    procurarei mostrar-te, no que diz respeito aos gneros, s espcies e aos

    outros (termos) em questo, como os antigos e, de modo particular, os

    Peripatticos, trataram desses problemas de um ponto de vista mais lgico.

    20 Traduo de minha autoria: PORFRIO DE TIRO,Isagg. Introduo s Categorias deAristteles. Introduo, traduo e comentrio de Bento Silva Santos.So Paulo: AttarEditorial,2002, 35-36.

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    ANCIO SEVERINO BOCIO(ca. 470-524)

    Segundo Comentrio Isagoge de Porfrio21

    [TEXTO DE PORFRIO]

    No que diz respeito aos gneros e s espcies, diz Porfrio, me absterei

    no momento de decidir, (1) se eles subsistem ou so colocados (posita sunt)

    unicamente nos intelectos puros e nus, e, se eles subsistem, (2), se so

    corpreos ou incorpreos e (3) se so separados dos sensveis ou colocados

    neles (in sensibilibus posita) e acerca dessas posies (constantia circa ea),

    pois este trabalho assaz rduo e supe uma longa pesquisa.

    [COMENTRIO]

    Omito as questes mais elevadas, diz Porfrio, para que no perturbar

    intempestivamente os fundamentos e os primeiros frutos do leitor. Todavia,

    para no esconder essas coisas ao leitor, de modo que ele no pense que

    existam outras coisas ocultas alm daquelas elencadas, Porfrio acrescentauma lista das coisas que no intenciona tratar neste lugar.

    21 Cf. Anicii Manlii Severini Boethii in Isagogen Porphyrii commenta, ed. Samuel Brandt[Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, vol. 48.2].Vienna, F. Tempsky,1906,p.159 linha 3 p. 167 linha 20

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    Ora, as questes sobre as quais (Porfrio) prometeu nada dizer so

    contemporaneamente muito teis e misteriosas. Estas foram tratadas por

    muitos homens sbios, mas poucos deles foram capazes de dar-lhes uma

    resposta.

    A primeira de tais questes a seguinte: tudo aquilo que a mente

    compreende, ou se encontra constitudo na essncia mesma das cosias e

    concebido pelo intelecto e a razo o representa para si mesma, ou ainda no

    existe e uma imaginao vazia o descreve. Portanto, a questo a seguinte: a

    que tipo de compreenso pertencem o gnero e os outros (predicveis

    discutidos naIsagoge de Porfrio)? Compreendemos gneros e espcies como

    coisas que existem, das quais obtemos uma verdadeira compreenso, ou

    enganamo-nos a ns mesmos quando formamos, mediante pensamentos

    vazios da mente, coisas que no existem?

    Mas se estabelecemos que esses [os gneros e as espcies] existem

    verdadeiramente e, se portanto, sustentamos que a compreenso deles

    baseada em coisas que existem, ento surge uma outra questo mais difcil,

    visto que parece ser ainda mais difcil estabelecer e compreender a natureza do

    gnero em si mesmo. De fato, dado que tudo o que existe necessariamente

    corpreo ou incorpreo, o gnero e a espcie devem tambm pertencer a uma

    dessas categorias; por essa razo, de qual espcie aquilo que chamado

    gnero? corpreo ou incorpreo?

    Ora, no se pode saber com segurana que coisa o gnero, se no se

    sabe em qual dos dois grupos deve ser colocado. Mas mesmo quando esta

    questo tivesse sido solucionada no se eliminaria toda ambigidade. De fato,

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    se sustenta que os gneros e as espcies so incorpreas, uma outra questo

    atormenta a nossa inteligncia e exige uma resposta, ou seja, se subsistem em

    relao aos corpos ou se poderiam ser incorpreos sem nenhuma relao com

    os corpos? Com efeito, podem ser incorpreo de dois modos diversos: alguns

    podem existir sem os corpos e perdurar em sua incorporeidade permanecendo

    separados dos corpos, como, por exemplo, Deus, a mente a alma. Outros, ao

    contrrio, mesmo que sejam incorpreos, no podem existir separados dos

    corpos, como, por exemplo, a linha, a superfcie, ou ainda o nmero e as

    qualidades singulares, as quais, ainda que as julguemos incorpreas porque

    no ocupam as trs dimenses do espao, existem, porm, de maneira to

    conjunta aos corpos que no podem ser destacadas ou separadas desses, e se

    fossem separadas deles no mais existiriam.

    Procurarei resolver estas questes, mesmo que estas tenham aparecido

    assaz difceis ao prprio Porfrio, que recusou-se a resolv-los. Eu o farei parano deixar o leitor na incerteza, mas sem despender o meu tempo e o meu

    empenho nessas coisas que vo alm do assunto que me propus.

    Antes de tudo, portanto, estabelecerei alguns pontos acerca do dilema

    proposto pela questo. Em seguida, procurarei resolver e explicar o embarao

    da dvida.

    [O PROBLEMA]

    Os gneros e as espcies ou existem e subsistem por si mesmos, ou so

    formados pelo intelecto e s pelo pensamento.

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    [O ARGUMENTO CONTRA OS UNIVERSAIS]

    Mas os gneros e as espcies no podem existir. Esta afirmao podeser compreendida base de quanto segue.

    [O universal como uno]

    Com efeito, tudo aquilo que comum a muitas coisas ao mesmo tempo

    no pode ser uma s coisa. De fato, aquilo que comum pertence a muitos,

    sobretudo quando se trata da mesma coisa idntica presente inteiramente em

    muitos ao mesmo tempo. De fato, seja quais forem as espcies, seu gnero

    nico em todas e no pode acontecer que cada espcie arranque por assim

    dizer alguma parte dele. Ao contrrio, as (espcies) singulares tm todo o

    gnero contemporaneamente. Ora, isto faz, sim, que todo gnero colocado,

    contemporaneamente, nas coisas singulares no possa ser uma s (coisa). De

    fato, no pode acontecer que o gnero se encontre contemporaneamente e todo

    inteiro em muitas coisas e continue a ser em si mesmo numericamente um s.

    Mas se, porm, isto acontece, ento o gnero no pode ser uma s

    (coisa). Antes, esse no existe. De fato, tudo aquilo que existe, existe

    justamente porque um. O mesmo raciocnio pode ser feito para as espcies.

    Mas se o gnero e as espcie existissem, mas no fossem uma s coisa,

    mas muitas coisas, no existiria um gnero ltimo, mas ter-se-ia sempre um

    outro gnero colocado em um nvel mais alto que inclui tal multiplicidade de

    gneros mediante a expresso de um s nome. De fato, como de muitos

    animais, justamente porque tm alguma coisa de semelhante, mas no so a

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    mesma coisa, se estabelecem os seus gneros em comum, pelo mesmo motivo

    um gnero que se encontra em muitas coisas e, por isso, dotado de

    multiplicidade, tem uma semelhana justamente no fato de ser um gnero.

