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PrólogoAndhraPradesh

ÍndiaOmotoristarecusou-sealevá-lomaislonge.Unsmil e seiscentosmetros antes, pouco depois de terempassado

pela Octagon, a fábrica de produtos químicos que estava abandonada, opavimentoderalugaraumaestradadeterrabatidainvadidapelaservas.Agora,omotoristaqueixava-sedequeomatoestavaariscar-lheocarroedeque,comaschuvasrecentes,ospneuspodiamficaratoladosnolamaçal.E o que lhes aconteceria? Ficariam ali, abandonados, a cento e cinquentaquilómetros de Hyderabad. Howard Red ield escutou o longo rol deobjecçÕes e percebeu que não passavam de um pretexto para ocultar overdadeiromotivopeloqualohomemnãoqueriaavançarmais.Ninguémadmitecomfacilidadequetemmedo.

Red ieldnão tinha alternativa; dali emdiante, seria obrigado a ir apé.

Ao inclinar-se para falar ao ouvido do motorista, sentiu o bafo dosuordohomem.Peloretrovisor,noqualestavapenduradoumrosário,viuosolhosnegrosqueofitavam.

Ficaaquiàminhaespera,nãoéverdade?perguntouRed ield.Fiqueaquimesmo,naestrada.

Durantequantotempo?Umahora,talvez.Otempoqueforpreciso.Jálhedissequenãohálánadaparaver.Jánãoestáláninguém.Mas espere aqui, está bem? Espere. Pago-lhe o dobro quando

regressarmosàcidade.Red ield agarrou namochila, saiu do carro com ar condicionado e

mergulhounummardehumidade.Nãousavamochiladesdeostemposdafaculdade,quandoviajavapelaEuropa,semdinheiro,esentiu-seestranho,aos cinquenta e um anos, com uma a dançar-lhe nas costas. Mas estavadisposto a ir até onde fosse preciso naquele país que mais parecia umsauna, sem se separar da garrafa de água mineral, do repelente de

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insectos, dos óculos escuros e do medicamento contra a diarreia. E damáquinafotográfica;nãopodiaprescindirdamáquinafotográfica.

Asuar,expostoaocalordo imdatarde,olhouparaocéuepensou:óptimo,osolestáadeclinareosmosquitossaemtodosaolusco-fusco.Aquivemovossojantar,insectozinhosmiseráveis.

Começou a descer a estrada. As ervas altas não o deixavam ver ocaminho. Tropeçou num sulco e enterrou-se na lama até aos tornozelos.Era evidente que não passava nenhum carro por ali há meses, e a MãeNaturezaapressara-seareclamaroseuterritório.Red ieldparou,aarfar,eafugentouosinsectos.Aoolharparatrás,jánãoconseguiuverocarro,oque o deixou inquieto. O motorista icaria à espera dele? O homemmostrara-se relutante em levá-lo até ali e o seu nervosismo aumentava àmedida que eles avançavam aos solavancos na estrada cada vez maisacidentada.Haviagentemáe tinhamacontecido coisas terríveisnaquelessítios, a irmaraomotorista.Ambospodiamdesaparecer, e quem sedariaaotrabalhodeiràprocuradeles?

Redfieldfezumesforçoparaavançar.A atmosfera húmida parecia fechar-se à sua volta. Ouvia a água

chocalharnagarrafaquetrazianamochilaejátinhasede,masnãoparouparabeber.Restava-lhepoucomaisdeumahorade luzdodiae tinhadecontinuaraandar.Os insectoszumbiamnomeiodaservas,epareceu-lheouvir os pássaros a cantar no arvoredo que o envolvia, mas o som eradiferente de tudo quanto ouvira até então. Naquele sítio, tudo pareciaestranhoeirreal.Red ieldavançavaacusto,comoqueemtranse,eosuorescorria-lhe pelo peito. O ritmo da sua própria respiração aumentava acada passo. Segundo o mapa, a distância não era superior a doisquilómetros,mas a caminhada parecia-lhe interminável e nem uma novaaplicaçãodorepelentedeinsectosafugentouosmosquitos.Estavafartodeouviroseuzumbidoetinhaacaratodapicada.

Tropeçounoutrosulcoecaiudejoelhosnomeiodavegetaçãodensa.Cuspiu as ervas que lhe tinham entrado na boca, e deixou-se icar decócoras, tão desanimado e exausto que concluiu que chegara omomentodevoltarparatrás,deregressardeaviãoaCincinatti,comoraboentreaspernas.Acobardia,afinal,eramuitomaissegura.Econfortável.

Suspirou,pousouamãonosoloparaconseguirlevantar-seedeixou-se icar imóvel, a olhar para as ervas. Avistouqualquer coisa nomeio daverdura,qualquercoisametálica.Eraapenasumbotãodelatabarato,masque,naquelemomentolhepareceuumsinal.Umtalismã.En iou-onobolso,levantou-seecontinuouaandar.

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Uns trintametrosmaisadiante,aestradadesembocousubitamentenuma grande clareira rodeada de árvores altas. No extremo oposto,erguia-se uma estrutura solitária, atarracada, de blocos de escóriaprensadaecomumacoberturadezincoferrugento.Osramosdasárvoresestalavam, empurrados por uma brisa suave que também provocava ummovimentoondulantenavegetaçãorasteira.

Éesteosítio,pensouRedfield.Foiaquiquetudoaconteceu.De repente, a sua própria respiração pareceu-lhe demasiado

ruidosa.Comocoraçãoapalpitar,desenvencilhou-sedamochila,abriu-aetirouamáquinafotográ ica.Tinhadedocumentartudo,pensou.AOctagontentaráfazer-tepassarpormentiroso.Elesfarãotudooquepuderemparate desacreditar, portanto tens de estar pronto para te defender. Tens deprovarqueestásadizeraverdade.

Avançou para a clareira, na direcção de um monte de ramosenegrecidos.Afastou-oscomossapatosecheirou-lheamadeiraqueimada.Recuou,comumcalafrionaespinha.

Eramosrestosdeumapirafunerária.Com as mãos alagadas em suor, retirou a protecção da lente e

começouatirarfotogra ias.Deolhocoladoaovisor,registouimagensumasa seguir às outras.Os despojos queimados de uma cabana.Uma sandáliadecriançanomeiodaservas,umpedaçodetecidocoruscante,deumsari.Paraondequerqueolhasse,sóviamorte.

Desviou-se para a direita, e o visor mostrou-lhe um tapete deverdura.Preparava-separa tirarmaisuma fotogra iaquandoo seudedoseimobilizounobotão.

Umvultoperpassouedesapareceunolimitedamoldura.Red ield afastou amáquina dos olhos, endireitou-se e observou as

árvores.Nãoviunada,exceptooondulardosramos.Ali...Seriaummovimentorápido,mesmono limitedoseucampode

visão? Avistou apenas uma coisa escura, a balouçar-se no meio dasárvores.Seriaummacaco?

Tinha de continuar a tirar fotogra ias. A luz do sól estava adesaparecerrapidamente.

Passou por um poço de pedra e dirigiu-se para a construção comcoberturadezinco,aolharparaaesquerdaeparaadireita,comaservasa roçarem-lhe nas calças. Parecia que as árvores tinham olhos e que oobservavam. Ao aproximar-se da construção, veri icou que as paredesestavam chamuscadas. Em frente da porta via-se um monte de cinzas eramoscalcinados.Maisumapirafunerária.

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Contornou-aeolhouparaaentrada.A princípio, não conseguiu ver grande coisa no interior sombrio. A

luz do sol estava a desaparecer rapidamente e lá dentro a escuridão eraaindamaior, umapaletadenegros e cinzentos. Paroumomentaneamenteparaqueasuavistaseadaptasse.Cadavezmaisespantado,apercebeu-sedobrilhodaáguanumabilhadebarro.Edocheiroaespeciarias.Comoerapossível?

Atrásdele,estalouumramo.Redfielddeumeiavolta.Na clareira, encontrava-se um vulto solitário. As árvores mais

próximas estavam imóveis e até os pássaros se tinham calado. O vultoavançou na sua direcção, com um andar estranho e desajeitado, eimobilizou-seapoucosmetrosdele.

A máquina fotográ ica caiu das mãos de Red ield, que recuou,horrorizado.

Eraumamulher.Enãotinharosto.

UmChamavam-lheRainhadosMortos.Emboraninguémodissessecaraacara,aDra.MauraIslesjáouvira

várias vezes a alcunha sussurrada à sua passagem quando percorria otriângulolúgubrecujosvérticeseramasaladeaudiências,olocaldocrimeeamorgue.Devezemquando,detectavaumtomdesarcasmo:Ah,ah, lávai ela, a nossa deusa selvagem, buscar carne fresca. Às vezes, osmurmúrios incluíam um tremor que denotava inquietação, como oscochichosdosfiéisàpassagemdeumdesconhecidolaico.Eraainquietaçãodosquenãocompreendiamoquea levaraaseguiraspegadasdamorte.Interrogavam-seseelagostariadoquefazia.Seocontactocomacarnefriaeocheiroaputrefacçãoaatrairiamaopontodevirarascostasaosvivos.Na opinião deles, isto não era normal, e olhavam-na de esguelha quandoelapassava,reparandoempormenoresquesóreforçavamaconvicçãodequeelaeraumaaverara.Apelecordemar im,ocabelopretocortadoàCleópatra. O vermelho berrante do baton. Quem mais usaria baton num

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ambientedemorte?Acimadetudo,eraacalmadelaqueosperturbava,oolhar frio e imponente com que contemplava os horrores que eles malconseguem digerir. Ao contrário deles, ela não desviava o olhar.Debruçava-se,aproximava-seeobservava,tocava.Cheirava.

Emaistarde,sobasluzesfortesdasaladeautópsias,dissecava.Estava a dissecar um cadáver nesse momento, enterrando o seu

bisturi na pele gelada e depois numa camada subcutânea de gorduraamarelada.Umhomemquegostavadeumbomhambúrguercombatatasfritas,pensouela,servindo-sedatesouraparacortarascostelaselevantaro escudo triangular do esterno comoquemabria a porta de umarmário,pararevelaroseuconteúdoprecioso.

O coração jazia deitado no leito esponjoso dos pulmões. Durantecinquenta e nove anos, bombeara sangue no corpo de Samuel Knight.Crescera com ele, envelhecera com ele, transformara-se, como ele,passandodomúsculomagrodajuventudeparaaquelenacodecarnebemlardeado. Todas as bombas acabam por deixar de funcionar, o mesmoacontecera à deMr. Knight quando ele estava sentado no seu quarto dehotel emBoston, coma televisão ligadaeumcopodeuísqueao seu lado,emcimadamesa-de-cabeceira.

Mauranemparouparaperguntarasiprópriaquais teriamsidoosúltimospensamentosdomorto, nem se ele tiveradores oumedo.Apesardeexplorarosseusrecantosmaisíntimos,apesardelheterrasgadoapeleeteroseucoraçãonasmãos,SamuelKnightcontinuavaaserumestranho,um indivíduo silencioso e sem exigências, que lhe revelava os seussegredos de boa vontade. Osmortos são pacientes. Não se queixam, nãofazemameaças,nãoadulam.

Osmortosnãoofendemninguém;sóosvivosfazemisso.Maura trabalhava com uma e iciência serena, resseccionando as

vísceras torácicas, pousando o coração sobre a bancada. Lá fora,rodopiavam os primeiros locos brancos de neve de Dezembro, queembatiamnas janelas edeslizavampelas ruas.Mas ali dentro, na saladeautópsias,osúnicossonsqueseouviameramodaáguaacorrereosilvodo ventilador. Yoshima, o assistente, movia-se com um silêncio invulgar,adivinhando-lhe os pedidos, materializando-se sempre que ela precisavadele. Trabalhavam juntos apenas há um ano emeio,mas já funcionavamcomo se fossem um só, unidos pela telepatia de duasmentes lógicas. Elanãotevede lhepedirquevirassea lâmpada;ele jáo izeraea luz incidiaagoranocoraçãogotejante,eumatesouraaguardava,apostos,queelalhepegasse.

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As manchas escuras na parede do ventrículo direito e a isquemiaapical esbranquiçada indicaram a Maura que aquele coração tinha umahistória triste. Um velho enfarte do miocárdio, já com meses ou anos,destruíra parte da parede do ventrículo esquerdo. Depois, algures nasúltimas vinte e quatro horas, sobreviera um novo enfarte. Um trombobloqueara a artéria coronária direita, impedindo que o luxo de sanguechegasseaomúsculodoventrículodireito.

Mauracortoutecidoparaoexamehistológico,sabendojáoqueiriaver aomicroscópio.Coagulaçãoenecrose.A invasãodeglóbulosbrancos,que acorriam como um exército à defesa. Talvez Mr. Samuel Knightjulgassequeomal-estarnopeitosedeviaaumaindigestão.Queoalmoçoforaumexagero, quenãodevia ter comido todas aquelas cebolas. TalvezumPepto-Bismolresolvesseoproblema.Outalvezsetivessemmanifestadomaisalgunssinaisagoirentosqueeleoptarapor ignorar:opesonopeito,as di iculdades respiratórias. Decerto nem lhe passara pela cabeça queestavaasofrerumataquecardíaco.

E muito menos que, um dia depois, morreria em consequência deumaarritmia.

Agora, o coração estava em cima da bancada, aberto e seccionado.Mauraolhouparaotronco,aquefaltavamtodososórgãos.Assimterminaa sua viagem de negócios a Boston, pensou ela. Não há surpresas, aqui.Nemjogosujo,exceptoomodocomoabusoudoseucorpo,Mr.Knight.

DoutoraIsles?EraLouise,asuasecretária,afalarpelointercomunicador.Sim?TenhoadetectiveRizzolinalinhadoisparasi.Podeatender?Atendo.Mauratirouasluvaseatravessouasala,emdirecçãoaotelefonede

parede.Yoshima,queestavaalavarunsinstrumentosnolavatório,fechoua torneira. Virou-se e icou a observá-la com os seus olhos de tigre,sabendojáoquesignificavaumtelefonemadeJaneRizzoli.

Quando Maura desligou, reparou no olhar inquiridor do seuassistente.

Istohojecomeçacedodisseela.Em seguida, despiu a bata e saiu da morgue. Ia buscar mais um

súbditoparaoseureino.Onevãodamanhãtransformara-senumamisturatraiçoeiradeneve

edegelo,enãoseviam limpa-nevesempartenenhuma.MauraconduziacautelosamenteaolongodeJamaicaRiverway;ospneuschiavamnalamae

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oslimpa-pára-brisasarranhavamovidrocobertodegeada.Eraoprimeirovendaval do Inverno e os condutores tinham de se adaptar às novascondições atmosféricas. Já se haviam registado vários despistes, eMaurapassou por um carro-patrulha estacionado, com as luzes a piscar e umagentejuntodocondutordeumcamião,ambosaolharparaumautomóvelquecaíranavaleta.

OspneusdoLexuscomeçaramaguinareopára-choquesadesviar-se para o trânsito que circulava no sentido contrário. Em pânico, Mauralevouopéaotravãoepercebeuqueocontroloautomáticodederrapagemdo veículo fora accionado. Conseguiu repô-lo na sua faixa de rodagem.Raios partam isto, pensou ela, com o coração aos pulos. Vou regressar àCalifórnia. Abrandou consideravelmente, sem se importar com quembuzinava nem com a ila que engrossava atrás de si. Avancem eultrapassem-me, seus idiotas. Já vi muitos condutores como vocêsestendidosnaminhamesadeautópsias.

A estrada levava-a para Jamaica Plain, um bairro de mansõesantigas e imponentes, grandes espaços ajardinados, parques tranquilos ecaminhosàbeira-rio,situadonazonaocidentaldeBoston.NoVerão,deviaser um refúgio frondoso do ruído e do calor do centro da cidade, mas,nessediadecéucinzentoecomumventoagrestequevarriaosrelvadosdespidos,eraumaáreadesolada.

OendereçoqueMauraprocuravapareciaseromaisassustadordetodos. O edi ício icava atrás de ummuro alto de pedra, coberto por umemaranhadodehera.Umabarricadaqueoprotegiadomundo,pensouela.Darua,sóseviamospicosgóticosdeumtelhadodeardósiaeumajanelaaltanaempena,queaobservavacomosefosseumolhonegro.Umcarro-patrulha estacionado junto do portão principal con irmou-lhe que não seenganara.Porenquanto,oscarrosquetinhamchegadoaindaerampoucosas tropas de choque, antes do exército mais numeroso de técnicos quecompareceriamnolocaldocrime.

Mauraestacionoudooutro ladodaruaecruzouosbraçosà frentedo corpo para se proteger da primeira rajada de vento. Quando saiu docarro,escorregou,deixoucairumsapatoemaltevetempodeseagarraràportaparanãoseestatelarnochão.Aoendireitar-se,sentiunostornozelosospingosdeáguageladaquelhecaíamdabainhaensopadadocasaco.Porinstantes,deixou-se icarali,comogeloabater-lhenacara,surpreendidapelarapidezcomquetudoacontecera.

Olhouparaoagentequeestavasentadonocarro-patrulhaeviuqueeleaobservavaequeaviraescorregar.Feridanoseuamor-próprio,tirou

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o estojo do banco da frente, fechou a porta e, com a dignidade possível,preparou-separaatravessararuacobertadegelo.

Sente-se bem, doutora? perguntou o agente da janela do carro-patrulha,comumasolicitudequenãoagradouaMaura.

Sinto.Cuidadocomossapatos.Opátioaindaestámaisescorregadio.OndeestáadetectiveRizzoli?Nacapela.Eondeéqueissofica?Nãoháqueenganar.Éaportaquetemumacruzgrandeporcima.Mauradirigiu-separaoportãoprincipal,masencontrou-ofechadoà

chave. Havia uma sineta de ferro no muro; puxou a corda e o toquemedievaldissipou-selentamenteatéseouvirapenasosommaissuavedogranizoacair.Mesmoporbaixodasineta,haviaumaplacadebronze,cujainscrição estava parcialmente coberta por uma pernada de heraacastanhada.

AbadiadeGraystonesIrmãsdeNossaSenhoradaLuzDivina"Acolheitaéfarta,masosjornaleirossãopoucos.Rezai,portanto,paraqueosjornaleirosfaçamacolheita."Do outro lado do portão apareceu de repente umamulher vestida

denegro,tãosilenciosaqueMauraseassustouaoveroseurostoentreasgrades. Era o rostodeumavelha, tão engelhado e vincadoqueparecia àbeira do colapso, mas os olhos eram vivos e brilhantes como os de umpássaro.Afreiranãodissenada,limitando-seafazerasuaperguntacomoolhar.

SouadoutoraIslesdoInstitutodeMedicinaLegaldisseMaura.Foiapolíciaquemepediuparavircá.

Oportãoabriu-se,comumguincho.Mauraentrounopátio.ProcuroadetectiveRizzoli.Creioqueestánacapela.A freiraapontouparao ladoopostodopátio.Emseguida,virou-lhe

as costas e, a arrastar os pés, dirigiu-se lentamente para a porta maispróxima,deixandoMaura.

Os locosdeneve rodopiavamedançavamnomeiodas agulhasdegranizo, como borboletas brancas fazendo rodas à volta das suas primasmais pesadonas. O caminho mais directo era atravessar o pátio, mas opavimento empedrado estava coberto por uma camada de gelo e ossapatos de Maura, com solas escorregadias, já tinham demonstrado quenão eram os mais adequados para aquela super ície. Maura optou pelo

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estreitocorredorcobertoquebordejavaopátio.Apesardeestarprotegidado granizo, continuava a sentir o vento, que lhe atravessava o casaco.Estava surpreendida com o frio e pensou mais uma vez como o mês deDezembropodiasercruelemBoston.DurantemuitotempoviveraemSãoFrancisco,ondeaquedadeneveeraumadelíciararaenãoumtormento,como estas urtigas que rodopiavam por baixo da aba do telhado e lhepicavam a cara. Encostou-se mais ao edi ício e aconchegou o casaco aocorpo quando passou pelas janelas às escuras. Do outro lado do portãovinhao ruído ténuedo trânsitoem JamaicaRiverway.Masali,no interiordaqueles muros, reinava o silêncio. Se não fosse a velha freira que lheabriraaporta,dir-se-iaqueorecintoestavaabandonado.

Porisso,foicomsurpresaqueMauraviutrêsrostosaobservá-ladeuma das janelas. As freiras formavam um quadro silencioso, comofantasmas vestidos de escuro do outro lado dos vidros, e observavam aintrusa que se embrenhava cada vezmais no seu santuário. O olhar dastrêsmulheresdesviou-seàpassagemdeMaura.

A entrada da capela estava delimitada por um cordão de itaamarela que assinalava o local do crime. A ita descaíra junto da porta eestava coberta por uma camada de gelo. Maura levantou-a, passou porbaixoeabriuaporta.

Odisparodeumamáquinafotográ icaemcheionosolhosobrigou-aaparar.Aportafechou-selentamenteatrásdela,dissipandoaimagemquese formara na sua retina. Já com uma visão mais nítida, deparou comdiversos bancos de igreja dispostos em ilas, paredes caiadas e umcruci ixo enorme pendurado por cima do altar. Era um recinto frio eaustero, cujoambiente lúgubreeraacentuadopelas janelasdevitral,quedeixavamentrarapenasumanesgadeluz.

Pare!Tenhacuidadocomosítioondepõeospésdisseofotógrafo.Mauraolhouparaochãodepedraeviusangue.Epegadas,muitase

misturadas, junto de acessórios médicos. Seringas e ligaduras rasgadas.Aquilo que a equipa de uma ambulância deixara para trás. Mas não viunenhumcadáver.

Olhoumais adiante e reparou no pano branco enrolado na nave enasmanchasdesanguenosbancos.Viaobafodasuaprópriarespiraçãonaquela sala gélida, e a temperatura parecia estar a descer. A suasensação de frio aumentou quando se apercebeu de que asmanchas desanguesesucediamnasvárias ilasdebancosesóentãocompreendeuoquetinhaacontecidoali.

Ofotógraforecomeçouadispararasuamáquinaeo lashherauma

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agressãoparaosolhosdeMaura.Na parte da frente da capela, surgiu um tufo de cabelos pretos e

despenteados.EraadetectiveJaneRizzoli,queselevantoueacenou.Doutora?Avítimaestáaqui.Equesangueéesteaqui,àporta?Esseédaoutravítima,airmãUrsula.OstiposdaMed-Qlevaram-na

para o Hospital St. Francis. Há mais sangue nessa nave central e umaspegadas que estamos a tentar conservar, portanto talvez seja melhorcontorná-laspelasuaesquerda.Mantenha-seencostadaàparede.

Mauraparouparacalçarunssapatosdepapeledepoiscontinuouaandar ao longo do perímetro da sala, colada à parede. Só quando seafastoudaprimeira iladebancoséqueviuocorpoda freira,deitadadebarrigaparacima.Otecidodohábitoeraumamanchanegranumlagodesangue. As mãos já tinham sido protegidas para conservar as provas. AjuventudedavítimaapanhouMauradesurpresa.Afreiraqueareceberaaoportãoeasqueviraàjanelaerammulheresidosas.Estaeramuitomaisnova.Tinhaum rosto etéreo, e dos seus olhos azuis claros, escancarados,emanava uma tranquilidade quase sobrenatural. Na cabeça rapada, ocabelolouronãotinhamaisdedoiscentímetrosdecomprimento.Todososgolpes terríveis tinham sido desferidos no couro cabeludo, que maispareciaumacoroadeformada.

Chamava-se Camille Maginnes. Irmã Camille. Era de HyannisportexplicouRizzoli, num tom frio e pro issional. Era a primeiranoviçadesdeháquinzeanos.TencionavafazerosvotosperpétuosemMaio.