    Mas esta semelhana no uma s coisa, precisamente porque est em muitas

    (coisas), razo pela qual se deve procurar um outro gnero deste gnero. Mas

    uma vez que o tenhamos encontrado, (ento) pela mesma razo que se disse

    acima, dever-se- procurar um terceiro gnero. A argumentao procede

    necessariamente ao infinito, j que se trata de um procedimento que no tem

    fim.

    [O universal como comum]

    Ora, se um gnero numericamente um s no pode ser comum a

    muitos. De fato, uma coisa, se comum, ora:

    (a) comum pelas suas partes e ento o todo no comum. Ao contrrio,suaspartes pertencem s (coisas) singulares. Ou ento:

    (b) passam ao uso de quem as possui por um certo tempo, de modo que

    so comum, como um servo ou um cavalo. Ou:

    (c) comum ao mesmo tempo a todos, mesmo que no venha a

    constituir a substncia das coisas com as quais se encontram em

    comum. Por exemplo, um teatro ou um espetculo que so comuns a

    todos os espectadores.

    Mas o gnero no pode ser comum s suas mesmas espcies em

    nenhum desses modos. De fato, deve ser comum de modo a existir

    inteiramente nas coisas singulares e ao mesmo tempo e, alm disso, deve ser

    capaz de constituir e formar a substncia das coisas s quais comum.

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    Por conseguinte, se o gnero no uno porque comum e nem

    tampouco muitas coisas, porque [neste caso] um outro gnero pode ser

    encontrado que inclua aquela multido, evidente que o gnero no existe. A

    mesma coisa pode ser dita para os outros [predicveis discutidos na Isagoge

    de Porfrio].

    [O ARGUMENTO A FAVOR DOS UNIVERSAIS]

    [O universal coincide com a coisa existente]

    Mas se os gneros e as espcies e os outros (predicveis) so

    apreendidos s pelos (atos do) intelecto, (ento) toda inteleco provm de

    uma coisa que lhe anteposta [a partir da coisa apreendida], ou seja, como as

    coisas so (realmente) dispostas ou como as coisas no so (realmente)dispostas de fato, no se pode ter nenhum ato de inteleco sem um objeto.

    (Deste modo) se a inteleco do gnero e da espcie e dos outros predicveis

    provm de um objeto de modo que as coisas estejam assim como so

    (realmente) conhecidas, ento as coisas no so colocadas somente no

    intelecto, mas tambm na natureza das coisas.

    [O universal no coincide com a coisa existente]

    E deveramos outra vez perguntar qual a sua natureza, como se

    procurou fazer com a investigao precedente. De outro lado, se a inteleco

    do gnero e dos outros predicveis estabelecida pelas coisas, mas no no

    sentido em que as coisas submetidas ao intelecto esto (realmente) dispostas,

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    aquela inteleco que estabelecida pelas coisas, certamente deve ser vazia,

    mas no como as coisas so (realmente) dispostas; por isso, falso o que se

    compreende de modo diferente como as coisas (realmente) so.

    Assim, portanto, j que o gnero e a espcie no existem e nem

    verdadeiro o conhecimento deles quando so conhecidos, no h dvida de

    que toda esta preocupao pelos cinco predicveis deva ser abandonada, uma

    vez que uma investigao que no pesquisa aquilo que existe, nem aquilo

    que pode ser compreendido ou proferido.

    [A SOLUO]

    [Faculdades do conhecimento]

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    No momento, esta a questo sobre os assuntos mencionados acima.

    Procuraremos resolv-los, de acordo com Alexandre [de Afrodisia],

    raciocinando deste modo: no sustentamos que todo ato intelectivo que venha

    atravs de um objeto, sem que o mesmo objeto esteja (realmente) disposto,

    deva ser visto como falso ou vazio. Uma opinio falsa ocorre, em vez de um

    ato intelectivo, s nas coisas constitudas por uma composio (compositio).

    De fato, se algum compe e une com o entendimento aquilo que a natureza

    no permite que seja unido, ningum ignora que isto falso, como, por

    exemplo, se algum une um cavalo e um homem em sua imaginao e forma

    um centauro. Mas se aplica este procedimento por diviso e por abstrao,

    no uma coisa real existente, mas outra coisa prpria do intelecto.

    Entretanto, esta inteleco no de todo falsa. De fato, existem muitas coisas

    que tm o seu ser em outros [seres], dos quais no podem ser absolutamente

    separados, ou, se deles so separados, no subsistem por nenhuma razo.

    E para tornar isto claro atravs de um exemplo amplamente conhecido,consideremos o seguinte: a linha alguma coisa que existe em um corpo.

    Aquilo que esta , pertence a tal corpo, ou seja, esta realiza o prprio ser

    mediante o corpo. Isto nos ensina o seguinte: se a linha estivesse separada do

    corpo, no subsistiria. Quem, alguma vez, apreendeu com os sentidos uma

    linha separada de um corpo? Mas a mente, quando apreende em si mesma as

    coisas confusas e misturadas atravs dos sentidos, capaz de distingui-las

    mediante o pensamento.

    De fato, a faculdade sensitiva nos transmite, unida aos mesmos corpos,

    todas as coisas incorpreas que tm o seu ser nos corpos. Mas a mente, que

    tem a faculdade de unir as coisas desunidas e de distinguir as coisas unidas,

    distingue de tal modo as coisas que lhes so oferecidas pelos sentidos que

    apreende e v a natureza incorprea por si sem os corpos nos quais realizada.

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    De fato, so diversas as propriedades incorpreas misturadas nos corpos, e

    separveis do corpo.

    Portanto, os gneros e as espcies e os demais predicveis se encontram

    ou nas coisas incorpreas, ou nas coisas que so corpreas. Ora, se a mente as

    encontra nas coisas incorpreas, ento a tem imediatamente uma

    compreenso incorprea do gnero. Se, ao contrrio, detecta os gneros e as

    espcies nas coisas corpreas, ento segundo o prprio costume remove a

    natureza daquilo que incorpreo das coisas corpreas e a contempla simples

    e pura, como se fosse a forma em si mesma. Do mesmo modo, quando a

    mente percebe essas coisas [formas ou naturezas incorporas] misturadas ao

    corpos, separando-as [enquanto] incorpreas, contempla e examina somente as

    coisas incorpreas.