A detective calou-se e depois acrescentou, com uma raivaincontrolável:

Tinhaapenasvinteanos.Tãonova!Pois.Eledeixou-adesfeita.Maura calçou as luvas e agachou-se para examinar a destruição. A

arma do crime deixara lacerações lineares no couro cabeludo. Na pelerasgada destacavam-se fragmentos de osso e uma porção de massacinzenta.Apesardeapeledacaraestaremgrandeparteintacta,tinhaumtomarroxeadoescuro.

Elamorreudebarrigaparabaixo.Queméqueavirou?AsirmãsqueaencontraramrespondeuRizzoli.Paraveri icaremse

ocoraçãoaindabatia.Aquehoraséqueasvítimasforamdescobertas?PorvoltadasoitodamanhãRizzoliconsultouorelógiodepulso.Há

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cercadeduashoras.Sabeoqueaconteceu?Oquelhecontaramasirmãs?Édi ícilarrancar-lhesqualquerdadoútil.Sórestamcatorzeirmãse

todas se encontramemestadode choque.Aqui, julgam-se em segurança.ProtegidasporDeus. E depois, há um loucoqualquer que entra por aquidentro.

Hásinaisdeentradaforçada?Não,mas não é assim tão di ícil entrar no recinto. Todos osmuros

estãocobertosdehera.Épossível saltá-lossemgrandesproblemas.Alémdisso,háumportãonastraseiras,quedáparaumcampo,ondeelastêmosjardins.Qualquerumpodiaentrarporaí,também.

Epegadas?Algumas,aqui.Masláforadevemestarcobertasdeneve.Portanto, não sabemos se ele entrou à força. Podem tê-lo deixado

entrarpeloportãoprincipal.Esta é uma ordemde clausura, doutora. Ninguémpode transpor o

portãoprincipalexceptoopároco,quandovemrezarmissaeouvi-lasemconfissão.Etambémháumasenhoraquetrabalhanaresidênciaparoquial.Deixam-na trazer a ilha quando não consegue arranjar quem ique comela. Mas é isto. Não entra mais ninguém sem a autorização da madresuperiora.Elassósaemparairaomédicoouemsituaçõesdeemergênciafamiliar.

Comqueméquefalouatéagora?Comasuperiora,amadreMaryClement.Ecomasduasfreirasque

encontraramasvítimas.Oquelhedisseram?JaneRizzoliabanouacabeça.Não viram nada, não ouviram nada. Não creio que as outras nos

consigamdizermuitacoisa,também.Porquê?Reparounaidadedelas?Issonãosignificaquetenhamperdidoasfaculdadesmentais.Uma teveuma trombose eduas sofremdadoençadeAlzheimer.A

maioriadormeemquartosquenãodãoparaopátioeportantonãoviramnada.

Aprincípio,Mauralimitou-seainclinar-sesobreocorpodeCamille,sem lhe tocar. Quis conceder à vítima um derradeiro momento dedignidade.Agora,nadatepodemagoar,pensouela.Começouapalpar-lheocourocabeludoesentiuoestalidoprovocadopelosfragmentosdeossoadeslocarem-sedebaixodapele.

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Golpes múltiplos. Todos eles desferidos no cimo da cabeça ou naparteposteriordocrânio...

Easequimosesnaface?Éapenaslividez?É.Enãovaiaumentar.Entãoosgolpesvieramdetrás.Edecima.Talvezoagressorfossemaisalto.Ou ela estivesse ajoelhada. E ele estivesse num plano superior.

Mauraficouimóvel,semafastarasmãosdacarnefria,chocadacom a imagem impressionante daquela jovem freira, ajoelhada aos

pésdoagressorquelhegolpeavaacabeçainclinada.Mas quem será o patife que anda a espancar freiras? Que raio de

mundoéeste?Maura estremeceu ao ouvir as palavras de Jane Rizzoli. Embora já

não se lembrasse da última vez em que pusera os pés numa igreja etivessedeixadodeacreditarháunsanos,ofactodeouvirtaisimpropériosnumespaçosagradoperturbava-a,soava-lheaprofanação.Taleraaforçada doutrinação na infância. Nem ela, para quem os santos e osmilagresnãopassavamagoradefantasias,seatreveriaapraguejarnapresençadacruz.

MasJaneRizzoliestavafuriosaenemreparavanoquedizia,mesmonaquelelugarsagrado.Estavamaisdespenteadadoqueerahabitual,comuma juba negra e revolta que a geada derretida tornava ainda maisbrilhante. Os ossos angulosos da face destacavam-se na pele clara. Nasemiobscuridadedacapela,osolhosdelapareciamtições,rubrosdefúria.Araivajusti icadasempreforaoincentivodeRizzoli,aquiloquealevavaaperseguir os monstros. Mas nesse dia tinha um ar febril e o rosto maismagro,comoseofogoqueaconsumiaviessededentro.

Maura não quis alimentar essas chamas. Conservou um tomdesapaixonado e pro issional. Era uma cientista, lidava com factos e nãocomemoções.

PegounobraçodairmãCamilleeverificouaarticulaçãodocotovelo.Estáflácida.Nãohárigormortis.Menosdecinco,seishoras,hem?Tambémestáfrioaquidentro.Jane Rizzoli riu-se, exalando uma baforada de vapor na atmosfera

gelada.Nãobrinquecomigo!Eu diria que a temperatura é quase negativa. Se assim for, o rigor

mortiséretardado.

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Porquantotempo?Quaseindefinidamente.Eacaradela?Asequimoses?O rigormortis podenão termaisdemeiahora. Issonãonos ajuda

muitoacalcularahoradamorte.Maura abriu o seu estojo e tirou o termómetro para medir a

temperaturaambiente.Reparounasváriascamadasderoupadavítimaeresolveu não medir a temperatura rectal enquanto o corpo não fossetransportadopara amorgue.O recinto estavamal iluminado,nãoeraumlocal em que ela pudesse apurar com rigor se houvera ou não abusosexual antes de inserir o termómetro. Além disso, se lhe despisse asroupaspoderiaeliminarprovas.Optouportirarumaseringapararecolherhumor vítreo, o que lhe permitiria medir os níveis de potássio e, dessemodo,calcularahoradamorte.

Fale-me da outra vítima pediu Maura, ao mesmo tempo queespetavaoolhoesquerdodamortaerecolhiahumorvítreocomaseringa.

Impressionada,Rizzoligemeuevirouacaraparaolado.Avítimaque foi encontradaàportaeraa irmãUrsulaRowland,de

sessentaeoitoanos.Deviaserumavelharija.Elesdisseramqueelaaindamexia os braços quando a levaram para a ambulância. Eu e o Frostchegámosaquiprecisamentequandoelesiamasair.

Qualagravidadedosferimentosdela?Não a vi. Segundo as últimas notícias que tivemos do Hospital St.

Francis, está a ser operada. Fracturasmúltiplas no crânio e hemorragiascerebrais.

Talcomoestavítima.Pois.ComoaCamille.AraivaregressaraàvozdeRizzoli.Maura levantou-se e continuou a tremer. A bainha ensopada do

casacomolhara-lheascalçaseelasentiaostornozelosenvolvidosemgelo.Comolhehaviamditoaotelefonequeo localdocrimenãoeraaoar livre,não trouxera o cachecol nem as luvas que tinha no carro. Mas aquelerecinto sem aquecimento era pouco mais quente do que o pátio lá fora.EnfiouasmãosnasalgibeirasdocasacoenãopercebeucomoéqueRizzoli,que também não trouxera luvas nem cachecol, conseguia estar há tantotemponuma capela tão fria.Aparentemente, a detectivedispunhada suaprópriafontedecalor,afebredasuaindignaçãoe,apesardeestara icarcomoslábiosroxos,nãotinhapressadesairdali.

Porque está tanto frio aqui dentro? perguntou Maura. Não posso

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imaginarqueelasquisessemassistiràmissanestasala.Enãoassistem.Estapartedo edi ícionunca éutilizadano Inverno.

Sairiamuitocaroaquecê-la.A inal,sãotãopoucasasqueaindaaquivivem.A missa é celebrada numa capela mais pequena, ao lado da residênciaparoquial.

Maura pensou nas três freiras que tinha visto à janela, todas elasidosas.Estavammesmoaapagar-se,umaporuma.

Seestacapelanãoéutilizada,oqueestavamasvítimasafazeraqui?Rizzolisuspirou,soltandoumabaforadadevapor,comosefosseum

dragão.Ninguém sabe. A superiora diz que a última vez que viu as irmãs

Ursula e Camille foi durante as orações de ontem à noite, por volta dasnove horas. Como elas não apareceram para as orações da manhã, asirmãsforamàprocura.Nuncaesperaramvirencontrá-lasaqui.

Estes golpes todos na cabeça... Parecem ser o resultado de umataquedefúria,puraesimplesmente.

Mas repare na cara dela disse Rizzoli, apontando para Camille. Elenãoaatingiunacara.Poupou-a,oquetornaacoisamuitomenospessoal.Como senão sedirigisse especi icamente a ela,mas aoque ela é.Aoqueelarepresenta.

Aautoridade?Opoder?perguntouMaura.Écurioso!Euinclinar-me-iamaisparafé,esperança,caridade.Bem,eufrequenteiumliceucatólico.Você?NinguémdiriaretorquiuRizzoli,dandoumagargalhada.Maura inspirouumaboa lufadade ar frio e olhouparao cruci ixo,

recordando os anos que passara na Holy Innocents Academy. E ostormentos especiais in ligidos pela irmã Magdalene, que dava aulas deHistória. O tormento não fora ísico, mas emocional, aplicado por umamulher que tinha facilidade em identi icar as raparigas que, na suaopinião,pecavamporumexcessoindecorosodeautocon iança.Aoscatorzeanos, os melhores amigos de Maura não eram pessoas, mas livros.Impusera-secomfacilidadeàscolegasdeturmaeorgulhava-sedisso.Foraisto que izera com que a ira da irmã Magdalene se abatesse sobre ela.Para o próprio bem deMaura, aquele orgulho pecaminoso de que o seuintelectopadecia teria de ser domado e transformado emhumildade. E airmã Magdalene entregou-se a essa tarefa com um gosto perverso.Ridicularizava Maura nas aulas, escrevia comentários incisivos nasmargens dos seus testes imaculados e suspirava acintosamente semprequeMaura levantava amão para fazer uma pergunta. E Maura acabara

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porficarreduzidaaosilêncio.Elasintimidavam-meexplicouMaura.Asfreiras.Julgueiquenadaaassustava,doutora.Hámuitascoisasquemeassustam.Rizzolisoltouumagargalhada.Masnãooscadáveres,poisnão?Há coisas muito mais assustadoras neste mundo do que os

cadáveres.Deixaram o corpo de Camille deitado no seu leito de pedra e

contornaram o recinto até chegarem ao sítio em que Ursula foraencontrada, ainda viva. O fotógrafo acabara o seu trabalho e fora-seembora.MauraeRizzoli icaramnacapela,sozinhas,aouviroecodassuaspróprias palavras. Maura sempre considerara que as capelas eramsantuários universais, onde até o espírito daqueles que não acreditavampoderia encontrar conforto. Mas não se sentia confortada neste lugardesolado,ondeaMorteentrara,desprezandoossímbolossagrados.

FoiprecisamenteaquiqueencontraramairmãUrsuladisseRizzoli.Estendidanochão,comacabeçaviradaparaoaltareospésviradosparaaporta.

Comosesetivesseprostradodiantedocrucifixo.Este tipo é um animal nojento comentou Rizzoli, cujas palavras

indignadaseramcortantescomopedaçosdegelo.Écomissoquetemosdelidar. Um louco. Ou algum idiota charrado à procura de qualquer coisapararoubar.

Nãosabemosseéumhomem.RizzoliapontouparaocorpodairmãCamille.Achaquefoiumamulherquefezaquilo?Umamulherécapazdemanejarummartelo,deesmagarumcrânio.Descobrimosumapegada.Ali,nomeiodanave.Pareceu-meserde

umsapatodehomemnúmeroquarentaedois.Nãoserádealguémqueveionaambulância?Não.AspegadasdaequipadaMed-Qestãoaqui,juntodaporta.Ada

naveédiferente.Édele.Oventosoprava,fazendoestremecerosvidrosdasjanelas,eaporta

chiavacomoseumasmãosinvisíveisaabanassem,desejosasdeentrar.Oslábios de Rizzoli estavam roxos e o seu rosto adquirira uma palidezcadavérica,mas aparentemente a detective não tencionava encontrar umsítiomaisquente.Rizzolieraassimmesmo,demasiadoteimosaparaseraprimeiraacapitular,aadmitirqueatingiraoseulimite.

Maura olhou para o chão de pedra em que a irmãUrsula estivera

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caída e não pode deixar de concordar com a intuição de Rizzoli. Aquelaagressão fora um acto de insanidade. Era loucura o que ela via naquelasmanchas de sangue. Nos golpes desferidos no crânio da irmã Ursula. Ouloucuraoumaldade.

Sentiuumcalafrionaespinha.Endireitou-se,atremer,econtemplouocrucifixo.

Estou a enregelar disse ela. Podemos aquecer-nos em qualquerlado?Tomarumcafé?

Jáacabouoquetinhaafazeraqui?Jávioqueprecisavadever.Aautópsiadir-nos-áoresto.

DoisSaíram da capela, pisando a ita da polícia que entretanto caíra da

porta e estava revestida de gelo.O vento fustigou-lhes o casaco e o rostoenquantopercorriamapassagemcoberta,comosolhossemicerradosparase protegerem das investidas impiedosas dos locos de neve. Assim queentraramnumátriosombrio,Maurasentiuumsoprodearumpoucomaisquentenorostoentorpecido.Cheirou-lheaovos,atintavelhaeaomofodeumsistemadeaquecimentoantigoquelibertavapó.

Atraídaspelotilintardalouça,desceramumcorredormaliluminadoque desembocava numa divisão inundada de luz luorescente, umpormenor de uma modernidade desconcertante. A luz projectava-se,intensae implacável,nasfacesengelhadasdasfreirassentadasàvoltadeuma mesa escalavrada. "Eram treze um número aziago. Estavamconcentradas em quadrados de tecido com um padrão loral de coresclaras, itasdesedaetabuleiroscheiosdealfazemasecaepétalasderosa.Eraahoradoslavoures,pensouMaura,observandoomodocomoasmãostolhidaspelaartriteenchiamossaquinhoscomasplantaseosatavamcoma ita. Uma das freiras encontrava-se numa cadeira de rodas. Estavainclinada para o lado, com a mão esquerda enrolada como uma garrasobre o braçoda cadeira, e tinhaum rosto lácido quemais parecia umamáscara parcialmente derretida. A sequela cruel de uma trombose. Noentanto,foiaprimeiraarepararnasduasintrusasesoltouumgemido.Asoutrasirmãslevantaramacabeçaeviraram-separaMauraeJaneRizzoli.

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Ao contemplar aqueles rostos encarquilhados, Maura icousurpreendida com a sua fragilidade. Não eram as imagens fortes deautoridade que recordava da sua infância, eram expressões confusas eaturdidasqueprocuravamnelarespostasparaatragédiaqueasatingira.

Maura sentiu-se pouco à vontade na sua nova situação, como umacriança crescida que se apercebe pela primeira vez de que ela e os paisinverteramospapéis.

AlguémmesabedizerondeestáodetectiveFrost?perguntou JaneRizzoli.

Quem respondeu foi uma mulher com um ar morti icado, queacabaradesairdacozinhacomumtabuleirocheiodechávenasdecaféepires. Vestia uma bata azul desbotada com nódoas de gordura. Na mãoesquerda,umpequenodiamantedestacava-senomeiodaespumadaáguadelavara louça.Nãoeraumafreira,pensouMaura,masaempregadadaresidênciaparoquial,quecuidavadaquelacomunidadeaindamaisdébil.

Eleaindaestáa falar comamadre respondeuamulher. Inclinouacabeça na direcção da porta, e soltou-se-lhe uma madeixa de cabelocastanhoencaracoladoquelhecaiusobreatestafranzida.Ogabinetedelaéaofundodocorredor.

EuseiocaminhodisseRizzoli,comumgestodecabeça.Saíramdasala, furtando-seàquela luzdesagradável,econtinuaram

adescerocorredor.Maurasentiuumacorrentedearfrio,comosetivesseacabado de passar por um fantasma. Não acreditava na vida depois damorte, mas quando seguia os passos de alguém que tinha morrido hápouco tempo, às vezes perguntava a si própria se o falecimento nãodeixara atrás algum sinal, algum ligeiro sobressalto, algum resquício deenergiaqueoutrospudessemsentir.

Rizzolibateuàportadogabinetedamadre.Entre!respondeuumavoztrémula.Aoentrar,Maurasentiuoaromadocafé,tãodeliciosocomoodeum

perfume,ereparounospainéisdemadeiraescuraenumcruci ixosingelopendurado na parede por cima de uma secretária de carvalho. Do outroladodasecretáriaestavaumafreiracurvada,cujosolhosazuis,ampliadospelosóculos,seassemelhavamalagosenormes.Pareciatãovelhacomoassuas frágeis irmãs sentadas àmesa da residência paroquial, e as lentes,grossas e pesadas, como que a obrigavam a debruçar-se sobre asecretária.Masoolhareravivoeirradiavainteligência.

OcolegadeRizzoli,BarryFrost,pousouimediatamenteachávenadecaféelevantou-sepordelicadeza.Frosteraoequivalenteaumirmãomais

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novo, o único elemento da unidade de homicídios que entrava numa salade interrogatórios e conseguia convencer o suspeito de que era o seumelhor amigo. Além disso, era o único que aparentemente nunca seimportava de trabalhar com a inória da Rizzoli, que naquele momentolançavaumolhardecensuraàsuachávenadecafé,semdúvidaregistandoo facto de o colega estar confortavelmente instalado numa sala aquecida,enquantoelatremiadefrionacapela.

Reverenda madre, apresento-lhe a doutora Isles, do Instituto deMedicinaLegal.Doutora,estaéamadreMaryClement.

Mauraapertouamãodamadre.Eraumamãodeformada,eapeleparecia papel ressequido. Ao cumprimentá-la, Maura reparou no punhobegequesaíadamangapreta.Entãoeraassimqueasfreirassuportavamo frio naquele edi ício. Por baixo do hábito de lã, a madre usava roupainterior.

Osolhosazuisobservaram-naatravésdaslentesgrossas.DoInstitutodeMedicinaLegal...Querdizerqueémédica?Sou.Patologista.Estudaascausasdamorte?Exactamente.Amadrecalou-se,comoseganhassecoragemparafazerapergunta

seguinte:Jáentrounacapela?Jáviu...Maura fez um sinal a irmativo. Queria evitar a pergunta que

adivinhava,maseraincapazdeserindelicadaparacomumafreira.Apesardejáterquarentaanos,aindaficavaperturbadaaoverumhábitonegro.

Ela... A voz de Mary Clement resumia-se a um murmúrio. A irmãCamillesofreumuito?

Lamentonãoteraindarespostas.Sóquandoconcluira...Oexame.A autópsia, queria ela dizer, mas o termo pareceu-lhe demasiado

frio,demasiadoclínico,paraosouvidos recatadosdeMaryClement.Alémdisso, não queria revelar a terrível verdade. Imaginava o que tinhaacontecido a Camille. Alguém confrontara a jovem na capela. Alguém aperseguiraquandoelafugira,aterrada,paraanave,elhearrancaraovéubranco de noviça. Quando os golpes do agressor lhe atingiram o courocabeludo,osangueespirrouparaosbancos,maselacontinuouaavançar,atéquecaiude joelhos,derrotada,aospésdele.Mesmoassim,oagressornãoparou.Mesmoassim, continuouaespancá-la, esmagando-lheocrâniocomosefosseumovo.

Evitando o olhar de Mary Clement, Maura itou o cruci ixo de

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madeira pendurado na parede atrás da secretária, mas esse símboloimponentejánãofoiparaelaumafontedeconforto.

AindanãovimososquartosatalhouJaneRizzoli.Comoerahabitual,oseuprofissionalismoveioàsuperfície,

levando-aaconcentrar-seapenasnatarefaseguinte.MaryClementconteveaslágrimas.

É verdade. Eu ia agora mesmo conduzir o detective Frost aosaposentosdelas.

EstamosàsuadisposiçãorematouRizzoli.Amadre tomou a dianteira e subiu uma escada iluminada apenas

pelaluzdodiaqueentravaporumajaneladevitral.Numdiasemnuvens,o sol teria pintado as paredes com uma rica paleta de cores, mas nessamanhãinvernosasóseviamsombras.

Agoraosquartos ládecimaestãoquase todosvazios.Ao longodosanos, fomos mudando as irmãs cá para baixo, uma por uma disse MaryClement,subindodevagareagarrando-seaocorrimãocomoqueparaiçarocorpo.

Com receio que ela se desequilibrasse, Maura seguia atrás,retesando-sesemprequeamadreparava,acambalear.

OjoelhodairmãJacintaandaaincomodá-laetambémtenhodelhearranjar um quarto cá em baixo. E agora a irmã Helen tem di iculdadesrespiratórias.Jásomostãopoucas...

ÉumedifíciobastantegrandeparaconservardisseMaura.Evelho.Amadreparoupararecuperarofôlego.Depoisacrescentoucomum

sorrisotriste:Velhocomonós.Ecomumamanutençãotãodispendiosa!Chegámos

a pensar que teríamos de o vender,mas Deus contemplou-nos com umasolução.

Qual?Recebemosumdonativo,oanopassado.Agoracomeçámosasobras

deremodelação.Astelhasdeardósiadacoberturasãonovaseisolámososótão. A seguir, tencionamos substituir a caldeira. Acredite ou não, esteedi ícioestámuitoconfortável,comparadocomoqueeraháumanodisseela,olhandodenovoparaMaura.

A madre respirou fundo e recomeçou a subir a escada, com ascontasdorosárioatilintar.

Chegámosa serquarentae cinco.QuandoeuvimparaGraystones,todososquartosestavamocupados.Nasduasalas.Masagorasomosuma

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comunidadeenvelhecida.Quandoveioparacá,reverendamadre?perguntouMaura.Entreicomopostulantecomdezoitoanos.Haviaumjovemcavalheiro

que queria casar comigo. O orgulho dele icou bastante ferido quando otroquei por Deus. A freira parou e olhou para trás. Pela primeira vez,Maura reparou que ela usava um aparelho auditivo por baixo da touca.Talvez não consiga imaginar, não é verdade, doutora Isles? Que eu já fuitãonova?

Não, Maura não conseguia imaginar. Não conseguia imaginar queMaryClementtivessesidooutracoisaexceptoarelíquiavacilantequeeraagora.Emuitomenosumamulherdesejável,perseguidapeloshomens.

Quando chegaram ao cimo da escada, viram um longo corredor.Estavamais quente ali, quase agradável, talvezporqueos tectos baixos eescuros conservavammais o calor.As vigaspareciam ter pelomenosumséculo. Amadre encaminhou-se para o segundo quarto e hesitou, com amãonopuxadordaporta.Porfim,abriu-aealuzacinzentadaquevinhadointeriorprojectou-senoseurosto.

EsteéoquartodairmãUrsuladisseelaemvozbaixa.Oquartoeratão pequeno que mal cabiam lá todos ao mesmo tempo. Frost e Rizzolientraram,masMaura icou à porta, a observar as estantes recheadas delivroseosvasoscombelasvioletasafricanas.Comjanelasdepinázioseotecto baixo de vigas salientes, o quarto parecia medieval. A mansardaalinhada de uma estudiosa, cujamobília se reduzia a uma cama simples,umacómoda,umasecretáriaeumacadeira.

A cama está feita disse Rizzoli, olhando para os lençóis bemesticados.

FoiassimqueaencontrámosestamanhãesclareceuMaryClement.Elanãosedeitouontemànoite?Émaisprovávelquesetenhalevantadocedo.Éocostume.Aquehoras?Elalevanta-semuitasvezesantesdasmatinas.Matinas?perguntouFrost.Dasnossasoraçõesdamanhã,àssetehoras.NoVerãopassado,saiu

semprecedo,paraojardim.Elaadoratrabalharnojardim.EnoInverno?perguntouJane.Oquefazelatãocedo?Seja qual for a estação, há sempre coisas a fazer, para aquelas de

nós que ainda conseguem trabalhar.Mas agora,muitas das irmãs já nãotêmforças.Esteano,tivemosdecontratarMistressOtisparanosajudarnacozinha.Mesmocomaajudadela,malconseguimosdarcontadorecado.

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Rizzoli abriu a porta do roupeiro. Lá dentro estava uma colecçãoaustera de vestes pretas e castanhas. Nem uma nota de cor ou deembelezamento.Eraoguarda-roupadeumamulherparaaqualsóaobradoSenhorera importante,paraaqualoestilodaroupaestavaapenasaoSeuserviço.

- Estas são as únicas roupas que ela tem?O que estou a ver nesteroupeiro?perguntouRizzoli.

Fazemosumvotodepobrezaquandoingressamosnaordem.Isso signi ica que renunciam a tudo o que vos pertence? Mary

Clement reagiu com o sorriso paciente de quem responde a criança queacaboudefazerumaperguntaabsurda.

Nãoéassimtãodi ícil,detective.Ficamoscomosnossoslivrosecomalgumas recordações pessoais. Como pode ver, a irmã Ursula gosta dassuas violetas africanas. Mas sim, deixamos quase tudo para trás quandovimos para cá. Esta é uma ordem contemplativa, e não nos agradam asdistracçõesdomundoexterior.

Desculpe,reverendamadredisseFrost.Nãosoucatólicoe,portanto,nãoseioquesignificaessapalavra.Oqueéumaordemcontemplativa?

Apergunta fora bastante respeitosa, eMary Clement concedeu-lheumsorrisomaiscalorosodoqueaquelequedispensaraaJaneRizzoli.

Uma freira contemplativa leva uma vida de re lexão. Uma vida deoração,devoçãoemeditação.Éporissoquenosrefugiamoscádentro,quenãorecebemosvisitas.Aclausuraéumconfortoparanós.

Esealgumaviolarasregras?perguntouRizzoli.Expulsam-na?Maura reparou que Frost estremecera ao ouvir a pergunta tão

directadacolega.As nossas regras são voluntárias respondeu Mary Clement.

Acatamo-lasporqueéesseonossodesejo.Mas,devezemquando,devehaverumafreiraqueacordaumdiae

diz:"Apetece-meiràpraia."Issonãoacontece.Temdeacontecer.Sãosereshumanos.Nãoacontece.Ninguémviolaasregras?Ninguémsaltaomuro?Nãoprecisamosdesairdaabadia.MistressOtisfaz-nosascompras.

OpadreBrophysatisfazasnossasnecessidadesespirituais.Eascartas?Ostelefonemas?Mesmonasprisõesdealtasegurança,é

possívelfazerumtelefonemadevezemquando.Frostabanavaacabeça,comumaexpressãodorida.

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Temos aqui um telefone, para emergências respondeu MaryClement

Equalquerpessoapodeutilizá-lo?Paraquê?Eacorrespondência?Recebemcartas?Algumasdenósoptarampornãoaceitarcorrespondência.Esequiseremenviarumacarta?Aquem?Issoéimportante?OsorrisodeMaryClementdenotavaagoratensãoecansaço.Só posso repetir o que disse, detective. Não somos prisioneiras.

Optámos por viver desta maneira. As que não concordarem com estasregras,podemsair.

Eoquefariam,láfora?Talvezjulguequenãosabemosoqueéomundo.Masalgumasirmãs

trabalharamemescolaseemhospitais.julgueiqueviveremclausuraimplicavanãosairdoconvento.Às vezes,Deus convoca-nospara tarefas no exterior destesmuros.

Há uns anos, a irmã Ursula sentiu o Seu chamamento para servir noestrangeiroe foi-lheconcedidaautorizaçãoparaviver lá foraemanterosseusvotos.

Masvoltou.Oanopassado.Nãolheagradouaquiloláfora,omundo?A missão dela na índia não foi fácil. E houve violência, um ataque

terrorista à aldeia em que ela estava. Foi então que ela voltou para nós.Aqui,sentiu-sedenovoemsegurança.

Elanãopodiairparacasadafamília?O parente mais próximo era um irmão, que morreu há dois anos.

Agora, nós somos a família dela e Graystones é a sua casa. Quando estácansada do mundo e precisa de conforto, não vai para casa, detective?perguntouamadrecomternura.

Aparentemente, esta resposta desestabilizou Rizzoli. A detectivedesviouoolharparaaparedeemqueestavaocruci ixoe, comamesmarapidez,olhouparaoutrolado.

Reverendamadre?Amulherdabataazulcomnódoasdegorduraestavanocorredor,a

olhar para elas com uma expressão neutra e indiferente. Tinham-sesoltadomaisalgumasmadeixasdoseurabo-de-cavaloquelhecaíamsobre

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afaceangulosa.O padre Brophy diz que vem a caminho para falar com os

repórteres. Mas já são tantos a telefonar que a irmã Isabel tiroumesmoagoraotelefonedodescanso.Nãosabeoquelheshá-dedizer.

Eujálávou,MistressOtis.Amadrevirou-separaRizzoli.Comopodever,estamosassoberbadas.Por favor, iqueaquio tempoque forpreciso.Euestareiláembaixo.

Jáagora,qualéoquartodairmãCamille?perguntouJane.Éaquartaporta.Enãoestáfechadaàchave?Estas portas não têm fechadura. Nunca tiveram respondeu Maiy

Clement.O cheiro a lixívia e a sabão foi a primeira coisa de que Maura se

apercebeuaoentrarnoquartodairmãCamille.TalcomoodairmãUrsula,tinhaumajaneladepináziosquedavaparaopátioeomesmotectobaixocomvigassalientes.Mas,enquantooquartodeUrsulapareciahabitado,ode Camille estava tão esfregado e limpo que parecia esterilizado. Asparedescaiadasestavamnuas,comexcepçãodeumcruci ixodemadeirapenduradoemfrentedacama.DeviaseraprimeiracoisaqueCamilleviatodososdiasaoacordar,umsímbolodasuaexistênciamonodirigida.Eraoquartodeumapenitente.

Maura olhou para o soalho e reparou que havia zonas em que, detanto esfregar, o verniz desaparecera e a madeira estava mais clara.Imaginou a jovem e frágil Camille de joelhos, agarrada à palha-de-aço, araspar...Oquê?Manchas seculares?Todososvestígiosdasmulheresquealitinhamvividoantesdela?

Céus! exclamou Rizzoli. Se o asseio for uma característica dasantidade,estamulhereraumasanta.

Maura aproximou-seda secretária juntoda janela, onde estavaumlivro aberto: Saint Brigid of Ireland: A Biography. Imaginou Camille a lernaquela secretária antiga, com a luz do dia a dançar nas suas feiçõesdelicadas. Interrogou-se se,nosdiasde calor,Camille algumavez tiraraovéubrancoesedeixara icardecabeçanua,paraqueabrisaqueentravapelajanelalhearejasseocabelolourorapado.

AquihásanguedisseFrost.Maura virou-se e viu o detective ao pé da cama, a olhar para os

lençóisamarrotados.Janepuxouacolchaparatrás,revelandomanchasvermelho-vivono

lençoldebaixo.

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SanguemenstrualesclareceuMaura.ReparouqueFrostcoraraeviraraascostas.Atéoshomenscasados

erammelindrososquandoestavamemcausapormenoresíntimosdocorpodasmulheres.

O toque da sineta levouMaura a olhar de novo para a janela. Viuuma freira a sair do edi ício para ir abrir o portão. Quatro pessoas deimpermeávelamareloentraramnopátio.

ChegaramosperitosobservouMauraVoutercomelesláabaixodisseFrost,saindodoquarto.Continuava a cair granizo que embatia nos vidros da janela,

formando uma camada de gelo que impedia Maura de ver o pátio comnitidez.MasconseguiudistinguirFrostasairea iraoencontrodaequipade peritagem. Mais invasores que violavam a santidade da abadia. E, dooutro lado do muro, outros aguardavam também a sua oportunidade deentrar.Mauraavistouacarrinhadeumaestaçãodetelevisãoapassarpeloportão, decerto com as câmaras a funcionar. Como teriam dado com amoradatãodepressa?Seriaocheirodamorteassimtãointenso?

Virou-separaRizzoli.Vocêécatólica,Jane,nãoé?RizzolifungouecontinuouavasculharnoroupeirodeCamille.Eu?Deixeideiràcatequese.Quandoéquedeixoudeacreditar?MaisaomenosquandodeixeideacreditarnoPaiNatal.Nemsequer

iz o crisma, o que ainda hoje lixa o juízo ao meu pai. Céus, mas queroupeiro tãomonótono!Vejamos,oquehei-devestirhoje?Ohábitopretoou o castanho? Por quemotivo é que uma rapariga no seu perfeito juízohaviadequererserfreira?

Nemtodasasfreirasusamhábito.DesdeoConcílioVaticanoIIqueéassim.

Pois,mas essa coisa da castidadenãomudou. Imaginem!Uma vidainteirasemsexo!

Não sei disse Maura. Talvez seja um alívio deixar de pensar emhomens.

Nãotenhoacertezadequeissosejapossível.Janefechouoroupeiroe examinou lentamente o quarto, à procura de... De quê? Da chave paracompreenderapersonalidadedeCamille?Deumaexplicaçãoparaofactodeavidadelateracabadotãocedo,deumaformatãobrutal?Masalinãohavia pistas visíveis. Era um quarto em que todos os vestígios da suaocupantetinhamsidoeliminados.Talvezestefosseotraçomaisrevelador

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da personalidade de Camille. Uma jovem a esfregar, sempre a afastar asujidade.Opecado.

Rizzoli aproximou-seda camaepôs-sede gataspara espreitarporbaixo.

MeuDeus!Istoaquiembaixoestátãolimpoqueatésepodiacomernochão.

O vento fez abanar a janela e o granizo fustigou os vidros. Mauravirou-seeviuFrosteosmembrosdaequipadeperitagemadirigirem-separaacapela.Umdostécnicosescorregouderepenteelevantouosbraçoscomoumpatinadorparatentarmanter-sedepé.Todostentamosmanter-nosdepé,pensouMaura.Resistindoàtentação,talcomotentamosresistiràforçadagravidade.Equandocaímos,ésempreumasurpresa.

A equipa entrou na capela, e ela imaginou-os de pé, em círculo, aobservaremsilêncioo sangueda irmãUrsula, rodeadosdebaforadasdevaporqueassinalavamasuarespiração.

Ouviuumbaqueatrásdesi.Virou-se e icou alarmada. Rizzoli estava sentada no chão junto à

cadeiratombada,comacabeçaentreosjoelhos.Jane!Mauraajoelhou-se juntodela. Jane?Adetectiveafastou-acom

amão.Euestoubem.Euestoubem...Oqueaconteceu?Eusó...Achoquemelevanteidemasiadodepressa.Estouapenasum

poucotonta...Rizzolitentouendireitar-se,masapressou-seabaixaracabeçaoutra

vez.Deviadeitar-se.Não é preciso. Dê-me só um minuto para desanuviar. Maura

lembrou-se que Rizzoli não estava com bom aspecto na capela, tinha orostomuito pálido e os lábios roxos.Nessa altura, calculou que fosse porcausa do frio. Agora estavam numa sala quente e Rizzoli pareciaigualmenteesgotada.

Tomouopequeno-almoçoestamanhã?perguntouMaura.Hum...Nãoselembra?Sim,achoquesim.Maisoumenos.Oquequerdizercomisso?Comiuma torrada.Rizzoli afastou amãodeMaura, recusando com

impaciência qualquer tipo de ajuda. Era por causa deste terrível orgulho

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queàsvezessetornavatãodi íciltrabalharcomela.Achoqueestoua icarcomgripe.

Temacertezaquenãoémaisnada?Rizzoliafastouocabelodorostoelevantou-sedevagar.Tenho.Enãodeviaterbebidotantoscafésestamanhã.Quantos?Três...Talvezquatro.Nãoestáaexagerar?Eu precisava de cafeína. Mas agora sinto um buraco no estômago.

Apetece-mevomitar.Euacompanho-aàcasadebanho.Não. Rizzoli afastou-a. Eu consigo desenvencilhar-me sozinha, está

bem?Levantou-sedevagaredeixou-se icarparadaporalguns instantes,

comosenãocon iassenassuasforças.Depois,empinouosombrose,comumassomodasuaarrogânciahabitual,saiudoquarto.

O toque da sineta obrigou Maura a espreitar de novo pela janela.Mais uma vez, a velha freira saiu do edi ício e atravessou a custo o pátioempedradopararesponderàchamada.Onovovisitantenemprecisoudejusti icar-se; a freira abriu imediatamente o portão. Um homem desobretudopretoentrounopátioepousouamãonoombroda freira.Eraum gesto de conforto e de familiaridade. Dirigiram-se ambos para oedi ício. O homem caminhava devagar, acompanhando o passo da velhatolhidapelaartrite,decabeçabaixacomosenãoquisesseperdernadadoqueeladizia.

A meio caminho, parou de repente e olhou para cima, como se,sentissequeMauraestavaaobservá-lo.

Por instantes, os olhares de ambos cruzaram-se através da janela.Maura viu um rosto magro e impressionante e uma cabeça de cabelosnegros despenteados pelo vento. E apercebeu-se de uma super íciebranca,porbaixodagolalevantadadosobretudopreto.

Eraumpadre.Quando Mrs. Otis anunciou que o padre Brophy ia a caminho da

abadia,Maura imaginaraque se tratavadeumhomem idoso ede cabelogrisalho.Masoindivíduoqueaencaravaagoraeranovo,nãotinhamaisdequarentaanos.

Ele e a freira continuaram a dirigir-se para o edi ício, e Mauradeixou de os ver. O pátio voltou a icar deserto, mas a neve pisadaconservavaasmarcasdetodososqueatinhamatravessadonessamanhã.

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A equipa de recolha damorgue estava a chegar com amaca, e aspegadasseriamaindamaisnumerosas.

Maura respirou fundo, temendo o regresso à capela fria e à tarefasinistraqueaaguardava.Saiudoquartoefoiaoencontrodesuaequipe.

TrêsJaneRizzoliaproximou-sedolavatórioe,aoolharparaoespelhonão

gostou do que viu. Não pôde deixar de se comparar com a eleganteDra.Isles,quetinhasempreumaspectomagní ico,serenoecontrolado,comoscabelos pretos no seu lugar e o batom vermelho e brilhante que sedestacavanapeleimpecável.AimagemqueRizzoliviunoespelhonãoeraserenanemimaculada.Oseucabeloestavatãodesgrenhadocomoodeumespírito celta e os caracóis negros sobrepunham-se ao rosto pálido eesgotado. Nem pareço eu, pensou ela. E não reconheço esta mulher queolhaparamim.Quandometransformeinestaestranha?

Derepente, teveoutroacessodenáuseae fechouosolhos, lutandocontraela, resistindo-lhe tão ferozmente comosedissodependessea suavida. Mas nem toda "a força de vontade do mundo podia afastar oinevitável.Levouamãoàbocaecorreuparaacabinemaispróxima,ondechegoumesmoatempo.Depoisdeteresvaziadooestômago, icoualicoma cabeça inclinada sobre a sanita, sem se atrever a sair daquele lugarseguro.Pensou:Temdeserdagripe.Porfavor,quesejadagripe.

Quando o enjoo passou, sentiu-se tão cansada que se sentou nasanita,encostando-seàparede.Pensounotrabalhoquetinhaàsuafrente.Todas as entrevistas que ainda havia a fazer, a frustração de tentararrancar qualquer informação útil àquela comunidade de mulheresaturdidas e silenciosas. E o pior de tudo, estar presente enquanto ostécnicospericiais levassemacaboasuamicroscópicacaçaaotesouro.Emgeral, era ela que ansiava por provas, sempre mais provas, era ela queprocuravacontrolartodososlocaisdocrime.Eagoraestavaen iadanumacasadebanho, relutanteemenvolver-sea fundonocaso,aocontráriodoque sempre tentava fazer. Apetecia-lhe esconder-se ali, nomeio daquelesilêncioabençoado,ondeninguémpudesseveraagitaçãoqueoseurosto

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denunciava. Perguntou a si própria se a Dra. Isles já teria reparado emalguma coisa; talvez não. A patologista parecia sempre mais interessadanosmortosdoquenosvivose,quandoeraconfrontadacomumacenadehomicídio,eraocadáverquemaislhedespertavaaatenção.

Por im, JaneRizzoliendireitou-seesaiudacabine.Acabeçaestavamais desanuviada e o estômago acalmara. O fantasma da velha Rizzoliregressava de novo à sua pele. No lavatório, encheu a boca de água friapara eliminar o sabor a azedo emolhou o rosto. Anima-te, rapariga. Nãosejaspiegas.Seelesviremumburaconatuacarapaça,tentarãoaumentá-lo.Ésempreassim.Rizzoliagarrounumtoalhetedepapel,enxugouorostoe preparava-se para o deitar no cesto dos papéis, quando parou,lembrando-sedacamadairmãCamille.Dosanguenoslençóis.

O cestodospapéis estavaquase cheio. Entre omontede toalhetes,encontrava-se um pequeno embrulho de papel higiénico. Vencendo arepugnância, desfez o embrulho. Embora já soubesse o que estava ládentro, icou perturbada ao ver o sangue menstrual de outra mulher.Lidava permanentemente com sangue e já vira ummar dele debaixo docadáver de Camille. Mas icou muito mais abalada ao ver aquele pensohigiénico.Estavaensopado,pesado.Foiporistoquesaístedacama,pensouela. O líquido quente a escorrer pelas coxas e a humidade dos lençóis.Levantaste-te, vieste à casadebanhoparamudaropensoe atiraste esteparaocesto.

Edepois...Oquefizestedepois?SaiudacasadebanhoevoltouaoquartodeCamille.ADra. Isles já

tinha saído, e ela icou sozinha, franzindo o sobrolho ao ver os lençóismanchados de sangue, a única nota de cor naquele espaço sem vida.Aproximou-sedajanelaeolhouláparabaixo,paraopátio.

Havia agoramuitaspegadasnamisturadenevee gelo.Do ladodefora do portão, estacionara junto ao muro mais uma carrinha de umaestação de televisão e o pessoal aprontava o equipamento. A história dafreiraassassinadadirectamenteemvossascasas.Seriacomelaqueabririao noticiário das cinco, pensou; as freiras despertam curiosidade a todosnós. A recusa do sexo, o recolhimento, e toda a gente pensa no queesconderão debaixo do hábito. É a castidade que nos intriga; nãocompreendemos um ser humano que se priva domais rorte de todos osimpulsos,queviraascostasaoqueanaturezaqueriaque izéssemos.Éapurezadelasquenosfaztitilar.

Rizzoli desviou o olhar do pátio para a capela. Era lá que eu deviaestaragora,atremerdefriocomaequipadeperitagem,pensouela.Enão

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neste quarto a cheirar a lixívia. Mas só dali ela podia imaginar o queCamille vira ao regressar da sua ida nocturna à casa de banho numamanhãescuradeInverno.Deviatervistoluznacapela,atravésdasjanelasdevitral.

Umaluzquenãodevialáestar.Mauraaproximou-sedosdois serventesqueestenderamum lençol

lavadoetransferiramdevagarinhoocorpodairmãCamille. Jáviraoutrasequipas a remover cadáveres de outros sítios. Umas vezes executavamessa tarefa com uma e iciência sumária, outras com um desagradoevidente. Mas, de vez em quando, transportavam a vítima com umaternura especial. As crianças de tenra idade eram alvo desta atenção ascabecinhas eramaconchegadas comcuidadoeos corpinhos inertes eramacariciadosàmedidaqueiamentrandonosacodeplástico.AirmãCamillefoitratadacomamesmaternura,comamesmatristeza.

Maura abriu a porta da capela para eles passarem com a maca eacompanhou a marcha lenta até ao portão. Do outro lado do muro,apinhavam-se os repórteres com as câmaras prontas a captar a imagemclássica da tragédia: o corpo na maca e o invólucro de plástico queencerrava claramente uma forma humana. Embora o público não visse avítima,sabiaquesetratavadeumamulher joveme,aoolharparaosaco,dissecaria mentalmente o seu conteúdo. A sua imaginação implacávelviolaria a privacidadedeCamille comoobisturi deMauranuncapoderiafazer.

Quando a maca saiu do portão, os repórteres e os operadores decâmara avançaram em círculo, ignorando o agente que os mandavaafastar-se.

Por im, foiopadrequeconseguiumantê-losàdistância.Comasuaigura imponente vestida de negro, saiu do portão e avançou para amultidão,sobrepondoasuavozindignadaaoruídocaótico.

Esta pobre irmã não merece o vosso respeito? Porque não arespeitam?Deixem-napassar!

Àsvezes,atéosrepórterespodemtervergonhaealgunsrecuarampara deixar passar a equipa de transporte.Mas as câmaras de televisãocontinuaram a funcionar enquanto amaca entrava na viatura. Nenhumadestas câmaras famintas se virou para a vítima seguinte: Maura, queacabara de sair do portão e se dirigiu para o seu carro, aconchegando ocasacoaocorpocomoseeleaprotegessedanotoriedade.

DoutoraIsles,temalgumadeclaraçãoafazer?Qualfoiacausadamorte?

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...algumindíciodequetenhahavidoabusosexual?Assediada pelos repórteres,Maura procurou as chaves no interior

dacarteiraeaccionouocontroloremoto.Assimqueabriuaportadocarro,ouviualguémachamá-la.Mas,destavez,eraumgritodealarme.

Olhou para trás e viu um homem deitado no passeio e váriaspessoasdebruçadassobreele.

Temosumacidente comumoperadorde câmara! gritou alguém.Éprecisochamarumaambulância!

Maura fechou a porta do carro e correu para o homem caído nochão.

O que aconteceu? Escorregou? perguntou ela. Agachou-se junto dohomem.Jáotinhamviradodecostas,eMauraviuumindivíduoencorpado,decinquentae talanos, cujo rostoestavaaescurecer.Ao ladodele, caídananeve,estavaumacâmaradetelevisãoqueostentavaasiglaWVSU.

Ohomemnãorespirava.Maura inclinou-lhe a cabeça para trás, esticando-lhe o pescoço

carnudo para favorecer a passagem do ar e debruçou-se para iniciar areanimação.Ocheiroacaférequentadoeacigarrosnauseou-a.Pensounahepatite,nasidaeemtodososoutroshorroresmicroscópicosquepodiamtransmitir-se através dos luidos corporais e fez um esforço para colar asua boca à dele. Exalou uma lufada de ar e viu o peito dele a subir, ospulmões a encherem-sede ar.Repetiuduas vezes a operação epalpou acarótida.

Nada.Preparava-separa abrir o fechodoblusãodohomem,mas alguém

seadiantou.Levantoua cabeçaeviuopadreajoelhadoem frentedela, atentearopeitodohomemcomassuasmãosenormes,àprocuradepontosdereferência.Pousouaspalmasdasmãosnoesternoedepoisolhouparaela, para con irmar se podia iniciar as compressões.Maura deparou comunssurpreendentesolhosazuis.Eumaexpressãodeterminada.

Podecomeçar.Força!disseela.Opadreiniciouaoperação,contandoemvozaltaàmedidaquefazia

ascompressões,paraqueelapudessemediroritmorespiratório.Mil.Duasmil...Não havia pânico na sua voz, apenas a contagem irme de um

homem que sabia o que estava a fazer. Maura não precisou de lhe darinstruções; trabalharam em conjunto como se sempre tivessem formadoumaequipa,revezando-seduasvezesparasealiviarem.