    Ningum diga, portanto, que pensamos o falso a propsito da linha,

    visto que mediante a mente a apreendemos como se estivesse separada das

    coisas corpreas, ainda que no possa existir separada dos corpos.De fato, nem toda inteleco que se concebe a partir das coisas

    apreendidas, diferentes das coisas mesmas que existem, deve ser considerada

    falsa, mas, como se disse acima, a nica coisa que a torna falsa dada pela

    composio, como quando colocando juntos um homem e um cavalo

    pensamos que o centauro existe [na realidade]. Mas a inteleco que faz isto

    mediante divises e abstraes eliminando aspectos que existem nas coisas,

    no somente no falsa, mas, antes, a nica capaz de encontrar aquilo que

    verdadeiro nas propriedades das coisas.

    Portanto, coisas deste tipo existem nas coisas corpreas e sensveis, mas

    so conhecidas separadamente das coisas sensveis justamente com o objetivo

    de contemplar a natureza e compreender as propriedades especficas.

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    [Natureza e definio dos universais]

    Por essa razo, quando os gneros e as espcies so pensados, porque

    se apreende uma semelhana a partir dos indivduos existentes, como a partir

    dos homens individuais [por exemplo] se apreende uma semelhana de

    humanidade entre eles. Tal semelhana, pensada pela mente e contemplada

    com verdade, torna-se uma espcie. Assim tambm, a semelhana de diversas

    espcies, que no pode existir seno nestas espcies ou em seus [respectivos]

    indivduos, produz o gnero quando levada em considerao. Portanto, essas

    coisas [os gneros] existem nos singulares, mas so pensadas como universais.

    A espcie no deve ser considerada seno um pensamento coligido a partir da

    semelhana substancial de indivduos que so diversos do ponto de vista

    numrico. O gnero um pensamento coligido a partir da semelhana das

    espcies. Esta semelhana torna-se sensvel quando est nos indivduos e

    torna-se inteligvel quando est nos universais. Assim tambm, quando sensvel est nos indivduos, mas quando conhecida se torna universal.

    Conseqentemente, [gneros e espcies] subsistem nas coisas sensveis e so

    conhecidos separadamente dos corpos.

    No h de fato obstculos para que duas coisas, em uma mesma coisa

    apreendida, no sejam distintas pela razo, como [por exemplo] a linha

    convexa e a linha cncava. Trata-se de realidades que tm definiesdiferentes e, por essa razo, ser diferente tambm a sua compreenso, mesmo

    que se encontrem sempre nas mesmas coisas. De fato, a mesma linha

    convexa e cncava. Assim tambm pode dizer-se o mesmo a respeito dos

    gneros e das espcies, isto , uma mesma coisa apreendida possui

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    singularidade e [ao mesmo tempo] universalidade. universal quando

    pensada. singular quando percebida nas coisas que existem.

    [CONCLUSO]

    Um vez terminadas essas explicaes, creio, permanece resolvida toda a

    questo. De fato, gneros e espcies subsistem de um modo, mas so

    conhecidos de outro modo. So incorpreos, mas junto s coisas sensveis

    subsistem como sensveis, mas so conhecidos como se existissem por si

    mesmos e no como se tivessem o seu ser em outros [seres]. Todavia, Plato

    julga que os gneros e as espcies no s so conhecidos como universais,

    mas tambm que existem e subsistem separados dos corpos. Aristteles, ao

    contrrio, pensa que esses so conhecidos como incorpreos e universais, mas

    que subsistem nas coisas sensveis. E no quero dizer qual opinio de ambos

    a apropriada, pois tarefa para uma filosofia mais profunda. Em todo caso,aqui seguimos diligentemente a opinio de Aristteles no porque a julgamos

    a melhor, mas porque este livro, isto , Isagoge, foi escrito para introduzir s

    Categorias, cujo autor Aristteles.

    Contra Eutiques e Nestrio22

    Natureza pode dizer-se ou s dos corpos, ou s das substncias, ou

    seja, dos seres corpreos e incorpreos, ou ainda de todas as coisas que de

    algum modo se diz que existem. Sendo assim, como natureza pode dizer-se de

    trs modos, deve definir-se de trs modos. Pois se se deseja que natureza se

    22 S. BOCIO, De duabus naturis contra Eutychen et Nestorium, Patrologia Latina 64,1341b-1345b

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    diga de todas as coisas, dar-se- uma definio tal que possa incluir todas as

    coisas que existem. Conseqentemente, ser deste modo: natureza prpria

    das coisas que, enquanto existem, podem ser de algum modo captadas com o

    intelecto. Pois nesta definio se definem no s os acidentes, mas tambm as

    substncias; com efeito, todas estas, acidentes e substncias, podem ser

    captadas com o intelecto. Acrescenta-se de algum modo, porque Deus e a

    matria no podem ser inteligidas com um intelecto ntegro e perfeito, mas

    so, contudo, captados de algum modo pela privao das coisas restantes. E

    acrescentamos as coisas enquanto existem porque inclusive o prprio nada

    significa algo, mas no uma natureza. Com efeito, significa no que algo

    exista, mas, sim , o no-existir; porm, toda natureza existe. E, certamente, se

    deseja dizer-se natureza de todas as coisas, seja esta a definio de natureza

    que antes propomos. Se, no entanto, se diz natureza s das substncias,

    porque todas as substncias so ou corpreas ou incorpreas, daremos uma

    definio de natureza para significar substncias deste modo: natureza ouo que pode fazer ou o que pode padecer. Padecer e fazer, certamente, como

    todas as coisas corpreas e a alma das corpreas; pois esta no corpo e a partir

    do corpo no s faz mas tambm padece. Mas fazer, somente a Deus e aos

    demais seres divinos. Assim pois tem inclusive uma definio dessa

    significao de natureza que somente se aplica s substncias. Aqui tambm

    resultou a definio de substncia. Pois se o nome de natureza mostra a

    substncia, quando descrevemos a natureza, tambm se concedeu a descrio

    de substncia. E se o nome de natureza, deixadas de lado as substncias

    corpreas, se reduz a tal ponto s corporais que s as substncias corporais

    parecem tem uma natureza, como pensam Aristteles e os demais seguidores

    no de sua filosofia, mas tambm de muitas outras, definamo-la como estes

    que impuseram que a natureza no existe seno nos corpos. Sua definio ,

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    pessoa, um n indissolvel qual possa ser a diferena entre natureza e

    pessoa; ou se no se iguala pessoa a natureza, mas que abaixo do termo e do

    lugar de natureza a pessoa subsiste, difcil dizer a que naturezas se estende a

    pessoa, isto , a que naturezas convenha ter uma pessoa, e quais naturezas se

    separam do termo de pessoa. Mas certamente, isto manifesto, que a natureza

    substrato da pessoa, e que pessoa no pode ser predicada

    independentemente da natureza. Sendo assim, estas devem ser investigadas

    neste sentido.