Quando a ambulância chegou, Maura tinha a parte da frente das

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calças ensopada por se ter ajoelhado na neve e estava a suar, apesar dofrio. Levantou-se, hirta e exausta, e icou a observar a cena, enquanto osenfermeiros punham o homem a soro, inseriam o tubo endotraqueal etransportavamamacaparaaambulância.

Acâmaradetelevisãoqueohomemdeixaracairestavajánasmãosdeum funcionáriodaWVSU.Oespectáculo temde continuar,pensouela,vendo os repórteres a aglomerarem-se junto da ambulância, apesar de anotíciaseragoraodesfalecimentodoprópriocolega.

Maura virou-se para o padre que estava a seu lado, com as calçasensopadasnosítiodosjoelhos.

Obrigadapelaajudadisseela.Calculoquejátenhafeitoreanimação.Opadresorriueencolheuosombros.Só num boneco de plástico. Nunca julguei que viesse a aplicar os

meus conhecimentos. Sou Daniel Brophy. A senhora é a patologista?perguntouele,estendendo-lheamão.

Maura Isles.Estaéa suaparóquia,padreBrophy?Ele fezumsinalafirmativo.

Aminhaigrejaficaatrêsquarteirõesdaqui.Sim,euvi-a.Achaquesalvámosaquelehomem?Mauraabanouacabeça.Quando a reanimação se prolonga tanto, sem pulsação, não é um

bomsinal.Masháalgumahipótesedeelesobreviver?Nemporisso.Mesmo assim, creio que fomos úteis. O padre olhou para os

repórteres, que permaneciam concentrados na ambulância. Deixe-meacompanhá-laaocarro,paraqueconsigasairdaquisemserfilmada.;

A seguir, irão atrás de si. Espero que esteja pronto para osenfrentar.

Já prometi que faria uma declaração. Embora não saibaverdadeiramenteoqueelespretendemdemim.

Elessãocanibais,padreBrophy.Queremnadamaisnadamenosdoquemeioquilodasuacarne.Cincoquilos,seconseguirem.

Eleriu-se.Então,tenhodeavisá-losqueaminhacarneérija.Opadreacompanhou-aatéaocarro.Ascalçasmolhadascolavam-se

às pernas deMaura e o tecido começava já a icar teso como vento frio.Teriadevestirumabataassimquechegasseàmorgueedepôrascalçasasecar.

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Se vou fazer uma declaração, há alguma coisa que eu deva saber?Algumacoisaquemepossadizer?perguntouele.

TerádefalarcomadetectiveJaneRizzoli.Elaéqueéaresponsávelpelainvestigação.

Acha que este foi um ataque isolado? As outras paróquias terãomotivosparasepreocupar?

Eu só examino as vítimas, e não os agressores. Não lhe sei dizerquaissãoosseusmotivos.

Estasmulheressãovelhas.Nãopodemripostar.Eusei.Então, o que lhes dizemos? A todas as irmãs que vivem em

comunidades religiosas? Que não estão em segurançamesmo no interiordosconventos?

Nenhumdenósestátotalmenteseguro.Nãoéessaarespostaquelhesquerodar.Maséaúnicaqueelastêmdeouvir.Mauraabriuaportadocarro.

Eu recebi uma educação católica, padre. Julgava que as freiras eramintocáveis.Mas acabei de ver o que izeram à irmã Camille. Se isso podeacontecer a uma freira, então ninguém é intocável. Boa sorte com aimprensa.Temaminhasolidariedadedisse,entrandonocarro.

O padre fechou a porta e icou a olhar para ela através da janela.Apesardeterumrostoqueimpressionava,eraaquelecolarinhodepadrequemaisatraíaaatençãodeMaura.Eraumafaixabrancamuitoestreita,mas tinhaocondãodeodistinguirde todososoutroshomens.Tornava-oinatingível.

Ele acenou-lhe.Emseguida, olhouparao grupode repórteres, quecomeçavam a rodeá-lo. Maura viu-o endireitar-se, respirar fundo e ir aoencontrodeles.

"Àluzdosdadosanatómicosedoconhecidohistorialdehipertensãodoindivíduo,éminhaopiniãoqueestamortesedeveuacausasnaturais.Asequênciamaisprováveldos acontecimentos foi umenfartedomiocárdioagudo, que ocorreunas vinte e quatro horas anteriores àmorte, seguidopor uma arritmia ventricular, que foi o acontecimento terminal. Causapresumível da morte: arritmia fatal na sequência de um enfarte domiocárdio agudo. Ditado por Maura Isles, médica, Instituto de MedicinaLegal,ComunidadedoMassachusetts."

Maura desligou o ditafone e olhou para os diagramas já impressosem que registara os pontos de referência do corpo de Samuel Knight. Avelhacicatrizdaapendicectomia.Asmanchasde livideznasnádegasena

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partedebaixodascoxas,ondeosangueseconcentraraduranteashorasem que ele permanecera sentado na cama, já sem vida. Não haviatestemunhasdosúltimosmomentosdeMr.Knightnoseuquartodehotel,mas Maura conseguia imaginar o que lhe passara pela cabeça. Umapalpitação súbita no peito. Após alguns segundos de pânico, ele percebeque a palpitação vem do coração. E, em seguida, um desfalecimentogradual até à escuridão total. Foste um dos casos fáceis, pensou ela. Umditado rápido, e Mr. Samuel Knight podia ser posto de parte. Este breveencontroterminariacom,arubricadelanorelatóriodaautópsia.

Haviamaisrelatóriosnoseucesto,ummontededitadostranscritosqueprecisavamqueelaosrevisseeassinasse.Masaguardava-amaisumaconhecida, armazenada no frio: Camille Maginnes, cuja autópsia estavamarcadaparaasnovehorasdamanhãseguinte,paraqueRizzoli eFrostpudessem assistir. Maura folheava os relatórios, fazendo correcções nasmargens, mas continuava a pensar em Camille. O frio que sentira nacapela,nessamanhã,aindanãoaabandonarae,apesardeestarsentadaàsecretária, conservava a camisola para se proteger da recordação dessavisita.

Levantou-seda cadeiraparaver seas calçasde lãquedeixaraemcima do aquecedor já estavam secas. Mais oumenos, pensou. Desatou ocordãoàpressaedespiuabataqueusaradurantetodaatarde.

Recostou-sena cadeirae icouaolharparaumadasgravuras commotivos loraisqueestavapenduradanoseugabinete.Para compensarocarácter soturno da sua pro issão, decorara o gabinete com símbolos devida e não de morte. Ao canto, estava uma igueira envasada, a felizcontemplada com as discussões e a atenção permanente de Maura eLouise. Na parede, havia gravuras emolduradas de lores: um ramo depeóniasbrancase írisazuis.Outrocomuma jarrade rosas, tãocheiasdepétalas queos caules cediamaopeso.Quandoosdossiês se acumulavamem cima da secretária, quando a pressão damorte parecia insuportável,Mauraolhavaparaaquelasgravurasepensavanoseujardim,nocheiroaterraenoverdevivodavegetaçãoprimaveril.Pensavanaquiloquecresciaequenãoestavaamorrer.Afastavaaimagemdadecadência.

Mas nesse dia de Dezembro, nunca a Primavera lhe parecera tãodistante.Achuvageladabatianavidraça,eMaurareceavaaidaparacasa.Perguntoua siprópria se já teriamespalhado salpelas ruas, ou seaindahaveria uma camada de gelo que fazia patinar os carros como se estesfossemdiscosdehóquei.

DoutoraIsles?chamouLouisepelointercomunicador.

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Sim?EstáaotelefoneumtalDr.Banksparafalarconsigo.Nalinhaum.Mauracalou-se.É...OdoutorVictorBanks?perguntouelaemvozbaixa.É. Diz que pertence à organização de bene icência One Earth

International.Maura não disse nada, de olhar ixo no telefone e com as mãos

imóveis em cima da secretária. Mal ouvia a chuva a bater na janela;escutavaapenasobaterdoseuprópriocoração.

DoutoraIsles?Éumachamadainterurbana?Não.Elejátinhadeixadoumamensagem.EstánoHotelColonnade.Mauraengoliuemseco.Agoranãopossoatender.Éasegundavezqueeletelefona.Dizqueaconhece.Sim,claroque

conhece.Quandoéqueelefaloupelaprimeiravez?perguntouMaura.Estatarde,quandoasenhoraaindaestavanolocaldocrime.Deixei

amensagememcimadasuasecretária.Mauradescobriu trêsmensagens cor-de-rosaescondidasporbaixo

de um monte de dossiês. Lá estava ela. Dr. Victor Banks. Telefonou às12.45. Ficou a olhar para o nome, com um aperto no estômago. Porquêagora? perguntou a si própria. Depois de todos estes meses, porquemetelefonasassimderepente?Oquetelevaapensarquepodesregressaràminhavida?

Oquelhedigo?perguntouLouise.Maurarespiroufundo.Digaqueeulhetelefono.Quandoestiverpreparadaparaisso.Amachucou o papel e atirou-o para o cesto. Pouco depois, sem

conseguirconcentrar-se,levantou-seevestiuocasaco.Louise icou admirada ao vê-la sair do gabinete, já pronta para

enfrentar o frio. Em geral, Maura era a última a ir-se embora e quasenuncasaíaantesdascincoemeia.AindanãoeramcincohoraseLouisejáestavaadesligarocomputador.

VoudarumaajudaaotrânsitodisseMaura.Achoque jáémuito tardepara isso. Jáviuo tempo?Amaiorparte

dosescritóriosdacidadejáfecharamporhoje.Aquehoras?Àsquatro.

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Porqueéqueaindaestácá?Jádeviateridoparacasa.Omeumaridovembuscar-me.Omeucarroestánao icina,lembra-

se?Maura estremeceu. Sim, Louise falara-lhe no carro nesse dia de

manhã, mas ela esquecera-se, evidentemente. Como era habitual,concentrara-se tanto nos mortos que quase nem ouvira os vivos. ViuLouise a pôr um cachecol e a vestir o casaco e pensou: não tenho tempopara ouvir os outros. Não reservo tempo para me relacionar com aspessoas enquanto elas estão vivas. Embora já trabalhasse ali há um ano,poucosabiaacercadavidapessoaldasuasecretária.NuncaviraomaridodeLouisesabiaapenasquesechamavaVernon.Nãose lembravaondeéqueele trabalhavanemdoquevivia, emparteporqueLouise raramentefalavadesi.Aculpaseráminha? Interrogou-seMaura.Sentiráelaqueeunãoqueroouvi-la, queme sintomais à vontade comosmeusbisturis eoditafonedoquecomossentimentosdaspessoasquemerodeiam?

Desceramo corredor juntas emdirecçãoà saídaparaoparquedeestacionamento.Nadadeconversadecircunstância, apenasduaspessoasquesedirigiamparaomesmodestino.

O marido de Louise estava à espera no carro, cujos limpa-pára-brisas oscilavam furiosamente para proteger o vidro da geada. Mauraacenou a Louise assim que o carro arrancou e foi contemplada com umolhar surpreendido de Vernon, que decerto não sabia quem era aquelamulherqueacenavacomoseosconhecesse.

Comoseelaconhecesseverdadeiramentealguém...Atravessou o parque de estacionamento, escorregando no

pavimentoedecabeçabaixaparaseprotegerdatempestade.Aindatinhamaisumacoisaafazer.Maisumaobrigaçãoacumprirantesdeterminaroseudia.

Dirigiu-seaoHospitalSt.Francisparase inteirardoestadodairmãUrsula.

Emboranão trabalhassenumaenfermariahá alguns anos, desdeointernato, as recordações da sua passagem pela Unidade de CuidadosIntensivos mantinham-se desagradavelmente vivas. Recordou osmomentos de pânico, o esforço para vencer o entorpecimento provocadopela falta de sono e conseguir pensar. Lembrou-se de uma noite em quetinham morrido três doentes no seu turno e em que tudo correra mal.Agora, não conseguia entrar na UCI sem sentir o peso das antigasresponsabilidadesedoserrospassados.

A Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia de St. Francis

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dispunha de um pólo central de enfermeiras rodeado por dozecompartimentosdestinadosaosdoentes.Mauraparou juntodasecretáriadarecepcionistaparaseidentificar.

SouadoutoraIsles,doInstitutodeMedicinaLegal.Possoconsultarafichaclínicadavossadoente,airmãUrsulaRowland?

Arecepcionistaolhouparaelacomumaradmirado.Masadoenteaindanãofaleceu.AdetectiveRizzolipediu-mequemeinformassesobreoestadodela.Ah!Afichaestánaquelecompartimento.Éonúmerodez.Maura encaminhou-se para os cacifos e abriu a tampade alumínio

daquele em que se encontrava a icha clínica da cama n.° 10. Abriu-a eprocurou o relatório preliminar. Era um resumo manuscrito peloneurocirurgiãologoapósaoperação:

"Grandehematomasubduralidenti icadoedrenado.Parietaldireitoabertocomfracturacranianacominutivadesbridadaeelevada.Laceraçãoduraifechada.Relatóriocirúrgicocompletoditado.JamesYuen,médico."

Mauravirou-separaosapontamentosdasenfermeiraseanalisouaevolução da doente após a cirurgia. As pressões intracranianasmantinham-se irmes, com o auxílio do Manitol e do Lasix por viaintravenosaedahiperventilaçãoforçada.Aparentementeestavaaserfeitotudooqueerapossível;agora,restavaaguardarparaverquaisseriamasconsequênciasdaslesõesneurológicas.

Coma ichanamão,Mauradirigiu-separaocompartimenton°10.Opolíciaqueestavaàportareconheceu-a.

Olá,doutoraIsles.Comoestáadoente?perguntouela.Maisoumenosnamesma,creioeu.Parecequeaindanãoacordou.Mauraolhouparaascortinasfechadas.Quemestáládentroaopédela?Osmédicos.Maura bateu na estrutura e afastou a cortina. Junto da cama

estavam dois homens. Um era alto, com feições asiáticas, um olharpenetrante e uma cabeleira espessa e grisalha. Era o neurocirurgião,concluiu ela ao ler a placa que ele trazia ao peito: Dr. Yuen. O outro eramaisnovotinhatrintaetalanoseunsombrosrobustosquesedestacavamsobabatabranca.Usavaocabelolourocompridoeapa-nhadonumrabo-de-cavalo impecável.OFábiodamedicina,pensouMaura, olhandoparaorostobronzeadoeparaosolhoscinzentoseencovadosdomédico.

Desculpeminterromperdisseela.SouadoutoraIsles,doInstitutode

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MedicinaLegal.Do InstitutodeMedicinaLegal?perguntouoDr.Yuen, atónito.Esta

visitanãoéumpoucoprematura?A responsável pela investigação pediu-me que viesse ver a vossa

doente.Comosabem,háoutravítima.Sim,ouvimosdizer.Amanhã vou fazer a autópsia. Queria comparar o padrão de

ferimentosdestasduasvítimas.Nãocreioqueconsigavergrandecoisa.Pelomenosagora,depoisda

operação.FicarámaiselucidadaseconsultarasradiografiaseasTACsqueelafezquandodeuentradanohospital.Mauraolhouparaadoenteeconcordoucomele.AcabeçadeUrsula

estava coberta de ligaduras e os ferimentos já tinham sido alteradosdevidoàcirurgia.Emcomaprofundo,afreirarespiravacomaajudadeumventilador. Ao contrário da elegante Camille, Ursula era uma mulhergrande, de ossos largos e com o rosto redondo e simples de umacamponesa.Sobreosbraçoscarnudosvia-seumemaranhadodetubos.Nopulso esquerdo, tinha uma pulseira onde se lia "Alérgica à penicilina". Eumacicatriz feia,grossaeesbranquiçadanocotovelodireitoasequeladeumantigoferimento,malsuturado.Seriaumarecordaçãodoseutrabalhonoestrangeiro?interrogou-seMaura.

Fiz o que pude na sala de operações disse Yuen. Agora, tenhamosesperança que aqui o doutor SutclifFe consiga evitar as complicaçõesclínicas.

Mauraolhouparaomédicoderabo-de-cavalo,quebaixouacabeçaesorriu.

Chamo-me Matthew Sutcliffe e sou o internista dela disse ele. Háváriosmesesqueelanãomeconsultava.Sóhápoucoéquesoubequeelatinhadadoentradanohospital.

Tem o número do telefone do sobrinho dela? perguntou Yuen.Quando ele me telefonou, esqueci-me de lho pedir. Ele disse que falariaconsigo.

Eu tenho-o. Seria mais fácil se fosse eu o único a contactar com afamília.Euponho-osaocorrentedoestadodeladisseSutcliffe.

Qualéoestadodela?perguntouMaura.Eu diria que ela se encontra clinicamente estável respondeu

Sutcliffe.Eemtermosneurológicos?perguntouMauraolhandoparaYuen.Eleabanouacabeça.

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Édemasiadocedoparadizersejaoquefor.Ascoisascorrerambemnasaladeoperações,mas,comoeuestavaaquiadizeraodoutorSutcliffe,se ela recuperar a consciência e issopodenão acontecer, é provável quenão se lembre dos pormenores da agressão. A amnésia retrógrada évulgarnaslesõescerebrais.Omédicoolhouparaobíperquandoestedeusinal. Desculpe, mas tenho de atender esta chamada. O doutor Sutcliffepodepô-laaocorrentedohistorialclínicodela.

E, com duas passadas rápidas, o Dr. Yuen saiu do quarto. SutcliffeestendeuoestetoscópioaMaura.

Podeexaminá-la,sequiser.Ela pegou no aparelho e aproximou-se da cama. Por instantes,

limitou-seaveropeitodeUrsulaasubireadescer.Erararoexaminarosvivos; teve de fazer uma pausa para rememorar as suas competênciasclínicas,conscientedequeoDr.Sutcliffesaberiaavaliaratéquepontoelaestava desabituada de examinar um corpo cujo coração ainda batia.Trabalharacomosmortosdurante tanto tempoquese sentiadesajeitadanapresençadosvivos.Sutcliffeestavaàcabeceiradacama.Erauma iguraimponente,deombroslargoseolharpenetrante.Observou-aenquantoelaapontavaalâmpadadefendaaosolhosdadoente,lhepalpavaopescoçoelhe passava os dedos pela pele quente. Tão diferente do frio da carnerefrigerada!

Maurahesitou.Nãohápulsaçãonacarótidadoladodireito.Oquê?Háumapulsaçãofortenoladoesquerdo,masnãonodireito.Maurapegouna ichaclínicaeabriu-anosapontamentosdasalade

operações. Ah, o anestesista fala aqui nisso. "Nota-se ausência da artériacarótidadireita.Muitoprovavelmenteumavariaçãoanatómicanormal."

Omédicofranziuosobrolhoecorou.Tinha-meesquecidodisso.Entãojásabia?Quenãohaviapulsaçãodestelado?Écongénito.Maurapôsoestetoscópionosouvidoselevantouacamisadadoente,

expondo os seios volumosos de Ursula. A pele era ainda clara e jovem,apesar dos seus sessenta e oito anos. Ao longo de décadas, o hábitoprotegera-a do desgaste provocado pelos raios solares. Encostando odiafragma do aparelho ao peito de Ursula, Maura sentiu os batimentosirmesevigorososdocoração.Ocoraçãodeumasobrevivente,abombear,invencível.

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Umaenfermeiraenfiouacabeçanocompartimento.DoutorSutcliffe?TelefonaramdosraiosXaavisarquearadiogra ia

aotóraxestápronta,sequiserirvê-laláabaixo.Obrigado. O médico olhou para Maura. Também podemos ver as

radiografiasdocrânio,sequiser.Desceramnoelevadorcomseisjovensvestidasdecoresclaras,com

um aspecto fresco e de cabelos lustrosos, sempre a rir e a lançaremolharesdeadmiraçãoaoDr.Sutcliffe.Apesardeserumhomematraente,omédico parecia indiferente à atenção delas, concentrado, com um arsolene, nos números dos pisos. O encanto de uma bata branca, pensouMaura, lembrando-sedosseustemposdeadolescente,quandotrabalhavacomo voluntária no Hospital St. Luke em São Francisco. Os médicospareciam-lhe intocáveis. Inatingíveis. Agora que ela própria era médica,sabiamuitobemqueabatabrancanãoaimpediriadecometererros.Nãolhegarantiriaainfalibilidade.

Olhouparaasjovensepensouemsiprópriacomdezasseisanosnão risonha, comoestas raparigas,mas silenciosae grave. Jánesse

tempo tinha consciência do lado sombrio da vida e se sentiainstintivamenteatraídapormelodiastristes.

As portas do elevador abriram-se e as jovens saíram, um grupoalegredecor-de-rosaebranco,deixandoMauraeSutcliffesozinhos.

Elas cansam-me disse ele. Aquela energia toda. Quemme dera teruma décima parte dela, sobretudo depois de uma noite de serviço. Temmuitas?

Noitesdeserviço?Funcionamosemsistemaderotatividade.Apostoqueosseusdoentesnãoesperamquevocêandeacorrer.Nãoécomoasuavidaaquinastrincheiras.Ele riu-se e, de repente, transformou-se num sur ista louro e

sorridente.Vidanas trincheiras...Àsvezeséassimquemesinto.Na linhadafrente.

As radiogra ias já estavam à espera deles em cima do balcão.Sutcliffe levou o envelope grande para a sala de visualização. Colocouváriaschapasnovisoreligouointerruptor.

A luz mostrou as imagens de um crânio. As linhas de fracturaentrecruzavam-se no osso como raios durante uma trovoada. Mauradetectoudoispontosdistintosdeimpacto.Oprimeirogolpeatingiraoossotemporaldireitoeprovocaraumapequena issuranadirecçãodoouvido.O segundo, mais forte, atingira a zona posterior e comprimira a zonaachatadadocrânio,empurrando-aparadentro.

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Elebateu-lheprimeironapartelateraldacabeçadisseela.Comosabequeessafoiaprimeiraagressão?Porque a primeira linha de fractura impede a propagação da

fractura resultante de uma segunda agressão. Maura apontou para aslinhas de fractura. Está a ver como esta linha acaba precisamente aqui,ondeatinjeaprimeiralinhadefractura?Aforçadoimpactonãoconseguequeelapasseparaooutrolado.Issoindica-mequeestegolpenatêmporadireita foi o primeiro. Talvez ela estivesse a virar-se. Ou então não o viu,porqueeleapareceudelado.

Eleapanhou-adesurpresadisseSutcliffe.Eissoteriasidosu icienteparaadeixarvacilante.Depois,desferiuo

segundo golpe, mais atrás, aqui continuou Maura, apontando para asegundalinhadefractura.

Foiumgolpemaisforteconcluiuele.Comprimiuazonaachatadadocrânio.

Sutclifferetirouasradiogra iasdovisoreconcentrou-senasTACs.Atomogra ía axial computorizada permitia visualizar o interior do crâniohumano, revelando o cérebro fatia por fatia. Maura viu uma bolsa desangue que escorrera de vasos dilacerados. O aumento da pressãosanguíneadeviaterapertadoocérebro.EraumalesãopotencialmentetãodevastadoracomoadeCamille.

Mas a anatomia e a resistência humana são variáveis. Enquanto afreira muito mais nova sucumbira aos ferimentos, o coração de Ursulacontinuava a bater e o corponãoqueria libertar-seda alma.Não eraummilagre, apenas uma daquelas singularidades do destino, como a criançaque sobrevive a umaqueda da janela de um sexto andar e sofre apenasunsarranhões.

Espanta-mequeelatenhasobrevividocomentouemvozbaixa.Tambémamim.MauraolhouparaSutcliffe.A luzdovisor iluminou

metade da cara do médico, revelando-lhe a face angulosa. Estes golpesdestinavam-seamatar.

Quatro

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CamilleMaginnes tinhaossosde jovem,pensouMaura,observandoas radiogra iasnovisordamorgue.Osanosaindanãohaviamcarcomidoasarticulações,nem feitodescair as vértebrasou calci icadoa cartilagemcostaldascostelasdanoviça.Enuncaofariam.Camilleseriadepositadanaterra,eosseusossosconservariamparasempreajuventude.

Yoshima tinha radiografado o corpo enquanto estava vestido, umamedida de precaução habitual para localizar balas soltas ou outrosfragmentos metálicos que pudessem estar alojados na roupa. Comexcepçãodocruci ixoedaquiloqueeraclaramenteal inetes-de-amasobreopeito,nãoseviamoutrosobjectosmetálicosnaradiografia.

Maura retirou as radiogra ias ao tórax, e as películas emitiramumsom musical ao dobrarem-se nas suas mãos. Pegou nas do crânio ecolocou-asnovisor.

Meu Deus! exclamou o detective Frost em voz baixa. As lesões nacaixa craniana eram terríveis. Um dos golpes fora tão forte que se viamfragmentosdeossonumnívelmuito inferioraodocrânio.EmboraMauraainda não tivesse feito nenhuma incisão, conseguia imaginar a gravidadeda lesão.A ruptura dos vasos sanguíneos e as bolsas de hemorragia. E océrebro,aformarumahérniadevidoàpressãocrescentedosangue.

Fale connosco, doutora disse Jane, ríspida e frontal. Tinha umaspectomaissaudávelnessamanhãeentraranamorguecomoseupassobruscohabitual.Aguerreiraestavadenovoemacção.Oqueestáaver?

Três agressões distintas. A primeira atingiu-a aqui, no cimo dacabeça.Mauraapontouparaumalinhadefracturaemdiagonal.Seguiram-semais duas, nanuca. Calculo que, nessa altura, ela estivesse de barrigaparabaixo.Estendidanochão,indefesaedebruços.Foientãoqueoúltimogolpe lhe esmagou o crânio. Era um desfecho tão brutal queMaura e osdoisdetectivescalaram-seporinstantes,imaginandoamulhercaída,comafaceencostadaaochãodepedra.Oagressordebraçonoar,empunhandoaarmamortal.Osomdosossosesmagadosaquebrarosilênciodacapela.

Como uma foca bebé morta à paulada. Ela não teve hipóteserematouJane.

Maura virou-se para a mesa de autópsias onde jazia CamilleMaginnes,queenvergavaaindaoseuhábitoensopadoemsangue.

Vamosdespi-la.Yoshimaaguardava, jádebatae luvas,comose fosseumfantasma.

Comumae iciência silenciosa, aprontarao tabuleirodos instrumentos, asluzes e os recipientes especiais. Maura quase nem precisava de falar;bastavaumolhareeleliaasuamente.

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Primeiro, descalçaram-lhe os sapatos de cabedal preto, feios epráticos. Depois hesitaram, observando as várias camadas de roupa davítima e preparando-se para uma tarefa que nunca tinham executado:despirumafreira.

OcabeçãotemdeseroprimeiroasairdisseMaura.Oqueéisso?perguntouFrost.Uma espécie de capa sobre os ombros. Mas não vejo colchetes à

frente. E não vi fechos na radiogra ia. Vamos virá-la de lado, para euverificarascostas.

O corpo, já rígido, era leve como o de uma criança. Viraram-na deladoeMauraabriuocabeção.

FitaVelcrodisseela.Frostsoltouumagargalhadadeespanto.Nãomediga!Omedievalcruza-secomomoderno.Maura retirou o cabeção, dobrou-o e guardou-o num saco de

plástico.Istoéumpoucodecepcionante.AsfreirasausaremfitaVelcro.QueriasqueelasficassemnaIdadeMédia?perguntouRizzoli.Julgavaqueerammaistradicionalistas.Detestodesiludi-lo,detectiveFrostdisseMaura,retirandoacorrente

eocruci ixo.MashojeemdiaháconventosquetêmosseusprópriossitesnaWeb.

Nãomediga!FreirasnaInternet...Issodá-mevoltaàcabeça.A seguir vem o escapulário disse Maura, apontando para a túnica

semmangasquechegavaatéàbainha.Retirou-acomtodoocuidadopelacabeçadavítima.Otecidoestavaensopadoemsangueeteso.Depositou-onoutrosacodeplásticoejuntou-lheocintodecouro.

Chegou a vez da última camada de lã, uma túnica preta que caía,solta,sobreocorpoesguiodeCamille.Aúltimabarreiradoseupudor.

Apesar de despir cadáveres há muitos anos, Maura nunca sentiraumarelutância tãograndeaodesnudarumavítima.Estaeraumamulherque optara por viver escondida dos olhares masculinos; agora seriacruelmente exposta, o seu corpo devassado e os seus ori íciosesquadrinhados. Ante a perspectiva de tal invasão, Maura sentiu a bocaamarga e fez uma pausa para retomar a compostura. Reparou no olharinterrogadordeYoshima.Seestavaperturbado,nãoodemonstrava.Oseurosto impassível tinha um efeito calmante naquela sala, onde a própriaatmosferapareciasaturadadeemoção.

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Maura concentrou-se no que tinha a fazer. Juntos, ela e Yoshimalevantaram a túnica, fazendo-a deslizar pelas coxas e ancas. Como eralarga, conseguiram retirá-la sem quebrar o rigor mortis dos braços. Porbaixo, havia ainda mais roupa uma touca de algodão branco queescorregara para o pescoço e cujas abas frontais estavam pregadas comal inetes-de-amaaumaT-shirtensanguentada.Osmesmosal inetesqueseviamna radiogra ia. A vítimausava uns colãs pretos fortes. Retiraramoscolãs e viram umas cuecas de algodão branco. Eram de uma modéstiaabsurda, destinadas a cobrir aomáximo a pele, a roupa interior de umavelha e não de uma jovem núbil. Por baixo do algodão, distinguia-se ovolume de um penso higiénico. Tal comoMaura já descon iava ao ver oslençóismanchadosdesangue,avítimaestavamenstruada.

Emseguida,Mauraocupou-sedaT-shirt.Abriuumal inete-de-ama,separoumaisabasde itaVelcroeretirouocapuz.Noentanto,nãofoitãofácil tirar a T-shirt devido ao rigormortis.Maura pegou numa tesoura ecortou-aaomeio.Otecidoabriu-se,revelandomaisumacamadaderoupa.

Esta deixou-a estarrecida. Maura olhou para a tira de pano bemapertadaàvoltadopeitoepregadaàfrentecomdoisalfinetes-de-ama.

Paraqueéisso?perguntouFrost.ParecequeelaenfaixouosseiosrespondeuMaura.Porquê?Nãofaçoideia.Parasubstituirumsutiã?alvitrouRizzoli.Não consigo perceber porque é que ela usava isto em vez de um

sutiã.Reparemcomoestátãoapertada.Deviasermuitodesconfortável.Comoseumsutiãfosseconfortável,hem?rosnouRizzoli.Não será mais uma peça de vestuário religioso? Uma parte do

hábito?perguntouFrost.Não,éuma ligaduraelásticavulgar.Amesmaquesecompranuma

farmáciaparaligarumtornozelodeslocado.Mas, como havemos de saber o que costumam usar as freiras?

Afinal,elaspodiamusarrendapretaetuleporbaixodessaroupatoda.Ninguémseriu.Maura olhou para Camille e, de repente, icou abalada com o

simbolismodosseios ligados.Ostraços femininosdisfarçados,suprimidos.Apertados até à submissão. O que passara pela cabeça de Camille paraligaropeito,paraencostarotecidoelásticoàpele?Sentir-se-iamaislimpa,mais pura, com os seios disfarçados pela ligadura, com as curvaseliminadas,comasexualidadenegada?

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Maura abriu os dois al inetes-de-ama e depositou-os no tabuleiro.Em seguida, com a ajuda de Yoshima, começou a desenrolar a ligadura,desnudando sucessivas zorjas de pele. Mas nem o elástico conseguiupoupar a carne saudável. Quando a última faixa se soltou, revelando unsseios jovens e maduros, a pele ostentava as marcas do tecido. Outrasmulheres ter-se-iam orgulhado de uns seios como aqueles; CamilleMaginnesescondera-os,comoseseenvergonhassedeles.

Faltavaretirarumaúnicapeçaderoupa.Ascuecasdealgodão.Maura fez escorregaro elásticopelas ancas epelas coxas.Openso

higiénico,coladoàroupainterior,tinhaumapequenamanchadesangue.É recente observou Rizzoli. Parece que ela tinha acabado de o

mudar.Mas Maura não estava a olhar para o penso higiénico; estava

concentradanoabdómensemcor, lácidoesoltoentreosossosdasancas.Estrias acinzentadas atravessavam a pele descorada. Por instantes, nãodissenada,tentandointerpretaremsilêncioosigni icadodaquelasestrias.Epensou,também,nosseiosligados.

Virou-se para o tabuleiro em que depositara a ligadura elástica edesenrolou-adevagar,inspeccionandootecido.

Oqueprocura?perguntouRizzoli.ManchasrespondeuMaura.Jáviuosangue.Nãosãomanchasdesangue...Mauracalou-se.Naligaduraabertaviam-secírculosescurosemque

o líquido secara. Meu Deus, pensou ela. Como é possível? Olhou paraYoshima.

Vamosprepará-laparaumexameginecológico.Oassistentefranziuosobrolho.

VamosquebrarorigormortisEla não temmuitamassamuscular. Camille eramagra, o que lhes

facilitariaatarefa.Yoshima mudou-se para a outra extremidade da mesa. Enquanto

Mauraseguravaapélvis,eleen iouasmãosporbaixodacoxaesquerdaetentou lectir a anca. Quebrar o rigormortis era tão brutal como soava aruptura forçada das ibras musculares rígidas. Não era um processoagradável edeixouFrost visivelmentehorrorizado.Odetective afastou-seda mesa e icou lívido. Yoshima empurrou com força e Maura sentiu oestalodomúsculoarasgar-se,transmitidoatravésdapélvis.

Quehorror! exclamouFrost, virando-separao lado.Mas foiRizzoli

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quesedirigiuacambalearparaacadeiraqueestava juntodo lavatórioepôs a cabeça entre asmãos. Rizzoli, a estóica, que nunca se queixava doqueviaoucheiravanasaladeautópsias,pareciaagoraincapazdedigeriraquelespreliminares.

Maura passou para o outro lado damesa e continuou a segurar apélvis, enquanto Yoshima manipulava a coxa direita. Até ela se sentiunauseadaquandotentavamquebrararigidez.Detodasasprovaçõesquesofreraduranteoestágio,ocontactocomacirurgiaortopédica foraoquemais a consternara. Perfurar e serrar os ossos, a força bruta que eranecessáriaparadesarticularasancas.Eagorasentiaamesmarepulsaaoouvir o músculo a estalar. De repente, a anca direita lectiu-se e até aexpressão habitualmente impassível de Yoshima denunciou um certodesagrado.Masnãohaviaoutramaneiradevisualizarosórgãosgenitais,eMauraqueriaconfirmarasuasuspeitaomaisdepressapossível.

Viraram as duas coxas para fora e Yoshima apontou uma luzdirectamente para o períneo. O sangue tinha coagulado no canal vaginalsanguemenstrualnormal, comoMaura teria inferidoantes.Agora, estavapetri icadacomoquevia.Comumpedaçodegaze, limpouosangueparainspeccionaramucosaqueestavaporbaixo.

Háumrasgãovaginaldosegundograuàsseishorasdisseela.Quermechas?Quero.Eteremosdefazerumaremoçãoembloco.Oquesepassa?perguntouFrost.Mauraolhouparaele.Não faço isto muitas vezes, mas vou retirar os órgãos pélvicos de

umasóvez.Cortaroossopúbicoetirartudo.Achaqueelafoiabusadasexualmente?Maura não respondeu. Contornou a mesa e tirou um bisturi do

tabuleiro.Aproximou-sedotroncoecomeçouafazerumaincisãoemY.DoutoraIsles?chamouLouisepelointercomunicador.Sim?Temumachamadana linhaum.ÉoutravezodoutorVictorBanks,

daquelaorganização,aOneEarth.Mauraficouimóvel,comobisturinamão.Apontaaaflorarapele.DoutoraIsles?insistiuLouise.Nãoestoudisponível.Digo-lhequelhetelefonamaistarde?Não.É a terceira vez que ele liga hoje. Perguntou sepodia telefonar-lhe

paracasa.

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Nãolhedêonúmerodotelefonedaminhacasa.Arespostasooumaisríspidadoqueeladesejava,eYoshimavirou-

se para olhar para ela. Maura sentiu que Frost e Rizzoli também aobservavam.Ganhoufôlegoeacrescentou,maiscalma:

DigaaodoutorBanksquenãoestoudisponívelecontinueadizeromesmoatéeleparardetelefonar.

Fez-seumapausa.Está bem, doutora Isles respondeu por im Louise, um pouco

agastadacomatrocadepalavras.EraaprimeiravezqueMauralhefalavanumtomtãoríspido,eteria

de ser ela a arranjar maneira de limar a aresta e reparar os danos. Aconversa deixara-a agitada. Olhou para o tronco de Camille Maginnes,tentandoconcentrar-sedenovonatarefaquetinhaemmãos, mas os seus pensamentos estavam dispersos e faltava-lhe irmezanamão.

Osoutrosderamporisso.Porque é que aOne Earth anda a telefonar-lhe? perguntouRizzoli.

Querangariardonativos?IstonãotemnadaavercomaOneEarth.Entãooqueé?insistiuRizzoli.Essetipoandaatrásdesi?Éapenasumapessoaquetentoevitar.Parecequeeleémuitopersistente.Nemimagina.Querqueeuoafaste?Queomandeàquelaparte?Nãoerasóadetectivequefalavaassim;eratambémamulher,que

nãotinhapaciênciaparaaturarhomensdominadores.ÉumassuntopessoalesclareceuMaura.Seprecisardeajuda,bastapedir.Obrigada,maseutratodele.Maura encostou o bisturi à pele do cadáver, ansiosa por não falar

maisemVictorBanks.Respiroufundoepensouqueeraumaironiaqueocheiro da carne morta a perturbasse menos do que o simples facto depronunciaronomedele,queosvivosaatormentassemmuitomaisdoqueosmortos. Namorgue, ninguém amagoava ou traía. Namorgue, era elaquecontrolavatudo.

Entãoqueméessetipo?perguntouRizzoli.A pergunta continuava namente de todos eles. A pergunta à qual

Maurateriaderesponder,maiscedooumaistarde.Enterroualâminanacarneeviuapeleaabrir-secomoumacortina

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branca.Éomeuex-maridorespondeuela.Feza incisãoemYeemseguidaafastouapeledescorada.Yoshima

serviu-sedeuma serra vulgarpara cortar as costelas.Depois, levantouotriângulo das costelas e o esterno e deixou à mostra um coração e unspulmõesnormais,um ígado,umbaçoeumpâncreassaudáveis.Osórgãoslimposesãosdeumajovemquenãotinhaabusadonemdoálcoolnemdotabacoequenãoviveraosu icienteparaqueassuasartériasestreitasseme bloqueassem. Maura reduziu ao mínimo os comentários enquantoretirava os órgãos e os colocava numa bacia metálica, com pressa deatingiroobjectivoseguinte:examinarosórgãospélvicos.

A excisão em bloco da pélvis era um processo que ela reservavahabitualmenteparaoscasosfataisdeviolação,namedidaemquepermitiauma dissecçãomais detalhada dos órgãos do que a autópsia vulgar. Nãoera agradável, este esvaziamento do conteúdo da bacia. QuandoMaura eYoshimacomeçaramaserrarasrami icaçõesdoossopúbico,elanão icouadmirada ao ver que Frost se virava para o lado. Também Rizzoli seafastoudamesa.Agora,ninguémfalavados telefonemasdoex-maridodeMaura;ninguémaobrigavaarevelarpormenorespessoais.Derepente,aautópsiatornara-sedemasiadoassustadoraparaadmitirconversas,oquemuitoaliviouMaura.

Retirou todo o bloco formado pelos órgãos pélvicos, pelos órgãosgenitaisexterioresepeloossopúbicoetransferiu-oparaumapranchadecorte.Aindaantesdeabriroútero,percebeupeloaspectodoórgãoqueosseusreceiossecon irmavam.Oúteroestavamaiordoquedeviaestar,como fundo muito acima do nível do osso púbico, e as paredes tinham umaspecto esponjoso. Maura abriu-o e viu o endométrio ainda espesso eensanguentado.

OlhouparaRizzolieperguntou,abruptamente:Estamulhersaiudaabadianasemanapassada?AúltimavezqueCamillesaiudaabadiafoiemMarço,parairvisitar

afamíliaemCapeCod.FoioqueMaryClementmedisse.Então,temdefazerumabuscaaocomplexo.Imediatamente.Porquê?Oqueprocuramos?Umrecém-nascido.Esta resposta deixou Jane profundamente abalada. Lívida, olhou

paraMauraedepoisparaocorpodeCamilleMaginnes,estendidonamesadeautópsias.

Mas...Elaerafreira.

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Pois.EdeuàluzhápoucotempoafirmouMaura.

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CincoNessa tarde, quando Maura saiu do edi ício, estava a nevar outra

vez, locossuaveserendilhadosqueborboleteavamcomotraçasbrancaseiam pousar nos automóveis estacionados. Nesse dia, encontrava-sepreparada para o mau tempo e calçara umas botas curtas com solas deborracha. Mesmo assim, foi cautelosa ao atravessar o parque deestacionamento; as botas escorregavam no gelo coberto de neve e elaprotegeuocorpocomosbraços,paranãocair.Quandopor imchegouaocarro, suspirou de alívio e procurou as chaves dentro da carteira.Distraída, mal ouviu o barulho da porta de outro carro a fechar-se. Sóquandosentiuospassoséquesevoltouparaohomemqueseaproximava.Eleparouameiadúziadepassosdela,semdizernada.Ficouaobservá-la,com as mãos en iadas nos bolsos do blusão de couro. Os locos de nevepousavam no seu cabelo louro e agarravam-se à barba impecavelmenteaparada.

OhomemolhouparaoLexusdelaedisse:Vilogoqueopretoerateu.Escolhessempreopreto.Andassempre

doladodasombra.Equemmaistemumcarrotãolimpo?Por im, Maura conseguiu falar. A voz saiu roufenha, como se não

fosseadela.Oqueestásaquiafazer,Victor?Aparentemente,éaúnicamaneiradetever.Armas-meumaemboscadanoparquedeestacionamento?Éissoqueparece?Tens estado aí sentado à minha espera. Chamo a isso uma

emboscada.Não me deste alternativa. Não respondeste a nenhum dos meus

telefonemas.Nãopude.Nuncamedesteoteunovonúmerodetelefone.Nuncamopediste.Eleolhouparaaneve,quecaíacomoconfetes,e

suspirou.

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Bem,écomonosvelhostempos,nãoé?Exactamente.Mauravirou-separaoseucarroeaccionouocontrolo

remoto.Afechadurareagiu.Nãoqueressaberporqueestouaqui?Tenhodeirandando.ApanheiumaviãoparaBostonetunemsequerperguntasporquê.Estábem.Porquê?perguntouela,encarando-o.Trêsanos,Maura.Ele aproximou-se mais e ela sentiu-lhe o cheiro. A cabedal e

sabonete.Aneveaderreter-senapelequente.Trêsanos,pensouela,eelepouco mudara. A mesma inclinação acriançada da cabeça, as mesmasrugasdeexpressãoàvoltadosolhos.E,atéemDezembro,ocabelopareciadescolorado pelo sol; não eram tons arti iciais, mas madeixas lourasnaturaisdehoraspassadasaoarlivre.VictorBankspareciairradiarasuaprópria força gravitacional, e Maura era tão susceptível a ela comoqualqueroutrapessoa.Sentiuovelhoimpulsoqueaatraíaparaele.

Não perguntaste a ti própria, aomenos uma vez, se teria sido umerro?

Odivórcio?Ouocasamento?Não é óbvio de qual estou a falar? Se estou aqui a conversar

contigo...Levastemuitotempo.Mauravirou-lheascostasepreparou-separaentrarnocarro.Nãovoltasteacasar.Elaparou.Olhouparaele.Etu?Não.Então,presumoqueambossomospessoascomquemédifícilviver.Nãotivestetempoparachegaraessaconclusão.Elariu-se.Haviaumsomamargoedesagradávelnestesilêncio.Tuéqueandavas semprea caminhodoaeroporto. Semprea rugir

parasalvaromundo.Nãofuieuquefugidocasamento.Nãofuieuquetiveocaso.Mauradeumeiavoltaeabriuaportadocarro.Raios,nãopodesesperar?Escuta-me.Ele agarrou-lhe no braço e ela icou admirada com a raiva que

aquelamão transmitia. Fitou-o comumar frio, dando-lhe a entenderqueforalongedemais.

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Elelargou-a.Desculpa. Céus, não era assim que eu queria que as coisas

corressem.Oqueesperavas?Queaindahouvessealgumacoisaentrenós.Ehavia,pensouela.Haviademasiadascoisas,eeraporissoqueela

não podia prolongar aquela conversa. Receava ser apanhada mais umavez.Aliás,sentiaqueissojáestavaaacontecer.

Ouvedisseele.Ficounsdiasnacidade.AmanhãtenhoumareuniãonaHarvardSchoolofPublicHealth,masdepoisnãotenhoplanos.ONatalestáàporta,Maura.Lembrei-mequepodíamospassarestesdiasjuntos.Seestivereslivre.

Edepoisvais-teemboraoutravez.Pelomenos,podíamosesclarecerváriascoisas.Nãopodes tiraruns

diasdelicença?Eu tenho um emprego, Victor. Não posso deixá-lo assim semmais

nemmenos.Eleolhouparaoedifícioesoltouumagargalhadaincrédula.Nãoseiporquehaviasdequererumempregodestes.Oladodasombra,lembras-te?Eusouassim.Eleolhouparaelaedisse,comumavozmaisterna:Nãomudaste.Nada.Nem tu, e esse é o problema. Maura entrou no carro e fechou a

porta.Elebateunovidro.Elaolhouparaele, queaobservava, com locos

deneveabrilharnaspestanas,esólherestouabrirajanelaecontinuaraconversa.

Quandopodemosvoltarafalar?perguntouele.Agoratenhodeir.Maistarde,então.Estanoite.Nãoseiaquehorasvouchegaracasa.Ora,Maura.Eleinclinou-semaiseacrescentouemvozbaixa:Arrisca.EstouhospedadonoColonnade.Telefona-me.Elasuspirou.Voupensarnisso.Eleestendeuamãoeapertou-lheobraço.Maisumavez,operfume

dele despertou recordações fortes, de noites passadas entre lençóisamarrotados,comaspernasentrelaçadas.Debeijosprolongadoselentose

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do sabor a limão fresco e a vodka. Dois anos de casamento deixamrecordaçõesinapagáveis,tantoboascomomás,enaquelemomento,comamãodelenoseubraço,eramasboasrecordaçõesqueprevaleciam.

Fico à espera do teu telefonema disse ele, já a partir do princípioquevencera.

Ele julga que é assim tão fácil? interrogou-se ela, quando saiu doparquedeestacionamentoesedirigiuparaJamaicaPlain.Umsorriso,umacarícia,eestátudoesquecido?

De repente, os pneus começaram a patinar na estrada coberta degeloeelaagarrou-seaovolante,concentrando-sedenovoerecuperandoocontrolodocarro.Estavatãoagitadaquenemseaperceberadavelocidadeaqueseguia.OLexusguinoueospneusprocuraramoseupontodeapoio.Só quando ela recomeçou a seguir em linha recta é que se permitiurespiraroutravez.Irritar-seoutravez.