    Porque a pessoa no pode existir independentemente da natureza e

    porque algumas naturezas so substncias, outras acidentes e vemos que a

    pessoa no pode estar constituda nos acidentes (quem, com efeito, poderia

    dizer que exista alguma pessoa da brancura ou da negrido ou da magnitude?),

    resta, portanto, que convenha que a pessoa se diga nas substncias. Mas

    algumas das substncias so corpreas, outras incorpreas; e algumas das

    corpreas so viventes, outras no; algumas das viventes so sensveis, outrasno; algumas das sensveis so racionais, outras irracionais. Igualmente

    algumas das incorpreas so racionais, outras no, como a vida dos animais;

    mas uma das racionais imutvel e impassvel por natureza, Deus; outra, por

    criao, mutvel e passvel, a no ser que pela graa da substncia impassvel

    chegue a transformar-se na firmeza da impassibilidade, como a dos anjos e a

    do esprito. De todas estas coisas manifesto que nem pode dizer-se pessoa

    nos corpos no viventes (ningum, com efeito, diz que uma das pedras uma

    pessoa), nem ao mesmo pode dizer-se pessoa dos vivos que carecem de

    sensibilidade (nenhuma pessoa, com efeito, uma rvore), nem pode dizer-se

    pessoa da substncia que est privada de intelecto e razo (com efeito, no

    h pessoa do cavalo ou do boi e dos demais animais que, mudos e sem razo,

    passam a vida unicamente com os sentidos), mas dizemos que h pessoa do

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    homem, de Deus e do anjo. Algumas das substncias so inclusive universais,

    outras particulares. Universais so as que se predicam dos indivduos, como

    homem, animal, pedra, lenho e as demais deste modo que so ou gneros ou

    espcies; pois no s homem se diz dos homens individuais, mas tambm

    animal se diz dos animais individuais e a pedra e o lenho se dizem das pedras

    e dos lenhos individuais. Particulares, ao contrrio, so as que no se predicam

    de outras como Ccero, Plato, esta pedra a partir da qual esta esttua de

    Aquiles foi feita, este lenho a partir do qual esta mesa foi fabricada. Mas em

    todos esses pessoa nunca pode dizer-se nos universais, mas somente nos

    singulares e nos indivduos; com efeito, nenhuma pessoa existe do animal ou

    do homem em geral, mas apenas pessoas individuais se designam quer de

    Ccero, quer de Plato, quer dos indivduos singulares.

    III

    Por conseguinte, se pessoa est somente nas substncias e [somente]

    nestas racionais, e se toda natureza substncia e no reside nos universais

    mas nos indivduos, a definio descoberta de pessoa : uma substncia

    individual de natureza racional (naturae rationalis individua substantia). Mas

    com esta definio determinamos o que o gregos chamamuJpovstasi". Com

    efeito, o nome pessoa parece extrado de outro lugar, a saber: das mscaras

    que representam as personagens nas comdias e nas tragdias. Pessoa, por

    seu turno, vem de personare, com a penltima slaba longa. Se a

    antepenltima tem [acento] agudo, [o termo] aparecer claramente que vem de

    sonus, porque necessariamente um maior som ressoa por causa da prpria

    concavidade da mscara. Os gregos chamam tambm essas mscaras de

    provswpa porque so colocadas sobre a face e ocultam a expresso dos olhos

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    [do espectador]24:para; tou' pro;" tou;" w\pa" tivqesqai. Mas, cobertos com

    mscaras, os atores representavam indivduos, personagens que participavam

    na tragdia ou na comdia, como foi dito, isto , Hcuba, Medeia, Simon,

    Cremes, e igualmente as demais personagens, que certamente seriam

    reconhecidos por sua forma, os latinos utilizaram persona, e os gregos,

    provswpa.

    Mas [ os gregos], de modo mais significativo, chamaram a subsistncia

    individual de natureza racional com o nome deuJpovstasi", ao passo que ns

    [latinos], na falta de termos significativos, conservamos a designao

    tradicional chamando pessoa o que eles chamam deuJpovstasi". Mas a

    Grcia, rica em palavras, chama a subsistncia individual umauJpovstasi". E,

    para utilizar a linguagem grega em questes que, discutidas pelos gregos, foi

    traduzida em verso latina:

    aiJ oujsivai ejn me;n toi'" kaqovlou ei\nai duvnantai ejn de; toi'" a;tovmoi" kai; k

    ata; mevro" movnoi" uJfistantai, isto : as essncias podem existir nosuniversais, mas s permanecem nos individuais e nos particulares. Com efeito,

    a inteleco das coisas universais extrada dos particulares. Por conseguinte,

    como essas subsistncias existem nos universais, mas tomam sua substncia

    nos particulares, [os gregos] chamaram legitimamente uJpostavsei" as

    subsistncias que permanecem de forma particular. Pois no parecer a quem

    considera a coisa cuidadosamente e com sutileza que subsistncia o mesmo

    que substncia.

    24 O termo singularprovswpon significa originalmente face, rosto e, por extenso, ofrontispcio de qualquer coisa, de um navio, de um exrcito. Na literatura crist antiga, otermo polivalente. Dentre os vrios sentidos, poderamos resumi-los em trs categorias:1a) face, aparncia, presena; 2a) representao (teatral, gramatical, figurativa); 3a)indivduo humano, pessoa. Neste ltimo caso, teramos diversos matizes: a pessoa enquantoindivduo particular, numericamente distinto; enquanto significa o todo humano; enquanto homem com conotao de aspectos qualitativos.

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    Pois os que gregos chamam oujsivwsi" ou oujsiw'sqai, ns o

    denominamos subsistncia ou subsistir. Mas o que eles chamam

    uJpovstasi" ou uJfivstasqai, ns o interpretamos como substncia ou

    permanecer. Pois o que subsiste no necessita de acidentes para poder

    existir. Mas permanece o que subministra aos outros acidentes um certo

    substrato para que possam existir: pois debaixo deles est enquanto substrato

    para os acidentes. Por conseguinte, os gneros ou as espcies s subsistem;

    com efeito, os acidentes no concernem aos gneros ou s espcies. Mas os

    indivduos no s subsistem mas tambm permanecem, pois eles no

    necessitam de acidentes para existir; com efeito, j esto conformados por

    suas propriedades e por suas diferenas especficas, e subministram aos

    acidentes o fato de que podem existir enquanto so, de fato, substratos; por

    isso,ei\nai e oujsiw'sqai so inteligidas como existir e subsistir, ao passo

    queuJfivstasqai [ inteligida] como permanecer. Com efeito, no pobre a

    Grcia em palavras, como alude Tlio [Ccero], mas tem nomes quecorrespondem a essncia, subsistncia, substncia [e] pessoa,

    chamando essncia de oujsiva, subsistncia de oujsivwsi", substncia de

    uJpovstasi", [e] pessoa deprovswpon. Assim os gregos chamaramuJpostavsei"

    as substncias individuais, porque existem sob as demais, ou seja, como se

    dissesse que esto colocadas debaixo e so substratos para quaisquer

    acidentes; por isso, ns tambm as chamamos substncias como se dissesse

    sub-postas, o que eles chamam deuJpostavsei". E visto que eles chamam de

    provswpa as mesmas substncias, ns tambm podemos cham-las pessoas.