Primeiro,deixaste-medestroçada.Agora,ias-mematando.Um pensamento irracional,mas era assimmesmo. Victor inspirava

pensamentosirracionais.QuandoparouemfrentedaAbadiadeGraystones,dooutroladoda

rua, sentiu-se esgotada. Deixou-se icar sentada no carro durante algunsinstantes, tentando controlar as emoções. "Controlo" era a palavra quenorteava a sua vida. Assim que saísse do carro, era uma personalidadepúblicaaosolhosdasautoridadeseda imprensa.Elesesperavamqueelasemostrasse calma e lógica, e ela assim faria. Uma grande parte do seutrabalhoconsistiaapenasemrepresentar.

Saiuedessavezatravessouaruacomcon iança;assolasdasbotasnãoescorregaramnopavimento.Oscarrosdapolíciaformavamuma ila.eduas equipas de estações de televisão aguardavam no interior dascarrinhasquesurgissemnovosdados.OdiadeInvernocomeçavajáadarlugarànoite.

Mauratocouasinetaenomeiodassombrasapareceuumafreiradehábito preto. A freira reconheceu-a e deixou-a entrar sem trocar umapalavracomela.

No tapetedenevequecobriaopátio,viam-sedezenasdepegadas.NãopareciaomesmosítiodaquelamanhãemqueMaura láentrarapelaprimeira vez. Hoje, toda a aparência de tranquilidade era afectada pelabusca que estava em curso. Via-se a luz acesa em todas as janelas eouviam-se vozes masculinas nas arcadas. No átrio, cheirava a molho detomate e a queijo, odores desagradáveis que recordaram a Maura alasanhadesenxabidaeencortiçadaqueserviammuitasvezesnorefeitório

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dohospitalemqueestagiara.Olhouparaasaladejantareviuasfreirassentadasàmesa,nasua

refeição da noite, em silêncio. Viu mãos trémulas a levar garfadasvacilantes a bocas desdentadas e viu leite a escorrer por queixosengelhados. Aquelas mulheres tinham vivido quase sempre fechadas eenvelhecidoemreclusão.Ter-se-iamalgumasarrependidodoquehaviamperdido,davidaquepodiam tervivido, se tivessempurae simplesmentesaídopeloportãoenuncamaisvoltassem?

Continuando a descer o corredor, Maura ouviu vozes masculinas,estranhas e surpreendentes numa casa de mulheres. Dois agentesreconheceram-naecumprimentaram-na.

Olá,doutora.Descobriramalgumacoisa?perguntouela.Aindanão.Estamosquaseaacabar,porhoje.OndeestáRizzoli?Láemcima.Nodormitório.Na escada,Maura cruzou-se commaisdoismembrosda equipade

investigação que vinham a descer cadetes da polícia, tão novos quepareciamacabadosdesairdoliceu.Umjovem,aindacommarcasdeacnena face, e umamulher, com aquelamáscara distante quemuitas agentespareciamadoptarpara se autopreservarem.Ambosbaixaramoolhar emsinalderespeitoquandoreconheceramMaura.Estareacçãofê-lasentir-sevelha,aoveraqueles jovensaafastarem-se,pordeferência,paradeixá-lapassar. Intimidá-los-ia ela tanto que eles não vissem amulher que havianela,comasuacolecçãodeinseguranças?Mauraaperfeiçoaraoseuardeinvencibilidade, que agora era chamada a ostentar. Baixou a cabeça numgesto de saudação e deitou-lhes uma olhadela rápida, sabendo que elesficariamaobservá-laenquantosubiaaescada.

FoiencontrarRizzolinoquartoda irmãCamille, sentadanacamaecomosombroscaídos,decansaço.

-ParecequetodosvãoparacasaexceptovocêdisseMaura.Rizzolivirou-separaela.Tinhaosolhosbaçoseolheirasfundas,eno

seurostohaviarugasdefadigaqueMauranuncavira.Não encontrámos absolutamente nada. Temos andado à procura

desde o meio-dia. Mas isto leva tempo, passar a pente ino todos osarmários,todasasgavetas.Eaindaháocampoeosjardinsnastraseiras...Quemsabeoqueestaráporbaixodaneve?Elapode tê-lo embrulhadoeatiradoparao lixoháunsdias. Pode tê-lo entregado a alguémaoportão.Podemospassardiasàprocuradeumacoisaquepodeounãoestaraqui..

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Oquedizamadre?Aindanãolhedisseoqueprocuramos.Porquê?Nãoqueroqueelasaiba.Talvezelapudessedarumaajuda.Ou tomar medidas para garantir que não encontrássemos nada.

Achaqueestaarquidioceseprecisademaisescândalos?Achaqueelaquerquesesaibaqueummembrodasuaordemmatouoprópriofilho?

Não sabemos se a criança está morta. Sabemos apenas quedesapareceu.

Etemcertezasabsolutasquantoàsconclusõesdaautópsia?Tenho. Camille encontrava-se num estado avançado de gravidez.

Não, não acredito na imaculada concepção.Maura sentou-se na cama, aoladode Jane.Opaipode ser fundamentalparaadescobertadoagressor.Temosdeidentificá-lo.

Pois,euestavaprecisamenteapensarnessapalavra.Pai.Oupadre.OpadreBrophy?Éumhomembem-parecido.Jáoviu?Maura lembrou-sedosolhosazuisbrilhantesquea itavamquando

ooperadorde câmara estava estendidono chão, domodo comoele saíradoportãodaabadia,comosefosseumguerreirovestidodenegro,prontoadesafiaraquelaalcateiaderepórteres.

Ele vinha cámuitas vezes disse Rizzoli. Rezavamissa. Ouvia-as emcon issão. Há alguma coisa mais íntima do que partilharmos os nossossegredosnumconfessionário?

Vocêestáapartirdoprincípioqueosexofoiconsensual.Estouapenasadizerqueeleéumtipobem-parecido.Não sabemos se o bebé foi concebido nesta abadia. Camille não foi

visitarafamíliaemMarço?Foi.Quandoaavómorreu.Precisamente.SeelaconcebeuemMarço,estariaagoranononomês

degravidez.Tudopodeteracontecidoduranteessaidaacasa.E pode ter acontecido aqui. Dentro destas paredes. Para cumprir

essetalvotodecastidadeconcluiuRizzolicomumrisocínico.Calaram-sedurantealgumtempoe icaramaolharparaocruci ixo

na parede. Como nós, os humanos, somos imperfeitos, pensouMaura. Seexiste um deus, porque nos impõe ele padrões tão inatingíveis? Porquedefineobjectivosquenuncaconseguimosalcançar?

-Euquisserfreira,noutrostemposdisseMaura.

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Julgueiquenãoeracrente.Tinha nove anos. E acabara de saber que fora adoptada. A minha

prima deu com a língua nos dentes, uma daquelas revelaçõesdesagradáveis que de repente explicam tudo. Porque é que eu não eraparecidacomosmeuspais.Porqueéquenãohaviafotogra iasdequandoeu era bebé. Passei o im-de-semana inteiro a chorar no meu quarto.Mauraabanouacabeça.Pobrespais!Nãosabiamoquehaviamdefazerelevaram-meao cinemaparame animar. Fomos verMúsicanoCoração.Obilhetecustouapenassetentaecincocêntimos,porqueo ilmeeraantigo.Maura calou-se por instantes. Achei a Julie Andrews deslumbrante. EqueriasercomoaMaria.Irparaoconvento.

Doutora,querqueeulheconteumsegredo?Oqueé?Tambémeu.Mauraolhouparaela.Nãomediga!Posso ter sido um zero à esquerda no catecismo. Mas quem

consegueresistiraoapelodaJulieAndrews?Riram-se, mas foi um riso nervoso que rapidamente deu lugar ao

silêncio.Entãooqueafezmudardeideias?perguntouRizzoli.Porquenãofoi

parafreira?Maura levantou-se e foi até à janela. Olhando para o pátio às

escuras,respondeu:Fui crescendo. Deixei de acreditar naquilo que não via, que não

cheiravaouemquenão tocava.Em tudooquenãopudesse serprovadocientificamente.Edescobriosrapazes.

Ah,pois,osrapazes.Rizzoliriu-se.Ésempreamesmacoisa.- É o verdadeiro objectivo da vida, sabe? De um ponto de vista

biológico.Osexo?-Aprocriação.Éoqueosnossosgenesexigem.Quecresçamosenos

multipliquemos. Julgamos que somos os únicos a controlar a nossa vida,mas não passamos de escravos do nosso ADN, que nos diz para termosbebés.

Maura virou-se e icou admirada ao ver que Rizzoli tinha os olhosmarejadosdelágrimas;estasdesapareceramnumápice,afastadascomumgestorápidodamão.

Jane?Estoucansada.Nãotenhodormidomuitobem.

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Passa-semaisalgumacoisa?Quemaishaviadeser?Arespostafoidemasiadorápida,demasiado

à defesa. Até Rizzoli se apercebeu disso e corou. Tenho de ir à casa debanho disse ela, levantando-se, como se estivesse ansiosa por fugir.Quando chegou à porta, parou e olhou para trás. A propósito, conhece olivro que está em cima da secretária? Aquele que Camille andava a ler.Repareinotítulo.

Qualé?"Santa Erigida da Irlanda". É uma biogra ia. É curioso como existe

umsantopadroeiroparatudo,paratodasasocasiões.Háumsantoparaoschapeleiros. Um santo para os toxicodependentes. Com os diabos, até háumsantoparaaschavesperdidas.

SantaErigidaépadroeiradequem?Dosrecém-nascidosrespondeuJaneemvozbaixa.Erigidaéasanta

dosrecém-nascidos.E,dizendoisto,saiudoquarto.Mauraolhouparaasecretáriaondeestavaolivro.Aindanavéspera

imaginaraCamillesentadaàsecretária,aviraraspáginastranquilamente,abuscarinspiraçãonavidadeumajovemirlandesadestinadaàsantidade.Agora, a cena era diferente Camille não era uma jovem serena, masatormentada,pedindoa SantaErigidaque salvasseo ilhomorto.Peço-te,recebe-onos teusbraçosmisericordiosos.Mostra-lhe a luz, apesarde elenãotersidobaptizado.Eleéuminocente.Elenãotempecado.

Contemplou o quarto austero e viu-o a uma nova luz. O soalhoimaculado,ocheiroa lixíviaeacera tudoganhavaumnovosigni icado.Alimpeza como metáfora da inocência. Camille, a pecadora, limparadesesperadamenteosseuspecados,asuaculpa.Durantemeses,devia-seter apercebido de que trazia um ilho no ventre, escondido debaixo daspregas volumosas do hábito. Ou recusara-se a aceitar a realidade? Ounegara-aperantesiprópria,talcomoasadolescentesgrávidasnegavamàsvezesaevidênciadasuaprópriabarrigainchada?

E o que izeste, quando o teu ilho veio ao mundo? Entraste empânico. Ou livraste-te, fria e tranquilamente, da consequência do teupecado?

Mauraouviuvozesmasculinas lá fora.Atravésda janela,avistouosvultos de dois polícias a sair do edi ício. Pararam para aconchegar ossobretudoseparacontemplaranevequecaía,rutilante,docéunocturno.Depois saíram do pátio, e os gonzos chiaram quando o portão se fechouatrásdeles.Maura icouàescutadeoutrossons,deoutrasvozes,masnão

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ouviunada.Apenasosilênciodeumanoitedeneve.Tãocalma,pensouela.Comoseeufosseaúnicaqueficounoedifício.Esquecidaesozinha.

Ouviu um estalido e sentiu um movimento, de outra presença noquarto. De repente, os pêlos da nuca eriçaram-se e ela soltou umagargalhada.

Céus,Jane,nãomepregueumsustocomo...Virou-separatrásenãoterminouafrase.

Nãoestavaalininguém.Porinstantes,nãosemexeu,nãorespirou, limitou-seaolharparao

espaçovazio.Paraoar,paraosoalhoenceradoOquartoestáassombrado,foioseuprimeiropensamentoirracional,antesdealógicalevaramelhor.Os soalhos velhos estalavam e os tubos do aquecimento central gemiam.Não eram passos, mas as tábuas do soalho, a contraírem-se com o frio.Havia explicações perfeitamente razoáveis para que ela tivesse julgadoqueestavamaisalguémnoquarto.

No entanto, continuava a sentir uma presença, continuava a sentirqueestavaaserobservada.

Agora,tambémospêlosdosseusbraçosseeriçavametodososseusnervos retiniam em sinal de alarme. Algo andava aos saltos lá em cima,comosefossemunhasabaternamadeira.Mauraolhouparaotecto.Seráumanimal?Estáaafastar-sedemim.

Maura saiu do quarto. O bater desordenado do seu coração quaseabafava os sons vindos de cima. Lá estava aquilo... A deslocar-se nocorredor!

Pum-pum-pum.Maurafoiatrásdobarulho,sempreaolharparaotecto,aandartão

depressa que ia chocando com Rizzoli, que acabara de sair da casa debanho.

Oqueé?Qualéapressa?perguntouRizzoli.Chiu!Mauraapontouparaasvigasescurasdotecto.Oqueé?Escute!Ficaram à espera, tentando ouvir mais alguma coisa. Mas, com

excepçãodobaterdoseucoração,Maurasóouviuosilêncio.Talvez fosse a água a correr nos canos disse Rizzoli. Eu puxei o

autoclismo.Nãoeramoscanos.Bem,entãooqueouviu?Mauravoltouaolharparaastravesantigas

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dotecto.;)Éali!Obarulhorecomeçou,aofundodocorredor.Rizzoliolhoupara

cima.Oquediaboéisto?Ratos?Não respondeuMaura em surdina. Seja o que for, émaior do que

umrato.Desceuo corredoràpressa, comRizzoli atrásdela, eaproximou-se

dosítiodeondevieraobarulhopelaúltimavez.Derepente,ouviu-seumasériedepancadasno tecto,destavezem

sentidocontrário.Vaiparaaoutraala!exclamouRizzoli.Comadetectiveà frente,entraramnumaportaquehaviaao fundo

do corredor.Rizzoli acendeu a luz.Depararamcomumcorredordeserto.Estava frio ali, e a atmosfera era abafada e húmida. Através das portasabertas, viram quartos abandonados e os vultos fantasmagóricos demóveiscobertoscomlençóis.

Oquequerquefugiraparaaquelaalaestavaagoraemsilêncio,nãodavasinaldesi.

Asuaequipainspeccionouestazonadoedifício?perguntouMaura.Demosumavistadeolhosatodosestesquartos.:Eláemcima?Porcimadestetecto?Aíéosótão.Bem, há alguma coisa a mexer lá em cima disse Maura. E é

suficientementeinteligenteparasaberqueandamosatrásdela.Maura e Rizzoli agacharam-se na galeria superior da capela para

examinaremopaineldemognoque,segundoMaryClementlhesexplicara,dava acesso ao sótão do edi ício. Rizzoli empurrou ligeiramente o painel,queseabriusemfazerbarulho.Olharamambasparaoescuroe icaramàescuta. Um bafo quente bateu-lhes na cara. Era no sótão que seconcentravaocalordoedifício,eelassentiram-noasairpelaabertura.

Jane apontou a lanterna lá para dentro. Via-se o travejamentomaciçoeacorrosadadomaterialisolanterecentementeaplicado.Dochão,serpenteavamváriosfioseléctricos.

Rizzoli foi a primeira a entrar. Maura acendeu também a sualanternaeentrouatrásdela.Oespaçonãotinhaalturasu icienteparaelase endireitar; teve de inclinar a cabeça para evitar as vigas de carvalhoabauladas que sustentavam a cobertura. A luz das lanternas descreviagrandescírculosnoescuro.Paraalémdeles,haviaumafronteirainvisível;Maurasentiuoritmorespiratórioaceleradodeambas.Otectobaixoeoar

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rarefeitodavam-lheasensaçãodeestarenclausurada.Sobressaltou-sequandosentiuquelhetocavamnobraço.Semdizer

umapalavra,Rizzoliapontouparaadireita.Amadeiraestalavaàmedidaqueavançavamatravésdas sombras.

Rizzoliiaàfrente.Espere!disseMauraemvozbaixa.Nãodeviapedirreforços?Porquê?Porcausadaquiloláemcima.Não vou pedir reforços se aquilo que estamos a perseguir for

apenasumestúpidoguaxinim...Rizzoliparou,apontandoofocodeluzparaa esquerda e para a direita. Acho que já acabámos a ala oeste. Estáquentinhoaquiemcima.Desliguealanterna.

Oquê?Desligue-a.Queroverificarumacoisa.Comrelutância,Mauradesligoualanterna.Rizzolifezomesmo.Naescuridãosúbita,Maurasentiuapulsaçãoaacelerar.Nãovemos

o que está à nossa volta. O que possa estar a vir ao nosso encontro.Pestanejou, forçando os olhos a adaptarem-se ao escuro. Foi então quereparounaluzraiozinhosdeluz,entreasfendasdosoalho.Aquieali,umafendamaior,no sítio emqueas tábuas se tinhamafastado, ouemqueosnós da madeira se tinham contraído com a atmosfera seca do Inverno,formandoumaespéciedeolho.

OspassosdeRizzolifaziamestalarosoalho.Derepente,oseuvultosombrio agachou-se, e ela encostou a cabeça ao chão. Ficou algum temponaquelaposiçãoedepoisriu-sebaixinho.

Até parece que estou a espreitar para o vestiário dos rapazes noliceu.

Oqueestáaver?O quarto de Camille. Estamos mesmo por cima dele. Há aqui um

buraconamadeira.Mauraavançounaescuridãoeaproximou-sedeRizzoli.Ajoelhou-se

eespreitoupeloburaco.EstavaaverasecretáriadeCamille.Endireitou-se, sentindo um calafrio na espinha. Aquilo que estava

aqui em cima viu-me, naquele quarto. Estava a observar-me. Pum-pum-pum.

Mauratenteoualanterna,ligou-aeapontou-aemtodasasdirecções,procurando quem, ou aquilo, que se encontrava no sótão, junto delas.Vislumbrou teias de aranha penugentas, travesmaciçasmesmopor cima

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dasuacabeça.Estavamuitocaloraliemcima,aatmosferaerasufocanteeabafadaeasensaçãodeasfixiaalimentavaoseupânico.

TantoelacomoRizzoliestavaminstintivamentenadefensiva,costascom costas, e Maura sentia os músculos tensos da companheira, arespiração acelerada, enquanto ambas inspeccionavam a escuridão. Àprocuradobrilhodeunsolhos,deumrostoferoz.

A rapidez dos movimentos de Maura foi tal que ela não viu àprimeira.Sóquandovoltouaapontarofocodeluzparaaextremidadedeuma viga é que reparou que havia uma irregularidade no soalho tosco.Concentrou-se,masnãoacreditounoqueestavaaver.

Deuumpasso em frente, cada vezmais horrorizada àmedidaqueseaproximavaequeofocodeluziarevelandooutrasformassemelhantes.Eramtantas...

MeuDeus,éumcemitério.Umcemitériodebebés.O foco de luz vacilou. Maura, cuja mão era sempre tão irme a

manejarobisturinamesade autópsias, não conseguiudeixarde tremer.Parou,eofocodasualanternaincidiudirectamentenumrosto.Umpardeolhosazuis itaram-na,lustrososcomoberlindes.Mauracontinuouaolhar,apercebendo-selentamentedoqueestavaaver.

E depois soltou uma gargalhada. Uma gargalhada sonora eassustada.

Nessa altura, já a detective estava à sua direita, a iluminar a pelerosada,aboquinha,oolharsemvida.

Quediabo!exclamouela.Éapenasumamalditaboneca!Maura apontou a lanterna para os outros objectos que se

encontravam ao lado. E viu pele macia, de plástico, membros roliços. Obrilhodosolhosdevidroreflectiu-senosdela.

Sãobonecas.Éumacolecçãodebonecasdisseela.Repare como estão alinhadas, em ila. Parece uma espécie de

enfermaria.Queestranho!Ou um ritual contrapôs Maura, baixinho. Um ritual pagão num

santuáriodeDeus.Oh,céus.Agoraéquevocêmetramou.Pum-pum-pum.Rodopiaram ambas, atravessando a escuridão com os focos de luz,

mas não descobriram nada. O som fora mais ténue. O que quer que seencontrava no sótão com elas estava agora a afastar-se, furtando-se aoalcance das suas luzes. Maura assustou-se ao ver que Rizzoli puxara daarma;foratudotãorápidoqueelanemseapercebera.

NãocreioquesejaumanimalcomentouMaura.Poucodepois,Rizzoli

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disse:Tambémnãomeparece.Vamossairdaqui.Porfavor!Está bem. Rizzoli respirou fundo e Maura ouviu-lhe pela primeira

vezavoztrémulademedo.Estábem.Umasaídacontrolada.Umpassodecadavez.

Percorreramjuntasocaminhoderegresso.Oartornou-semaisfrio,mais húmido; ou talvez fosse o medo que arrepiava Maura. Quando seaproximaramdopainel,elasaltouliteralmentedosótão.

Atravessaram a abertura e entraram na galeria da capela. Com asprimeiras lufadas de ar frio, o medo dissipou-se. Ali, à luz, Mauraconseguiu controlar-se.Evoltar apensar com lógica.Oquevira,de facto,naquele sítio escuro? Uma ila de bonecas, nada mais. Pele de plástico,olhosdevidroecabelodenáilon.

AquilonãoeraumanimaldisseRizzoli,agachando-seeexaminandoosoalhodagaleria.

Oqueé?Estáaquiumapegada.Rizzoli apontou para os vestígios de poeira. Amarca de um sapato

dedesporto.Maura deitou uma olhadela às solas dos sapatos e veri icou que

também ela trouxera pó para a galeria. Quem deixara aquela pegadafugiradosótãopoucoantesdelas.

Bem, cá está quem procuramos disse Rizzoli, abanando a cabeça.MeuDeus!Aindabemquenãodisparei.Detestopensarque...

Mauraolhouparaapegadaeestremeceu.Eradeumacriança.

SeisGrace Otis estava sentada àmesa da sala de jantar do convento e

abanouacabeça.Ela tem apenas sete anos. Não podem con iar em nada do que ela

diz.Mente-meconstantemente.Dequalquermodo,gostavadefalarcomeladisseRizzoli.Comasua

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autorização,claroestá.Falarcomelasobrequê?Saberoqueestavaelaafazernosótão.Elaestragoualgumacoisa,foiisso?Gracedeitouumolharnervosoà

madre Mary Clement, que fora chamá-la à cozinha. Eu vou castigá-la,reverendamadre. Tenho tentado andar atrás dela,mas ela émanhosa enuncacontaoquefez.Nuncaseiondeéqueelafoi...

MaryClementpousouamãodeformadanoombrodeGrace.Porfavor.Deixequeapolíciafalecomela.Grace deixou-se icar sentada, sem saber o que fazer. Depois de

arrumaracozinha, icaracomoaventalcheiodenódoasdegorduraedemolhode tomate, e sobreo rosto suado caíamváriasmadeixasde cabelocastanho que se tinham soltado do rabo-de-cavalo. Era um rosto rude,gasto, que talvez nunca tivesse sido belo e que as rugas de amargurasobrecarregavam ainda mais. Agora, enquanto as outras aguardavam asuadecisão, ela eraaúnicaque controlavaa situação,que tinhapoder, eparecia saboreá-lo. Adiando a decisão tanto quanto possível, enquantoRizzolieMauraesperavam.

Dequetemmedo,MistressOtis?perguntouMauratranquilamente.AperguntapareceterirritadoGrace.Nãotenhomedodenada.Entãoporquenãoquerquefalemoscomasuafilha?Porqueelanãoédefiar.Sim,sabemosqueelatemapenassete...Ela mente. As palavras saíram-lhe da boca como o estalar de um

chicote.OrostodeGrace,quenãoeraatraente, tornou-seaindamaisfeio.Elamente acerca de tudo. Até sobre coisas sem importância. Não podemacreditaremnadadoqueeladiz,emnada.