    Deste modo, oujsiva corresponde a essncia, oujsivwsi", subsistncia,

    uJpovstasi", substncia, [e] provswpon, pessoa.

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    Sobre a Trindade25

    Dado que so trs as partes especulativas da filosofia: a natural, sobre as

    coisas em movimento, no abstratas, no-separveis (Com efeito, esta

    considera as formas dos corpos na matria, as quais podem efetivamente

    separar-se dos corpos que esto em movimento, como a terra tende para baixo

    e o fogo para cima; e a forma unida matria tem movimento); a matemtica,

    sobre as coisas sem movimento, no abstratas (pois esta especula sobre as

    formas dos corpos sem matria e, por isso, sem movimento; essas formas,

    existindo na matria, no podem separar-se dos corpos); e a teologia, sobre as

    coisas sem movimento, abstratas e separveis (de fato, a substncia de Deus

    carece de matria e de movimento); conseqentemente, convir trabalhar na

    [filosofia] natural de forma racional; na matemtica, de modo disciplinado, e

    na divina, intelectualmente, e no deixar-se levar pelas imaginaes, mas

    inspecionar a prpria forma que verdadeira forma e no imagem, e que oser mesmo e da qual deriva o ser. Pois todo ser deriva da forma. Com efeito,

    no se diz que uma esttua seja a reproduo de um animal em virtude de seu

    bronze, que sua matria, mas em virtude de sua forma que est impressa

    nele; e o prprio bronze no se diz tal em razo da terra que sua matria, mas

    em virtude da figura do bronze. A prpria terra inclusive no se diz tal em

    razo da matria informe, mas em virtude da carncia de gua e da gravidade

    que so o prprio de sua forma. Deste modo, nada se diz que segundo a

    matria, mas segundo sua forma prpria. Mas a substncia divina forma sem

    matria e, por isso, algo nico e aquilo que . Pois as demais coisas no

    so aquilo que so. Com efeito, cada coisa tem seu ser a partir daquelas coisas

    pelas quais existe, ou seja, de suas partes, e isto ou aquilo, ou seja, suas

    25 S. BOCIO, De Trinitate, Patrologia Latina 64, 1250a-1251a

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    pelo tato; a vista, permanecendo distante do objeto e projetando sobre ele seus

    raios, o percebe ao mesmo tempo por completo; o tato, ao contrrio, entra em

    contato com a esfera, a toca e, movendo-se em torno de seu permetro, percebe

    seu carter redondo por partes. O homem tambm percebido de maneira

    distinta segundo seja considerado pelos sentidos, pela imaginao, pela razo

    ou pela inteligncia26. Com efeito, os sentidos julgam a forma considerada a

    partir do ponto de vista da matria que lhe serve de suporte, enquanto a

    imaginao julga a figura sozinha, sem a matria. A razo, por seu turno,

    transcende tambm a forma e julga mediante consideraes ou comparaes

    com o universal a aparncia especfica que caracteriza cada ser em sua

    singularidade. E, por fim, o olho da inteligncia ocupa um lugar mais excelso

    porque, tendo ultrapassado tambm o mbito do universal, contempla com o

    olhar puro da mente a prpria Forma em sua simplicidade.

    A este respeito deve considerar-se especialmente que a capacidade

    cognoscitiva superior abarca aquela que inferior, ao passo que a inferior noalcana de modo algum a superior. Com efeito, a percepo pelos sentidos no

    tem nenhuma eficcia alm da matria, a imaginao no v as formas

    universais, e a razo no concebe a Forma simples, mas a inteligncia,

    observando tudo, por assim dizer, a partir do alto, uma vez que compreendeu a

    Forma, estende seu juzo tambm a tudo o que se encontra a ela submetido,

    mas seguindo o mesmo procedimento com o qual compreendeu a Forma

    simples, que no pode ser conhecida por nenhuma outra faculdade. Pois ela

    26 Trata-se de quatro modos distintos de conhecimento. Por sentidos ou sensao(sensus), prpria dos animais imveis, pode entender-se o sentido fsico da vista; aimaginao (imaginatio) o poder mental de criar imagens dos objetos no vistos ecaracteriza dos animais mveis; a razo (ratio) o poder para raciocinar do particular aouniversal e prpria do homem; a inteligncia (intellegentia) a compreenso daunidade que une a multiplicidade de formas e pertence aos seres divinos. Essas categoriasso de origem aristotlica, embora re-elaboradas por algum comentarista tardio.

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    _________________ Anicii Manlii Severini Boetii Commentarii in librum

    Aristotelis Peri Hermeneias, ed. C. MEISER.Leipzig, B. G.

    Teubner,2vols.,1877-1880.

    _________________Boethius: Tractates, De consolatione philosophiae, eds.

    & trs. H. F. STEWART & E. K. RAND (The Loeb Classical

    Library).London,William Heinemann, Ltd.,1968

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    No que tange primeira questo, preciso dizer brevemente que a

    lgica no um hbito numericamente uno, nem um indivduo nico como

    Scrates e Plato, ou este asno ou este boi ou esta brancura ou esta negrido,

    mas ela uma coleo de hbitos mltiplos graas aos quais se conhece o

    silogismo em geral com suas partes tanto subjetivas quanto integrantes28, bem

    como as propriedades desses; assim que por uma parte da lgica se

    conhecem o silogismo e seus propriedades; por uma outra, o silogismo

    demonstrativo e suas propriedades; por uma outra ainda, a proposio e suas

    propriedades e assim por diante. Alm disso, so por outras partes,

    respectivamente, que se conhecem a proposio que enuncia tal propriedade

    do silogismo em geral, e a que enuncia outra propriedade do mesmo silogismo

    em geral, de sorte que, na medida em que variam os sujeitos e os predicados

    das proposies conhecidas em lgica, variam tambm as partes da lgica.

    Entretanto, todas essas partes constituem uma s lgica, no, certamente,

    como uma coisa numericamente uma, mas maneira como numerososhomens fazem um povo nico, e diferentes cidades um reino nico, e assim

    por diante para as outras coisas que diferem entre si: falando destas que ns

    dizemos que uma coisa nica constituda, algumas vezes, por mltiplas

    coisas da mesma natureza, outras vezes, por mltiplas coisas de diferentes

    naturezas.

    Para estabelecer esta concluso, suficiente o seguinte raciocnio:

    quando algumas coisas so tais que at mesmo uma terceira coexiste com uma

    delas e no com a outra, elas no so da mesma natureza. Eu tomo como

    28 De um lado, silogismos dialtico e demonstrativo, etc.; de outro lado, proposies etermos.

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    exemplo a cincia29 graas qual se conhece uma concluso do livro dos

    Segundos Analticos e graas qual se conhece uma outra concluso do

    mesmo livro; chamo a primeira concluso A e a outra B. Ora, com a cincia

    que versa sobre A pode coexistir o erro que versa sobre B, ao passo que com a

    cincia da qual B objeto no pode coexistir o erro do qual B objeto.

    Portanto, A e B no so da mesma natureza. A partir disto prossigo minha

    argumentao: todas as vezes que algumas coisas so de natureza diferente,

    delas no resulta que haja algo numericamente uno, a menos que uma delas

    seja um ato e a outra uma potncia, como diz o Filsofo no Livro VII da

    Metafsica; ora, no h cincia que seja composta de semelhantes coisas,

    porque, segundo diz o Filsofo no mesmo lugar, nenhum acidente composto

    de semelhantes partes, mas somente de partes da mesma natureza. Portanto, de

    tais conhecimentos no resulta cincia numericamente una.

    Em segundo lugar, preciso tratar das causas essenciais desta cincia. A

    este propsito, preciso saber que esta, como qualquer outra cincia, s temduas causas essenciais, se tomamos causa no sentido prprio; a razo disto

    que toda coisa simples, no composta de partes de natureza simples, s pode

    ter duas causas, isto , a eficiente e a final; ora, toda cincia simples, porque

    no composta de partes de natureza diferente; portanto, nenhuma cincia tem

    mais de duas causas. A maior manifesta, porque toda causa de uma coisa ou

    causa intrnseca e faz ento parte da coisa maneira de matria e de forma,

    ou causa extrnseca, como a causa eficiente e o fim; ora, nenhuma coisa

    simples porque no composta de partes de natureza diferente tem a matria e a

    forma como causas extrnsecas, visto que, se tal fosse o caso, ela seria

    29 Eu aceito a cincia pela qual se conhece uma concluso.... O termo accipio scientiamtem o seguinte sentido: o ato individual de cincia, o tomo de cincia.

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    composta destas como se fossem partes de natureza diferente; portanto,

    nenhuma coisa simples pode ter mais de duas causas.

    E, portanto, o que se diz comumente, que toda cincia tem quatro

    causas: material, formal, eficiente e final, no verdade se tomamos causa

    no sentido prprio, como o faz Aristteles (Livro IIda Fsica e Livro V da

    Metafsica), mas somente se estendemos o sentido do termo causa e se

    tomamos causa em um sentido imprprio. E, conseqentemente, o que se

    chama causa material deveria ser chamada, antes, sujeito da cincia ou

    predicado ou objeto, do que causa; e assim que tomam, se o bem

    compreendem, a causa material pelo objeto, o qual, porm , se causa, no

    pode ser seno no gnero da causa eficiente ou talvez final.

    Uma vez constatado, portando que a cincia s tem duas causas,

    preciso saber que a causa eficiente da lgica em uso [nas escolas] chama-se

    Aristteles, porque ele por primeiro a ensinou e foi o primeiro a ter publicado

    essas colees ou esses livros dos quais nos servimos; todavia, acerca da causaeficiente da tua lgica e da minha, deve ser dito de modo proporcional, como

    se faz acerca da causa eficiente dos outros hbitos intelectuais, questo que

    mais pertinente ao tratado Sobre a alma. A causa final da lgica, se tomamos a

    lgica por um hbito ou uma coleo de hbitos, o ato de conhecimento a

    partir do qual semelhante hbito engendrado. Quanto ao fim desses atos, que

    o fim mediato do hbito ou dos hbitos, aquele em visto do qual esses atos

    so colocados: acerca deste ponto, porm, cabe cincia natural tratar.

    Em terceiro lugar, preciso tratar da utilidade desta cincia. A este

    propsito, preciso saber que esta cincia serve para mltiplos fins, dos quais

    um a facilidade em discernir entre o verdadeiro e o falso. Pois se possumos

    perfeitamente esta cincia (scientia perfecte habita), julgamos facilmente o

    que verdadeiro e o que falso, e isto quando se trata daquilo que se pode

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    saber por meio das proposies conhecidas por si mesmas. Como necessrio,

    pois, em semelhantes matrias, proceder com ordem, indo das proposies

    conhecidas por si mesmas at a ltima que delas decorrem, e como a lgica

    ensina semelhante processo discursivo, disto resulta que, graas a ela, segue-

    se que por ela encontra-se facilmente o verdadeiro em semelhantes matrias e

    que, pela mesma razo, se discerne facilmente o verdadeiro do falso.

    Uma segunda utilidade da lgica a prontido para responder. Pois esta

    cincia ensina a discernir o que incompatvel com a coisa proposta, o que

    disto o conseqente, o que disto o antecedente; uma vez conhecidas essas

    trs coisas, com toda facilidade que se nega o incompatvel, que se concede

    o conseqente e que se responde que o antecedente no pertinente, em razo

    de sua natureza. Esta arte ensina tambm a soluo de todos os argumentos

    que pecam na forma; e no possvel, em qualquer cincia que seja, inferir

    sofisticamente a partir de proposies verdadeiras alguma coisa de falso, sem

    que, graas a certas regras que ensina a lgica, se depreenda facilmente taldefeito, o que impossvel sem a lgica ou sem seu emprego; e, por

    conseguinte, aqueles que ignoram esta cincia reputam como sofismas

    numerosas demonstraes, e, inversamente, acolhem a ttulo de

    demonstraes muitos sofismas, no sabendo distinguir entre o silogismo

    sofstico e o demonstrativo.

    A lgica serve ainda por tornar fcil perceber o valor das palavras e o

    modo prprio de falar. Pois graas a esta arte, sabe-se facilmente o que dizem

    os autores no sentido literal do discurso, o que eles dizem, no em um sentido

    literal, mas segundo o modo corrente de falar ou segundo sua inteno

    particular, o que se diz propriamente, o que diz metaforicamente; e isto

    sobretudo necessrio a todos aqueles que se aplicam a compreender as

    palavras de outrem; pois aqueles que interpretam sempre no sentido literal e

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    prprio todos os ditos dos autores, incidem em numerosos erros e de

    inexplicveis dificuldades.