Mauraolhouparaamadre,queabanouacabeça,atrapalhada.A menina tem-se mostrado sossegada e comedida disse Mary

Clement. Foi por isso que autorizámos a Grace a trazê-la para a abadiaenquantotrabalha.

Não posso pagar a uma pessoa para tomar conta dela interpôsGrace.Aliás,nãotenhodinheiroparanada.Sóassiméquepossotrabalhar,seficarcomelaaquidepoisdaescola.

Eelaficaaquiàsuaespera?perguntouMaura.Atéasenhoraacabarotrabalho?

Oquehei-defazer?Tenhodetrabalhar,percebe?Omeumaridonãoestáládegraça.Hojeemdia,atéparamorrerprecisamosdedinheiro.

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Comodisse?Re iro-me ao meu marido. Está internado no Hospício de Santa

Catarina.SóDeussabequantotempoelelá icará.Gracedeuumaolhadelaàmadre,penetrantecomoumasetaenvenenada.

Trabalhoaqui.Issofazpartedoacordo.Era óbvio que não se tratava de um bom acordo, pensou Maura.

Gracenãopodiatermaisdetrintaecincoanos,masdeviasentirqueasuavida já tinha acabado. Estavamanietada pelas obrigações para com umailha de quem claramente não gostavamuito e para com ummarido quenuncamaismorria. Para GraceOtis, a Abadia de Graystones não era umsantuário,eraumaprisão.

Porque é que o seu marido está em Santa Catarina? perguntouMauraamavelmente.

Jálhedisse.Estáamorrer.Dequê?DadoençadeCharcot,tambémconhecidacomoLouGehrigELA.Grace respondeu sem emoção, mas Maura conhecia a realidade

terrívelqueestenomeescondia.Quandoandavaaestudar,examinaraumdoente com esclerose lateral amiotró ica. Apesar de estar completamenteacordado e consciente, e de ser sensível às dores, não se podia mexerdevido à atro ia dos músculos, que o reduzia a pouco mais do que umcérebroprisioneirodeumcorpoinútil.Quandolheexaminaraocoraçãoeospulmõese lhepalparaoabdómen, sentiraoolhardelecravadonela,enãoquiseraencará-lo,porquesabiaodesesperoqueverianosseusolhos.Quandopor imsaíradoquarto,sentiraalívio,mastambémumapontaderemorso,massóumaponta.Atragédiadelenãolhediziarespeito.Elaeraapenas uma estudante, de passagem pela vida dele, sem obrigação departilharofardodoseuinfortúnio.Eralivredeseirembora,efoi.

Grace Otis não podia fazer o mesmo. O resultado era visível nasrugas de ressentimento do seu rosto e nas madeixas prematuramentebrancasdoseucabelo.

Pelomenos,avisei-a.Elanãoéde iar.Contahistórias.Asvezes,sãohistóriasridículasdisseela.

NóscompreendemosrespondeuMaura.Ascriançassãoassim.Sequiserem falar comela, temde ser naminhapresença. Só para

euteracertezaqueelaseportabem.Comcerteza.Estánoseudireito,comomãe.Por im,Gracelevantou-

se.

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A Noni está escondida na cozinha. Vou buscá-la. Passados algunsminutos, Grace reapareceu, comumamenina de cabelo escuro pelamão.EraóbvioqueNoninãoqueriavirequeresistiradurantetodoocaminho,com todas as ibras do seu corpinho, à força inexorável damãe. Por im,Grace pegou na ilha por baixo dos braços e sentou-a numa cadeira nãocom ternura, mas com o cansaço e o desagrado de uma mulher quechegaraaolimitedasuaresistência.Ameninamanteve-secaladadurantealgum tempo, como que admirada por se ter deixado dominar tãodepressa. Era uma criança de cabelo encaracolado, queixo anguloso eolhos escuros cheios de vivacidade, que depressa se apercebeu dapresença de todos. Olhou apenas de relance para Mary Clement, o seuolhardemorou-seumpoucomaisemMaurae,por im,concentrou-seemRizzoli. E ali icou, como se a detective fosse a únicamerecedora da suaatenção.Talcomoumcãoqueresolveimportunaroúnicoasmáticoqueseencontra na sala, Noni concentrara-se na pessoa que menos gostava decrianças.

Gracedeuumencontrãoàfilha.Tensdefalarcomelas.Noni fez um esgar de protesto. Saíram-lhe da boca duas palavras,

roufenhas,comoocoaxardeumarã.Nãoquero.Nãome interessa que não queiras. Elas são da polícia. O olhar de

Nonidemorou-seemRizzoli.Nãoparecemserpolícias.MassãoinsistiuGrace.Esenãofalaresverdade,elaslevam-tepresa.Isto era precisamente o que os polícias detestavam que um pai ou

umamãedissesseaum ilho.As crianças icavamcommedodaspessoasemquemdeviamconfiar.

Comumgestorápido,RizzolipediuaGracequesecalasse.Agachou-se em frente da cadeira de Noni para icar ao mesmo nível da criança.Eram tão parecidas uma com a outra o cabelo escuro e encaracolado, oolharintensoqueRizzolipoderiaestardiantedeumclonedesiprópria.SeNonitambémfosseteimosa,entãoasemelhançaseriatotal.

Vamosesclarecerumacoisa,estábem?disseRizzoliàmenina,numtombrusco e directo, como se falasse não comuma criançamas comumadulto em miniatura. Eu não te levo presa. Eu nunca levo os meninospresos.

Ameninafitou-a,desconfiada.Nemosmeninosmaus?perguntouela,comardedesafio.

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Nemosmeninosmaus.Nemosmuito,muitomaus?Rizzoli hesitou, com uma certa irritação no olhar. Noni não

desarmava.Bem, se forem muito, mas mesmo muito maus, mando-os para o

reformatório.Issoéumaprisãoparameninos.Exactamente.Então mandas meninos para a prisão. Rizzoli deitou a Maura um

olharestupefacto.Bem,estouaquiaopédeti,masnãovoumandar-teparaaprisão.Só

querofalarcontigo.Porqueéquenãoestásfardada?Porquesoudetective.Nãotenhodeusarfarda.Massoupolícia.Masésumamulher.Pois,souumamulher-polícia.Eagoraqueresdizer-meoqueestavas

afazerláemcima,nosótão?Noniencolheu-senacadeirae icouaolhar,comoumagárgula,para

a sua interrogadora. Durante um bom minuto, observaram-semutuamente,cadaumaàesperaqueaoutraquebrasseosilêncio.

Por im, Grace perdeu a paciência e deu um safanão no ombro dafilha.

Válá!Conta-lhe!Porfavor,MistressOtis!Issonãoénecessário!disseRizzoli.Mas está a ver como ela é? Não facilita nada. Tudo serve de

confronto.Vamosdescontrair-nos,estábem?Eupossoesperar.Possoesperar

tantocomotu,miúdadisse-lheRizzolicomoolhar.Portanto,vamoslá,Noni.Diz-nos onde arranjaste aquelas bonecas. Aquelas com que estiveste abrincarláemcima.

Nãoasroubei.Eunãodissequeasroubaste.Encontrei-as.Umacaixacheiadelas.Onde?Nosótão.Ehálámaiscaixas.Nãodeviasestarlá.Deviasandarpertodacozinhaenãoincomodar

ninguém.Eunãoestavaaincomodarninguém.Mesmoquequisesse,nãohavia

ninguémnaquelesítioparaeuincomodar.

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Entãoencontrasteasbonecasno sótãodisseRizzoli, conduzindodenovoaconversaparaoassuntoemquestão.

Umacaixacheiadelas.Rizzoli deitou um olhar interrogador à madre Mary Clement, que

respondeu:Faziampartedeumprojectodebene icênciaaquiháunsanos.Nós

équefizemosasroupasdasbonecasparadaraumorfanatonoMéxico.EntãoencontrasteasbonecasrepetiuRizzoliaNoni.Ebrincastecom

elasláemcima.Maisninguémseserviadelas.Ecomoéqueconseguisteentrarnosótão?Viohomemaentrarlá.Ohomem?Rizzoli olhouparaMaura.Aproximou-semaisdeNoni e

perguntou:Qualhomem?Eletraziacoisasnocinto.Coisas?Um martelo e outras coisas respondeu Noni apontando para a

madre.Elatambémviu.Estavaafalarcomele.AmadreMaryClementsoltouumagargalhadadeespanto.-Oh!Euseiaoqueelaserefere.Nosúltimosmeses, izemosvárias

obras de remodelação. Têm andado uns homens a trabalhar no sótão, afazeronovoisolamento.

-Quandoéqueissofoi?perguntouRizzoli.EmOutubro.Temosnomesdetodosesseshomens?Posso ir veri icar os livros. Guardamos os documentos de todos os

pagamentosquefazemosaosempreiteiros.A inal, não se tratara de uma revelação muito surpreendente. A

meninaandaraaespiarosoperáriosquesubiamparaumesconderijocujaexistênciaela ignorava.Umespaçomisterioso,cujoacessose faziaapenasporumaportasecreta.Seria irresistívelparaqualquercriançasobretudoumatãocuriosacomoestadarumaespreitadelaláparadentro.

E não te importaste que estivesse escuro lá em cima? perguntouRizzoli.

Eutenhoumalanterna,sabes?Masqueperguntatãoestúpida,eraoquedavaaentenderotomde

vozdeNoni.Nãotivestemedo?Deestarsozinha?

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Porquê?Porquê, de facto? pensouMaura. Esta criança era corajosa, não se

assustavanemcomaescuridãonemcomapolícia.Olhava ixamenteparaRizzoli,comosefosseelaprópria,enãoadetective,aconduziraconversa.Mas, apesar do seu aspecto sereno, não deixava de ser uma criança, epoucocuidada.Ocabeloeraumemaranhadodecaracóissalpicadosdepódo sótão. A sweatshirt cor-de-rosa parecia em segunda mão. Erademasiado grande e tinha os punhos enrolados e sujos. Só os ténis lheicavambemKedsnovinhosemfolha.Ospésdacriançanãochegavamaochãoeelacontinuavaabalouçá-losparaumladoeparaooutronumritmomonótono.Ummetrónomocomexcessodeenergia.

Gracedisse:Eunãosabiaqueelaestavaláemcima,acreditem.Nãopossoandar

sempreatrásdela.Tenhodecozinharefazeralimpeza.Nãosaímosdaquiantes das nove horas e só consigo metê-la na cama às dez. Grace olhoupara Noni. Isso é uma parte do problema. Ela anda sempre cansada emaldisposta e por isso tudo se transforma numa discussão. No anopassado,conseguiuprovocar-meumaúlcera.

Criouumatensãonervosatãograndequeomeuestômagocomeçouadigerir-seasipróprio.Eudobrava-mecomdoreseelanãoseimportava.Continuaafazerumabirraparairparaacamaouparatomarbanho.Nãosepreocupacommaisninguém.Masascriançassãoassim,completamenteegoístas.Omundointeirogiraàvoltadela,

Enquanto Grace dava largas à sua frustração, Maura observava areacção de Noni. A menina calara-se, deixara de balouçar as pernas efecharaaboca,comumarcarrancudo.Masosolhosescurosencheram-semomentaneamente de lágrimas, que desapareceram com a mesmarapidez,graçasaogestofurtivodeumpunhoencardido.Elanãoerasurdanemmuda,pensouMaura.Sentiaaraivanavozdamãe.Todososdias,demuitas maneiras, Grace devia transmitir o seu descontentamento emrelação à ilha. E a criança compreendia. Não era de admirar que fosseproblemática; não era de admirar que exasperasse Grace. Era a únicaemoçãoqueelaconseguiaarrancaràmãe,aúnicaprovadequeexistiaumsentimento qualquer entre elas. Tinha apenas sete anos e já sabia queperdera a aposta no amor. Sabia mais do que os adultos imaginavam, eaquiloqueviaeouviaera,semdúvida,penoso.

Rizzoliestiveraagachadaaomesmoníveldacriançadurantemuitotempo.Levantou-seeesticouaspernas.Jáeramoitohoras,aindanãotinhajantadoecomeçavaaperderaenergia.Continuoua itaramenina,ambas

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igualmentecomocabelodesgrenhadoeumaexpressãodeterminada.Então,Noni,tensidomuitasvezesaosótão?perguntouRizzoli,quase

aperderapaciência.Omolhodecabelospoeirentosfezumgestoafirmativo.Oquefazesláemcima?Nada.Acabastededizerquebrincascomastuasbonecas.Issojáeutedisse.Equemaiséquefazes?Ameninaencolheuosombros.Rizzoliinsistiu:Vá lá, isto está a icar aborrecido.Não posso imaginar que queiras

andarapassearpelo sótãosenão tiveresalgumacoisa interessanteparaver.

Nonibaixouoolhar.Costumasespreitarasirmãs?Observaroqueelasfazem?Estousempreavê-las.Equandoelasvãoparaosquartos?Nãotenholicençaparairláacima.Mas costumas observá-las quando elas não estão a ver? Sem elas

daremporisso?Semlevantaracabeça,Nonirespondeu:Issoéespiar.E tu és uma especialista nisso disse Grace. É uma invasão da

privacidade.Eujáteavisei.Nonicruzouosbraçosedeclaroucomumavozsonante:invasãodaprivacidade.Parecia que estava a fazer troça da mãe. Grace corou e avançou

para a ilha, como se tencionasse bater-lhe. Rizzoli deteve Grace com umgestorápido.

AsenhoraeamadreMaryClementnãoseimportamdesairdasalaporunsminutos?

AsenhoradissequeeupodiaficarretorquiuGrace.CreioqueaNoninecessitadealgumapersuasãosuplementar.Será

preferívelquenãoestejampresentes.Ah!Comcerteza.Graceacedeu,comumcertodesagradonoolhar.Rizzoli interpretara correctamente esta mulher. Grace não estava

interessada em proteger a ilha; pretendia apenas vê-la disciplinada.

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Subjugada.DeitouaNoniumolhardogéneroagoraestás tramadae saiudasala,seguidapelamadre.

Por instantes, ninguém pronunciou uma palavra. Noni continuousentada, cabisbaixa, com as mãos no regaço. A imagem da obediênciainfantil.Masquegrandeactriz!

Rizzoli puxou uma cadeira e sentou-se em frente dela. Ficou àespera,semdizernada.Deixandoqueosilêncioactuasse.

Por im, por baixo de um caracol caprichoso,Noni deitou umolharmanhosoaRizzoli.

Estásàesperadequê?Que me digas o que viste no quarto de Camille. Porque sei que

andaste a espreitá-la. Eu fazia a mesma coisa quando era pequena.Espreitavaosadultos.Viaascoisasestranhasqueelesfaziam.

Issoéumainvasãodaprivacidade.Pois,masédivertido,nãoé?NonilevantouacabeçaeolhoubemdefrenteparaRizzoli.Issoéumapartida.Eunãopregopartidas,ouviste?Precisoquemeajudes.Achoqueés

umameninamuitoesperta.Apostoquevêscoisasemqueosadultosnemreparam.Oqueachas?

Noniencolheuosombros,comumarsoleneTalvez.Entãoconta-mealgumasdascoisasquevisteasfreirasafazer.Coisasesquisitas?Sim.Noniinclinou-senadirecçãodeRizzoliedissebaixinho:A irmã Abigail usa fralda. Faz chichi nas cuecas porque é muito,

muitovelha.Quantosanostemela?Sabes?Unscinquenta.Livra!Émesmovelha!AirmãCornéliameteosdedosnonariz.Quenojo!Eatiraosmacacosparaochãoquandojulgaqueninguémestáaver.Aindapior!Emanda-me lavar as mãos porque diz que eu sou porca. Mas ela

nãolavaasmãosetiramacacosdonariz.Estásatirar-meoapetite,Noni.E eu perguntei-lhe porque é que ela não lavava as mãos para

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sacudirosmacacoseela icoufuriosacomigo.Dissequeeufalavademais.A irmãUrsuladisseomesmo,porque lhepergunteiporqueéqueaquelasenhoranãotinhadedos,eelamandou-mecalar.Eaminhamãeobriga-mesempreapedirdesculpa.Dizqueeuaenvergonho.Éporissoqueeuandoporondenãodeviaandar.

Está bem, está bemdisseRizzoli, comar de quemestava comumador de cabeça. Tudo isso é muito interessante, mas sabes o que querosaber?

Oquê?O que viste no quarto da irmã Camille. Por aquele buraco na

madeira.Tuestavasaespreitar,nãoestavas?Nonibaixouacabeça.Talvez.Nãoestavas?Destavez,Nonireconheceu,submissa:Euqueriaver...Veroquê?Oqueelasusamporbaixodaroupa.Mauratevedeconter-separanãodarumagargalhada.Lembrou-se

daépocaemque frequentaraocolégioHoly Innocentseemque tambémperguntara a si própria o queusariamas freiras por baixo do hábito. Asreligiosas pareciam sempre seres misteriosos, com corpos disfarçados einformes,eastúnicasnegrasqueafastavamosolharesdoscuriosos.Oqueusaria uma noiva de Cristo junto da pele nua? Maura imaginava-as comumashorríveisceroulasbrancasquechegavamatéàcintura,umsutiãdealgodãoparadisfarçarereduzirasformasdocorpoemeiasgrossascomoinvólucros de salsichas para esconder as pernas inchadas e cheias devarizes. Imaginava os corpos aprisionados por camadas e camadas dealgodão macio. Até que um dia, vira a irmã Lawrencia a levantar a saiaquandosubiaasescadasevislumbraraumapeçaderoupaencarnadaporbaixo da bainha. Não eram apenas umas cuequinhas encarnadas, masumas cuequinhas de cetim encarnado.Maura nuncamais voltara a olharpara a irmã Lawrencia, nem para outra freira qualquer, da mesmamaneira.

Eu também sempre quis saber o que usavam elas por baixo dohábito,percebes?disseRizzoli,inclinando-separaamenina.

Noniabanouacabeçacomumaexpressãograve.Elanuncasedespia.Nemsequerquandoiaparaacama?

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Eutenhodeirparacasaantesdeelassedeitarem.Nuncavi.Bem,entãooqueviste?Oque faziaCamille lá emcima, sozinhano

quarto?Nonirevirouosolhos,comosearespostafosseenfadonha.Fazia limpezas. Sempre. Era a senhoramais limpade todas.Maura

lembrou-se do soalho esfregado, da cera raspada até chegar à madeiranua.

Equemaisfaziaela?perguntouRizzoli.Liaolivro.Equemais?Nonifezumapausa.Choravamuito.Sabesporquechoravaela?Ameninamordeuolábioinferior,comosepensassenoquehaviade

dizer.Derepente,lembrou-sedeumaresposta:PorquetinhapenadeJesus.Porquedizesisso?Nonisuspirou,exasperada.Nãosabes?Elemorreunacruz.Talvezelachorasseporoutracoisaqualquer.Mas ela estava sempre a olhar para ele. Ele está pendurado na

parede.Maura lembrou-se do cruci ixo, pendurado em frente da cama de

Camille.Eimaginouajovemnoviçaprostradadiantedacruz,arezarpor...quê?Peloperdãodosseuspecados?Pelaausênciadeconsequências?Mastodososmesesacriançaiacrescendodentrodoseucorpoeelacomeçavaasentir-lheosmovimentos.Ospontapés.Nãohaviaprecesnem limpezas,pormaisfrenéticasquefossem,queconseguissemafastaraquelaculpa.

Já acabaste? perguntou Noni. Rizzoli recostou-se na cadeira esuspirou.

Já, miúda. Estamos conversadas. Podes ir ter com a tua mãe. Amenina saltou da cadeira e pousou os pés no chão com tal força que oscaracóisestremeceram.

Elatambémandavatristeporcausadospatos.Olá!Issosoa-meajantardisseRizzoli.Patoassado.Elacostumavairdar-lhesdecomer,masdepoiselesfugiamtodosno

Inverno. A minha mãe diz que alguns não voltam porque morrem acaminhodosul.

Pois, é a vida. Vai, que a tua mãe está à espera disse Rizzoli,mandando-aembora.

A menina estava a chegar à porta da cozinha quando Maura

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perguntou:Noni, onde é que estavam esses patos a que a Camille dava de

comer?Estavamnolago.Quallago?Nastraseiras.Mesmodepoisdeelesseiremembora,elacontinuava

a ir procurá-los, mas a minha mãe dizia que ela estava a perder tempoporque talvez eles já estivessem na Florida. É onde ica a DisneyWorldacrescentouacriança,saindodasala,aossaltos.

Fez-seumlongosilêncio.Rizzolivirou-sedevagareolhouparaMaura.Vocêouviuomesmoqueeu?Ouvi.Estáapensar...Maurafezumsinalafirmativo.Temdefazerumabuscaaolagodospatos.Eram quase dez horas quando Maura parou na sua rua. As luzes

acesasnasaladavamailusãodequeestavaalguémemcasa,àsuaespera,mas ela sabia que não era assim. Era sempre uma casa vazia que aaguardava, e as luzes eram acesas não pormãos humanas,mas por trêsprogramadores automáticos que lhe tinham custado cinco dólares enoventa e nove cêntimos cada um noWal-Mart local. Nos dias curtos deInverno, ela programava-os para as cinco horas para que, quandochegasse,acasanãoestivesseàsescuras.EscolheraestebairroperiféricodeBrookline,aoestedeBoston,pelasegurançaquelheinspiravamasruassossegadasebordejadasdeárvores.Amaiorpartedosseusvizinhoserampro issionais liberais que, como ela, trabalhavam na cidade e serefugiavam todos os dias neste porto de abrigo suburbano. O vizinho dolado, Mr. Telushkin, era um engenheiro robótico israelita. As vizinhas dooutrolado,LilyeSusan,eramadvogadasdedireitoscívicos.NoVerão,todaa gente tinha o jardim bem tratado e o carro lustroso uma versãoactualizada do sonho americano, em que lésbicas e imigrantes sesaudavamalegrementeporentresebesbemaparadas.Eraumbairro tãoseguro quanto era possível nos arredores da cidade, mas Maura sabiacomo estas noções de segurança eram ilusórias. As ruas dos subúrbioseramfrequentadastantoporvítimascomoporpredadores.Asuamesadeautópsiaseraumdestinodemocrático;nãodiscriminavaasdonasdecasasuburbanas.

Embora os candeeiros da sala irradiassem uma luz acolhedora, a

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casa estava gelada. Ou talvez Maura trouxesse o Inverno consigo, comoaquelaspersonagensdebandadesenhadasobreasquaispairamsemprenuvensdetempestade.Rodouotermostatoeacendeuachamadalareiraagás uma comodidade que antes lhe parecia de um arti icialismoassustador, mas que ela se habituara a apreciar. Fogo era fogo, quer seacendesseaccionandouminterruptoroucommadeiraeacendalhas.Nessanoite,agradava-lheparticularmenteaquelecalor,aquelaluzprazenteira,eofactodepoderatingirtãodepressaumasensaçãodeconforto.

Encheu um copo de xerez e instalou-se numa poltrona junto dalareira.Atravésda janela, viuas luzesdeNatalqueenfeitavama casadooutro lado da rua, como se fossem pingentes de gelo a cair do beiral dotelhado lembrando-lhe como ela estava longedo espírito da época. Aindanãocompraraumaárvore,nemospresentes,nemsequerumaembalagemde cartões de boas-festas. Este era o segundo ano em que fazia de Mrs.Grinch.NoInvernoanterior,mudara-separaBostone,comainstalaçãoeaadaptaçãoaonovoemprego,malderapeloNatal.Equaléa tuadesculpaeste ano?, pensou ela. Dispunha apenas de uma semana para comprar aárvore,penduraraslâmpadasefazerlicordeovos.Napiordashipóteses,tocariaaopianoumascançõesdeNatal,comocostumavafazerquandoerapequena.O livro comas partituras aindadevia estar dentrodobancodopiano,desde...