    Em quarto lugar, preciso tratar daquilo que diferencia e distingue esta

    cincia das outras. A este propsito, preciso saber que esta se distingue por

    si mesma de toda outra cincia, pois ela e as outras versam, respectivamente,

    sobre outras coisas. Pois, esta cincia, ao menos principalmente, transmite o

    conhecimento dos conceitos ou das intenes fabricadas pela alma, no fora

    dela, como so fabricadas as coisas artificiais, mas no interior dela mesma.

    Entretanto, quais so essas produes (os conceitos e as intenes, tais como

    os silogismos, as proposies, os termos e outras coisas semelhantes), isto ,

    quanto questo de saber se elas existem real e subjetivamente na alma ou de

    algum outro modo, esta questo no concerne lgica, mas metafsica; e,

    por essa razo, isto deve ser passado sob silncio. E da resulta que esta

    cincia dita racional, ao passo que as outras cincias demonstrativas so

    ditas cincias reais; no que esta cincia seja uma verdadeira realidade e umaverdadeira qualidade que aperfeioa a inteligncia, como as outras cincias,

    mas porque a lgica determina acerca daquelas coisas que no podem existir

    sem a razo, ao passo que as outras cincias tratam das coisas que existem fora

    da alma.

    Enfim, preciso ver em que parte da filosofia se insere a lgica: em

    outras palavras, esta cincia um conhecimento prtico ou especulativo? E

    preciso responder que, como diz Avicena no incio de sua Metafsica, o que

    faz a distino entre as cincias prticas e as cincias especulativas que as

    cincias prticas tm por objeto nossas obras, ao passo que as cincias

    especulativas no tm por objeto nossas obras. Donde ser claro que preciso

    dizer que a lgica uma cincia prtica, porque como a cincia da lgica trata

    dos silogismos, das proposies e de outras coisas deste gnero que s podem

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    receber o ser de ns mesmos, segue-se que ela trata de nossas obras; no,

    certamente, das obras exteriores, seno talvez secundariamente, mas das obras

    interiores que so verdadeiramente as nossas; e, por conseguinte, esta cincia

    prtica e no especulativa.

    2. COMENTRIO AO LIVRO DOS PREDICVEIS DE PORFRIO30

    CAPTULO I

    PROMIO

    I Visto que necessrio, Cresario... Este livro o primeiro em um

    ensinamento ordenado, entre todos os livros da lgica, desta lgica cujo

    conhecimento no uno numericamente, mas constitui uma coleo de

    conhecimentos mltiplos; ela no tem nem mesmo um objeto nico, como

    tampouco outros livros deixados pelo Filsofo, mas tem mltiplos objetos.

    Para compreender isto, preciso saber que se chama objeto de uma cinciaaquilo de que algum atributo predicado; e, conseqentemente, onde existem

    vrias dessas coisas que tm como predicados diversas propriedades, ou ainda

    as mesmas propriedades, h vrios objetos. E porque certas coisas expostas no

    livro de Porfrio so predicadas do gnero, outras predicadas da espcie, e

    assim por diante, o gnero objeto de uma parte; a espcie, da outra, e assim

    por diante. E, por conseguinte, o que se diz comumente, a saber: que um livro

    tem um objeto [assunto], absolutamente falso em razo do discurso literal.

    Entretanto, aqueles que disseram isto no o entenderam no sentido literal das

    palavras, mas queriam dizer que um s elemento, comum a todos os objetos,

    pode ser predicvel deles, ou ainda que, entre todos os objetos, haveria um

    30 Cf. GUILLELMI DE OCKHAM, Expositio in Librum Porphyrii de Praedicabilibus,7 ss

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    primeiro, e isto, por causa de uma certa prioridade. Para dar um exemplo da

    primeira interpretao [da unidade do objeto], diz-se que o universal o objeto

    do livro de Porfrio, no porque ele mesmo seja realmente o objeto mas

    porque predicado de diversos objetos, a saber: do gnero, da espcie, etc.

    Sendo assim, aqueles que disseram que os cinco universais so o objeto do

    livro de Porfrio teriam falado mais corretamente se tivessem dito que so seus

    objetos, pois um universal objeto de uma parte e um outro de uma outra

    parte. Exemplo do segundo ponto: diz-se que o silogismo o objeto da lgica:

    falando em sentido prprio, isto no o caso [isto , no seu objeto], nem

    verdade se tomado literalmente; mas chama-se primeiro objeto porque entre

    todos os objetos das diversas partes [da lgica], o silogismo o primeiro, ao

    menos em virtude de alguma ou vrias espcies de prioridade; pois face a

    algumas coisas, ele o primeiro em virtude de uma prioridade de predicao;

    face a outras coisas, o primeiro em virtude de ser uma certa totalidade,

    porque o silogismo implica um primeiro objeto em ambos os casos. Sendoassim, este termo comum silogismo predicado de todo silogismo

    demonstrativo e de todo silogismo dialtico, e significa um todo cujas partes

    integrantes so os termos e as proposies, os quais so tratados em diferentes

    partes da lgica.

    Uma vez compreendidas essas coisas, preciso saber que este livro se

    divide em duas partes, isto , em um promio e em um tratado que comea

    assim: Entretanto, parece que nem o gnero, etc.. A primeira parte se divide

    em duas partes: na primeira, o autor enuncia sua inteno; na segunda que

    comea aqui: Abstendo-me, porm,...- ele exclui de sua considerao certas

    coisas irrelevantes que para alguns, porm, podem parecer pertinentes sua

    inteno. Na primeira parte, ele toca em questes concernentes necessidade,

    utilidade e ao objetivo deste livro, bem como nos pontos que tratar e

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    tambm no modo como os abordar. Conseqentemente, dirigindo ao seu

    discpulo Cresario, diz: dado que o conhecimento dos cinco universais, isto

    , do gnero, da espcie, da diferena, do prprio e do acidente, necessrio

    tanto para o ensinamento do livro das Categorias (Praedicamentorum) como

    para fornecer definies em relao a tudo que diz respeito diviso e

    demonstrao, vou-te fazer uma breve e fcil exposio desses pontos,

    esforando-me em percorrer, maneira de uma introduo, esses cinco

    universais, o que se encontra entre os mais antigos.

    Que este conhecimento seja til em vista dos objetivos indicados,

    evidente: que seja til, pois, para a inteligncia das Categorias, evidente,

    visto que neste livro, trata-se dos gneros e das espcies, isto , das coisas que

    esto contidas sob os termos gerais gnero e espcie, etc.; e,

    conseqentemente, til conhecer a natureza dos termos comuns para saber o

    que a eles se submete.

    De modo semelhante, este conhecimento til para fornecer definies,porque somente a espcie definida e que toda definio propriamente dita

    composta do gnero e da diferena. Portanto, por causa da definio til

    conhecer essas coisas. De modo semelhante, este conhecimento necessrio

    para fazer divises, porque todo gnero se divide em espcies e que o gnero

    se divide freqentemente por diferenas essenciais ou acidentais, mas nunca

    por suas caractersticas prprias. Deste modo, este conhecimento assaz

    necessrio para fazer essas [divises]. Ele til tambm porque

    freqentemente se demonstra, por meio da definio, a pertena do prprio

    espcie e ao gnero.

    2 Abstendo-me, porm das questes mais elevadas... Nesta parte, o

    autor exclui de seu estudo algumas questes que no concernem lgica,

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    dizendo que preciso abster-se de questes assaz profundas que no dizem

    respeito ao lgico e que preciso tratar de outras questes fceis pertinentes

    ao lgico. Ele enumera especialmente trs questes que deseja evitar,

    deixando entrever que o lgico deve [de modo semelhante] abster-se de

    considerar semelhantes questes. A primeira questo a seguinte: o gnero e a

    espcie so subsistentes fora da alma ou esto somente no intelecto? Eis a

    segunda: so corporais ou incorporais? E a terceira: admitindo que sejam

    incorporais, so separados as coisas sensveis ou esto nas prprias coisas

    sensveis? 31 Dessas questes e de outras semelhantes, ele deseja abster-se.

    A razo pela qual preciso evit-las a seguinte: essas questes

    concernem metafsico e exigem um exame sutil que no pode ser feito neste

    pequeno livro. Mas no presente opsculo devem ser colocadas algumas coisas

    ditas pelos antigos e sobretudo pelos Peripatticos acerca dos universais

    mencionados previamente, uma vez que aquelas coisas dizem respeito ao

    lgico. Embora as questes sutis e outras semelhantes no sejam pertinentesao lgico mas ao metafsico, uma vez que, porm, da ignorncia desse pontos,

    muitos modernos caram em muitos erros, at mesmo em lgica, devemos

    dizer brevemente o que preciso saber a este propsito segundo a sentena de

    Aristteles e segundo a verdade, pois dessas questes tratamos mais

    amplamente em outro lugar.

    31 Prima quaestio est ista: Utrum genus et species sint subsistentia extra animam, vel sinttantum in intellectu. Secunda: An sint corporalia vel incorporalia. Tertia: Si sintincorporalia, an sint separata a sensibilibus vel sint in ipsis sensibilibus. Reproduzo minhatraduo da Isagoge de Porfrio: Antes de mais, no que tange aos gneros e s espcies,acerca da questo de saber (1) se so realidades subsistentes em si mesmas ou se consistemapenas em simples conceitos mentais, (2) ou, admitindo que sejam realidades subsistentes,se so corpreas ou incorpreas, e, (3) neste ltimo caso, se so separadas ou se existemnas coisas sensveis e dependem delas. Para a importncia desse questionrio de Porfrio,cf. PORFRIO DE TIRO, Isagog. Introduo s Categorias de Aristteles. Introduo,traduo e comentrio de Bento Silva Santos.So Paulo, Attar Editorial,2002

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    conseqentemente, aquela coisa ser numericamente una e, por conseguinte,

    singular.

    Alm disso, tomo esta coisa universal, a saber A, e pergunto: ou A e

    Scrates so vrias coisas, ou so uma s coisa. Neste ltimo caso, visto que

    Scrates uma s coisa singular, A , portanto, uma coisa singular. Se so

    coisas mltiplas, mas no infinitas em nmero, eles so, portanto, coisas

    finitas em nmero e, conseqentemente, tm um nmero finito. E visto que

    no se pode admitir que sejam mais de duas coisas, eles so somente duas

    coisas. Mas, uma vez que so apenas duas coisas, cada uma delas una

    numericamente; portanto, esta coisa universal numericamente una e,

    conseqentemente, singular. Eis a confirmao [desta concluso]: toda coisa

    que uma s coisa e no vrias coisas una numericamente: pois ela a

    definio nominal do que numericamente uno; ora, esta coisa universal

    uma s coisa e no vrias; portanto, ela uma s coisa numericamente;

    portanto, singular.No se pode dizer tampouco que esta coisa universal, ainda que no

    seja vrias coisas, no sentido de que est em vrias coisas e da essncia de

    vrias, como, por exemplo, humanidade ou homem est em todos os

    homens e da essncia de todos os homens. Este argumento sem valor

    porque uma semelhante coisa ou diversificada, de sorte que ela esta ou

    aquela coisas nessas coisas mltiplas, ou no diversificada, de sorte que ela

    no esta ou aquela outra coisa. Se admitimos a primeira alternativa, ento

    necessariamente cada uma dessas coisas singular e, conseqentemente, visto

    que no existe outra coisa alm dessas, segue-se que qualquer coisa singular.

    Se admitimos a segunda alternativa, tem-se a nossa proposio, porque esta

    coisa, de qualquer maneira que ela esteja em vrias coisas, verdadeira

    singular pelo fato de que una e no vrias.

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    nenhuma coisa existe no indivduo seno a matria particular e a forma

    particular. Mas toda coisa imaginvel, ou um indivduo, e assim

    certamente singular, ou est em um indivduo, e uma tal coisa no pode ser

    seno matria particular e forma particular; portanto, toda coisa singular e

    particular.

    Quanto ao segundo ponto, isto , que nenhum universal existe realmente

    nas substncias individuais nem da essncia destas, inteiramente evidente a

    partir de Aristteles Metafsica VII -, onde ele coloca a seguinte questo:

    existe um universal que seja substncia? E ele estabelece expressamente que

    nenhum universal substncia nem parte da substncia, nem existe realmente

    na substncia; ele diz, portanto: Entretanto, parece que para alguns o

    universal seja a causa por excelncia e princpio das substncias; por essa

    razo, tratando e resolvendo este ponto, ele diz: Parece impossvel que

    qualquer das coisas ditas universalmente seja uma substncia. E esta

    concluso, a saber: que nenhum universal uma substncia, ele mesmo aprova no mesmo lugar mediante numerosos argumentos, os quais eu omito por

    causa da brevidade.

    O Filsofo diz ainda Metafsica X que impossvel que um dos

    universais seja uma substncia; acerca desta passagem diz o Comentador, no

    comentrio 7: Visto que tinha sido dito neste tratado ser impossvel que

    algum dos universais seja uma substncia, bvio que Um universal no

    uma substncia. E prossegue: Visto que os universais no so substnc