DesdeomeuúltimoNatalcomoVictor.Olhouparaotelefonesobreamesinha.Começavaasentirosefeitos

doxerezesabiaquequalquerdecisãoquetomassenessemomentoseriaemparteinfluenciadapeloálcool.Pelaimprudência.

Mesmo assim, pegou no telefone. Enquanto a telefonista do hotelligavaparaoquarto,elaolhouparaa lareiraepensou: Istoéumerro.Sóvaideixar-medestroçada.

Maura?respondeuele.Semelaterditonada,elejásabiaquemera.EuseiqueétardedisseMaura.Sãoapenasdezemeia.Mesmoassim,eunãodeviatertelefonado.Entãoporque telefonaste?perguntoueleemvozbaixa.Elacalou-se

e fechou os olhos. Ainda conseguia ver o brilho das chamas.Mesmo quenão olhes para elas,mesmo que injas que elas não estão ali, as chamascontinuamaarder.Querasvejasquernão,elasardem.

Achei que era tempo de deixar de te evitar respondeu ela. Casocontrário,nuncaconseguireidarumavoltaàminhavida.

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Bem,masquemotivotãolisonjeiroparamim!Elasuspirou.Istonãoestáasairbem.Não creioquehaja algumamaneira simpáticadedizeresoqueme

queresdizer.Omínimoquepodes fazerédizê-lopessoalmente.Nãopelotelefone.

Assimseriamaissimpático?Seriamuitomaiscorajoso,comosdiabos.Umdesafio.Umataqueàcoragemdela.Mauraendireitou-senapoltronaeolhoudenovoparaalareira.Porqueéqueissoéimportanteparati?Porque devemos enfrentar a situação. Ambos precisamos de

continuar a viver. Não saímos do mesmo sítio porque nennhum de nóspercebeu o que correumal. Eu amava-te e creio que tume amavas,masrepara onde chegámos. Nem sequer conseguimos ser amigos. Diz-meporquê. Porque équeduaspessoasque foramcasadasuma comaoutranão conseguem manter uma conversa civilizada? Como manteriam comoutrapessoaqualquer?

Porquetunãoésoutrapessoaqualquer.Porqueteamei.Podemos fazer isso, não podemos? Conversar apenas, cara a cara.

Enterrar os fantasmas. Não vou icarmuito tempo na cidade. É agora oununca.Oucontinuamosaesconder-nosumdooutro,ouesclarecemosistoefalamossobreoqueaconteceu.Acusa-me,sequiseres.Admitoquemereçocensura.Masvamosdeixardefingirqueooutronãoexiste.

Maurafitouocopovazio.Quandoqueresquenosencontremos?Podiaseragora.Pelajanela,Mauraviuaslâmpadasdecorativasdacasaemfrentea

apagarem-se de repente, os pingentes de gelo a desaparecerem numanoite de neve. A uma semana do Natal, em toda a sua vida, nunca sesentiratãosó.

EumoroemBrooklinedisseela.

Sete

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Maura avistou os faróis do carro dele por entre os locos de neve.Victor conduzia devagar, à procura da casa e paroumesmo ao fundo darampa. Também estás com dúvidas, Victor?, pensou ela. Também teinterrogasseistoseráumerro,senãodeviasdarmeiavoltaeregressaràcidade?

Ocarroaproximou-sedopasseioeestacionou.Mauraafastou-sedajanelaedeixou-se icardepénasala,cientede

que tinha o coração aos pulos e as mãos a transpirar. O toque dacampainha sobressaltou-a e obrigou-a a respirar fundo. Não estavapreparada para encará-lo, mas ele estava ali e ela não podia deixá-lo láforaaofrio.

Acampainhatocououtravez.Assim que Maura abriu a porta", entraram logo alguns locos de

neve,arodopiar.Cintilavamnocasaco,nocabeloenabarbadeVictor.Eraummomentoclássico:oantigoamanteàportadacasadela,perscrutandoavidamente a face dela, e ela sem saber o que havia de dizer excepto"entra".Nemumbeijo,nemumabraço,nemsequerumapertodemão.

Ele entrou e sacudiu o casaco. Quando ela foi pendurá-lo, o cheirofamiliar do cabedal, sempre associado a Victor, fez-lhe doer a garganta.Fechouoarmárioevirou-separaele.

Querestomaralgumacoisa?Umcafé?Doverdadeiro?Nãopassarammaisde trêsanos,Maura.Éprecisoperguntar?Não,

não era preciso perguntar. Ele bebia sempre o café muito forte e semmisturas.Maura teve uma sensaçãode familiaridade que a perturbou aoconduzi-loàcozinhaeaotirardocongeladoraembalagemdecaféemgrãoMt. SutroRoasters. Era amarca preferida de ambos em São Francisco, eela continuava a mandar vir da loja uma embalagem de dois em doismeses.Os casamentospodemacabar,mashá certas coisasdasquaisnãopodemos prescindir. Maura moeu os grãos e ligou a máquina de café,sabendoqueeleestavaaexaminaracozinhaearepararespecialmentenofrigorí icodeaçoinoxidável,nofogãoVikingenostamposdegranitopretodas bancadas. Tinha remodelado a cozinha pouco depois da compra dacasaeorgulhava-sedequeeleestivesseemterritóriodela,dequetivessesido ela a custear tudo o que ele estava a ver, com o suor do seu rosto.Neste aspecto, o divórcio deles fora relativamente simples; não tinhamexigido nada um ao outro. Depois de um casamento que durara apenasdoisanos,tinhamreclamadoosseusbenspessoaiseseguidooseupróprio

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caminho. Esta casa era só dela e todas as noites, quando chegava,Maurasabia que encontraria tudo no mesmo sítio. Que todas as peças demobiliáriotinhamsidocompradasporela,escolhidasporela.

Parecequetensfinalmenteacozinhadosteussonhoscomentouele.Estoucontentecomela.Então, diz-me, as refeições sabem melhor quando são

confeccionadasnumbelofogãocomseisqueimadores?Mauranãogostoudotomsarcásticodeleeripostou:Por acaso sabem. E também sabem melhor se forem servidas em

louçaRichardGinori.OqueaconteceuaovelhoserviçoCrateandBarrei?Resolvi satisfazer um desejo, Victor. Deixei-me de sentimentos de

culpa por ter dinheiro e gastar dinheiro. A vida é demasiado curta paraqueeucontinueavivercomoumahippie.

Ora,ora,Maura.Eraissoquesentiasquandoviviascomigo?Tudizias-mequeofactodenosconcedermosalgunsluxoserauma

traiçãoàcausa.Quecausa?Para ti, tudo era uma causa. Há pessoas a morrer de fome em

Angola,portantoépecadocomprarbelostecidos.Oucomerumbife.OuterumMercedes.

Julgueiquetambémacreditavasnisso.Sabes uma coisa, Victor? O idealismo torna-se cansativo. Não me

envergonhodeterdinheironemsintoremorsosporgastá-lo.Maura serviu-lhe o café, perguntando a si própria se ele teria

consciênciadeumpequenopormenorirónico:eleeradependentedocaféMt. Sutro, cujos grãos tinham sido enviados expressamente do outroextremodo país (que gasto de combustível!). Alémdisso, na chávena emque o bebia igurava o logotipo de uma empresa farmacêutica ("luvas!").Maselenãodissenada.Eraumaestranhaatitudedesubmissãoparaumhomemquesempresepautaratantopeloseuidealismo.

Fora precisamente essa paixão que a atraíra nele. Tinham-seconhecido em São Francisco, numa conferência sobre a medicina noTerceiro Mundo. Ela apresentara uma comunicação sobre as taxas deautópsia no estrangeiro; ele izera a alocução principal sobre as muitastragédiashumanascomqueasequipasmédicasdaOneEarthdeparavamnoutrospaíses.Depénapresençadeumpúblicobemvestido,Victormaisparecia um maltrapilho cansado e com a barba por fazer do que ummédico.AverdadeéquesaíradoaviãovindodaGuatemalaenemsequer

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tivera tempodeengomaracamisa.Entrara logonasalaapenascomumacaixa de diapositivos. Não levara nenhum discurso escrito, nem sequertópicos; só aquele precioso conjunto de imagens que se projectavam noecrã numa sequência trágica. A jovemmãe etíope amorrer de tétano. Obebé peruano com fenda palatina, abandonado à beira da estrada. Amenina cazaque, vitimada por uma pneumonia e envolvida na suamortalha. Todas eram mortes evitáveis, sublinhara ele. Aquelas eramvítimas inocentes da guerra, da pobreza e da ignorância, que a suaorganização,aOneEarth,podiatersalvo.Masnuncahaveriadinheiroquechegasse, nem voluntários su icientes para satisfazer as necessidades detodasascriseshumanitárias.

Mesmo naquela sala às escuras, Maura emocionara-se com aspalavrasdele,pelapaixãocomquefalaradoshospitaisdecampanhaedospostos de distribuição de alimentos, dos pobres esquecidos quemorriamtodososdiassemninguémsaber.

Quandoasluzesseacenderam,elajánãoviuummédicocomofatoamarrotado atrás do pódio. Viu um homem cuja determinação oengrandecia.Tambémela,queexigiaordemeracionalismonasuaprópriavida, se sentiu atraída por esse homem de uma intensidade quaseassustadora,cujotrabalhoolevavaaoslugaresmaiscaóticosdoplaneta.

Eoqueviraelenela?Decertonãoumacompanheiradecruzada.Eladera estabilidade e calma à vida dele. Era ela que controlava o livro dechequesegeriaaeconomiadoméstica,queoesperavaemcasaenquantoele saltavade crisepara crise,de continentepara continente.Avidadeleerainseparáveldamaladeviagemericaemadrenalina.

Teriaessavidasidomuitomaisfelizsemmim?,interrogou-seMaura.Ele não tinha um aspecto particularmente feliz, ali sentado à mesa dacozinha dela, a beber café. O cabelo estava um pouco desgrenhado, acamisa a precisar de uma boa engomadela e as pontas do colarinhoestavampuídastudoprovasdoseudesprezopeloqueerasuper icial.Mas,noutros aspectos, estava diferente. Era um homem mais velho, maiscansado, que parecia calado, mesmo triste, cujo fogo abrandara com amaturidade.

Maura sentou-se do outro lado damesa com a chávena de café namão,eolharamumparaooutro.

Devíamostertidoestaconversahátrêsanosdisseele.Hátrêsanos,nãometeriasdadoouvidos.Tentaste?Algumavezmedissestequeestavasfartadeseramulher

doactivista?

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Maura olhou para o café. Não, não lhe dissera. Guardara para si,como fazia em relação às emoções que a perturbavam. A raiva, oressentimento, o desespero desestabilizavam-na, e isso ela não podiatolerar. Quando assinara os documentos do divórcio, sentira-seestranhamentedesinteressada.

Nuncapercebiqueasituaçãofossetãodifícilparati.Seeutivessefaladocontigo,issoalterariaalgumacoisa?Podiastertentado.Etuoqueteriasfeito?SaídodaOneEarth?Nãohaviacompromisso

possível.Empolga-tedesempenharesopapeldeSãoVictor.Osprémios,oselogios... Ninguém aparece na capa da People por ser apenas um bommarido.

Achas que o faço por isso? Pela atenção, pela publicidade? Céus,Maura!Sabescomoistoéimportante!Faz-meessajustiça,pelomenos!

Elasuspirou.Tens razão, eu fui injusta para contigo. Mas ambos sabemos que

sentiriasafaltadisso.Sim,éverdadeadmitiuele.Masacrescentoutranquilamente:Mas não sabia até que ponto iria sentir a tua falta. Maura deixou

passar estas palavras sem resposta.Deixouque o silêncio pairasse entreambos. A verdade é que não sabia o que havia de dizer, de tal modo odesabafodeleaabalara.

Estáscomóptimoaspectodisseele.Eparecessatisfeita.Estás?Estou.Arespostadelafoidemasiadorápida,demasiadoautomática.Maura

sentiuquecorava.Onovoempregoestáaresultar?perguntouele.Mantém-memotivada.Émais divertido do que aterrorizar os estudantes de Medicina na

UniversidadedaCalifórnia?Elasoltouumagargalhada.Eunãoaterrorizavaosestudantes.Talvezelestivessemumaopiniãodiferente.Eupuxavaporeles,maisnada.Eelescorrespondiamquasesempre.Eras uma boa professora, Maura. Tenho a certeza de que a

universidadegostariamuitoquevoltasses.Bem,todosseguimosanossavida,nãoéverdade?Maurasentiuque

eleaobservavaemanteveumaexpressãoimpenetráveldepropósito.Ontem vi-te na televisão. disse ele. No noticiário da noite. Aquele

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casodasfreiras.Tiveesperançadequeascâmarasnãodessempormim.Localizei-telogo.Elesmostraram-teasairdoportão.Éumdosossosdoofício.Estamossempreemexposição.Sobretudoneste casoparticular, imagino.As imagenspassaramem

todasasestaçõesdetelevisão.Oqueandamelesadizer?Que a polícia não tem suspeitos. Que o motivo permanece

desconhecido. Victor abanou a cabeça. Parece completamente irracional,atacarfreiras.Amenosquesetratedeumcasodeabusosexual.

Issotornaocasoracional?Sabesoquequerodizer.Sim, ela sabia e conhecia Victor su icientemente bem para não se

ofender com o comentário dele. Aliás, havia uma diferença entre oagressor sexual frio e premeditado e o psicótico que não controlava arealidade.

Fiz a autópsia estamanhã disse ela. Fracturas cranianasmúltiplas.Ruptura da artéria meníngea média. Ele agrediu-a várias vezes,provavelmente com um martelo. Não creio que seja possível considerarestaagressãoracional.

Eleabanouacabeça.Como lidas com esta nova situação, Maura? Deixaste de fazer

autópsias agradáveis e asseadas a pessoas que morriam no hospital epassasteparaisto.

Asmortesqueocorremnohospitalnãosãoexactamenteagradáveisnemasseadas.

Mas uma autópsia a uma vítima de homicídio? E ela era nova, nãoera?

Tinhaapenasvinteanos.Maura calou-se, prestes a contar-lhe o que descobrira durante a

autópsia.Quandoeramcasados,partilhavamsempreassuasexperiênciaspro issionais e con iavam um no outro quanto à con idencialidade dasinformações.Masesteassuntoerademasiadoassustador,eelanãoqueriaintegraraindamaisamortenaconversa.

Levantou-separa irbuscaracafeteira.Quandovoltouparaamesa,disse:

Agorafala-medeti.OquetemfeitoSãoVictor?Porfavor,nãometratesassim.Costumavasachardivertido.

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Agora acho horrível. Quando a imprensa começa a chamar-nossantos,éporqueaguardaaoportunidadedenosfazercairdopedestal.

RepareiquetueaOneEarthtêmaparecidobastantenosnoticiários.Elesuspirou.Infelizmente.Porquêinfelizmente?Tem sido um ano mau para a ajuda internacional. Há muitos

con litos e muitos refugiados. É só por isso que temos aparecido nosnoticiários. Porque somos os únicos a intervir. Temos sorte porqueacabámosdereceberumdonativochorudoesteano.

Uma consequência de todo esse protagonismo? Ele encolheu osombros.

De vez em quando, algumas grandes empresas tomam consciênciadasituaçãoeresolvempassarumcheque.

Tenhoacertezaqueasdeduçõesnosimpostostambémlhessabembem.

Mas esse dinheiro desaparece tão depressa! Basta que um loucoqualquerresolvadesencadearumcon lito,e,derepente,confrontamo-noscommaisummilhãoderefugiados.Maiscemmilcriançasamorrerdetifooudecólera.Éistoquemetiraosono,Maura.Pensonascrianças.

Victor bebeu um gole de café e pousou a chávena, como se já nãoconseguissesaboreá-lo.

Maura observou-o e reparou nas novasmadeixas grisalhas no seucabelocastanhoalourado.Talvezestivesseaenvelhecer,masnãoperderanada do seu idealismo. Fora este idealismo que a atraíra nele... E queacabara por separá-los. Ela não podia competir com as necessidades domundoquereclamavamaatençãodeVictor,enuncadevia ter tentado.Ocaso amoroso coma enfermeira francesanão fora, a inal, surpreendente.Fora um acto de desa io da parte dele, a maneira de rea irmar que eraindependente.

Mantiveram-seemsilêncio,semolharumparaooutro.Apesardeseteremamadonopassado,nãoconseguiamagoraarranjarnadaparadizer.Sob o olhar observador deMaura, Victor levantou-se e aproximou-se dolava-louçaparapassarachávenaporágua.

Então,comoestáaDominique?perguntouela.Nãoseinadadela.ContinuaatrabalharparaaOneEarth?Não. Saiu. Não era uma situação confortável para nenhum de nós,

depois...

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Victorencolheuosombros.Nãomantêmocontacto?Elanãoeraimportanteparamim,Maura.Bemsabes.Éengraçado!Mas tornou-semuito importanteparamim.Elevirou-

separaela.Achasquealgumavezdeixarásdeestarzangadaporcausadela?Passaramtrêsanos.Achoquesim.Issonãorespondeàpergunta.Maurabaixouosolhos.Tu tivesteumcaso.Era inevitávelqueeumezangasse.Eraaúnica

maneira.Aúnicamaneira?Deeutedeixar.Deeuconseguirpassarsemti.Victor aproximou-se dela. Pôs-lhe as mãos nos ombros, com um

gestoafectuosoeíntimo.Nãoqueroquepassessemmimdisseele.Mesmoqueissoimplique

odiares-me.Pelomenos,signi icaquesentesalgumacoisa.Oquemaismeincomodaria era que te afastasses pura e simplesmente. Quedemonstrassesfriezaemrelaçãoatudo.

Éaúnicamaneiraqueconheçodeenfrentarasituação,pensouela,quandoeleaabraçou.Quandoarespiraçãodele lheaqueceuocabelo.Hámuito tempo que ela aprendera a reprimir todas estas emoções que aconfundiam.Eramtãodiferentesumdooutro!OexuberanteVictorcasadocom a Rainha dos Mortos. Porque lhes passara pela cabeça que aquelarelaçãoresultaria?

Porque eu desejava este calor, esta paixão. Eu queria o que eupróprianuncaconsigoser.

OtelefonecomeçouatocareasmãosdeVictorimobilizaram-senosombrosdela.Afastou-seedeixou-adesejosadoseucalor.Mauralevantou-seefoiatenderotelefoneàcozinha.Aoolharparaovisordeidenti icação,percebeu que essa chamada iria obrigá-la a sair outra vez nessa noite, aenfrentar a neve. Enquanto falava com o detective e dava as suasinstruções, reparou que Victor abanava a cabeça com um ar resignado.Nessanoite,elaerachamadaacumpriroseudevereeleseriapreterido.

Desligou.Desculpa,mastenhodesair.OExterminadorImplacávelchama-te?Houve um homicídio em Roxbury. Estão à minha espera. Victor

acompanhou-aatéàporta.Gostavasqueeufossecontigo?

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Paraquê?Paratefazercompanhia.Acredita que estarei muito acompanhada no local do crime. Victor

espreitouláparafora,pelajaneladasala.Onevãocontinuava.Anoitenãoestánadaboaparaconduzir.Nemparatinemparamim.Maura inclinou-separa calçar as botas. Congratulou-se por ele não

lheveracaraquandoacrescentou:Nãoprecisasdevoltarparaohotel.Porquenãoficascá?Passarcáanoite?Seria mais conveniente para ti. Podes fazer a cama no quarto de

hóspedes.Éprovávelqueeumedemorealgumashoras.OsilênciodeVictorfê-lacorar.Semolharparaele,Mauraabotoouo

casaco.Derepente,ansiosaporfugirdali,abriuaportadarua.Eouviu-odizer:FicoàtuaesperaAs luzes azuis faiscavam através da neve que caía. Maura parou

mesmo atrás de umdos carros-patrulha, e aproximou-se dela um agentecom o rosto meio escondido pela gola levantada, como uma tartarugarecolhida na sua carapaça. Maura abriu a janela e piscou os olhos,encandeadacomaluzdalanternadele.Aneveentrou,espalhando-sepelopainel.

SouadoutoraIsles,doInstitutodeMedicinaLegaldisseela.Muitobem,podeestacionaraqui,minhasenhora.Ondeestáocorpo?Lá dentro. O agente apontou a lanterna para um prédio do outro

ladodarua.Aportaprincipalestáfechadaacadeado.Temdeentrarpelobeco. Não há luz, portanto tome cuidado. Vai precisar da sua lanterna. Obecoestácheiodecaixotesedelixoamontoado.

Maura saiu do carro ao encontro de uma cortina de renda branca.Nessa noite estava preparada para o tempo e agradecida por ter os pésquentes e secos dentro das botas Thinsulate. Na rua, a camada de neveatingia pelo menos quinze centímetros, mas os locos eram macios epenugentosenãoofereciamresistência.

Ao entrar no beco, Maura acendeu a lanterna e viu uma zonavedada pela polícia com ita amarela quase coberta por uma camadabranca de neve. Ao passar por cima da ita, desencadeou uma chuva delocos.Obecoestavaobstruídoporváriosmontesamorfosdisfarçadospelaneve. A bota de Maura embateu em qualquer coisa sólida e ouviu-se o

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tilintardegarrafas.Obecoerautilizadocomovazadourode lixo,eMauraperguntou a si mesma o que estaria escondido debaixo daquele tapetebranco.

Bateuàportaeexclamou:Estáalguém?Souamédica-legista.A porta abriu-se e alguém lhe apontou uma lanterna aos olhos.

Mauranão conseguiuverohomemqueaempunhava,mas reconheceuavozdodetectiveDarrenCrowe.

Olá,doutora.Bem-vindaàcidadedasbaratas.O focode luzdesviou-sedacaradelaeMauradistinguiua silhueta

do detective, de ombros largos e um pouco ameaçadores. Era um dosdetectives mais novos da Brigada de Homicídios, e sempre que elatrabalhava num caso com ele sentia-se no cenário de um espectáculo detelevisão,emqueCroweeraaestreladasérie,umprotagonistadecabelosecocomsecadorecomumarpetulanteecheiodesi.AúnicacoisaqueoshomenscomoCrowerespeitavamnumamulhereraopro issionalismofrio,e era o que ela lhe mostrava. Os elementos masculinos do Instituto deMedicina Legal podiam brincar com Crowe, mas ela não; as barreirastinhamdesermantidaseoslimitesde inidos,casocontrárioelearranjariaumaformademinaraautoridade.

Mauracalçouas luvaseasprotecçõesparaos sapatoseentrounoprédio. Ao apontar a lanterna para o interior, viu umas super íciesmetálicasquesere lectiamnela.Umfrigorí icoenormeeváriasbancadas.Umfogãoindustrialeváriosfornos.

Antigamente,istoeraorestauranteitalianoMamaCortinasexplicou Crowe. Até que aMama abandonou o negócio e isto foi à

falência.Oprédiofoiinterditadohádoisanoseasentradasforamfechadasa cadeado. Parece que a porta do beco foi arrombada há algum tempo.Todoesteequipamentodecozinhavaia leilão,masnãoseiqueméqueoquer.Estánojento.Croweapontouofocodalanternaparaosqueimadoresagás,ondeagorduraacumuladaduranteanosformaraumacrostanegra.Asbaratasrugiramdaluz.

Istoestácheiodelas.Ficamdeliciadascomestagorduratoda.Queméquedescobriuocorpo?Um dos nossos colegas da Divisão de Narcóticos. Andavam a fazer

umabuscanestazona.Osuspeitofugiueelesjulgavamqueeletinhavindopara aqui. Repararam que a porta tinha sido arrombada. Entraram àprocura do patife e tiveram uma grande surpresa. Crowe apontou alanterna para o chão. Há algumas marcas de arrastamento aqui no pó.

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Como se o criminoso tivesse arrastado a vítima por aqui. O detectivedesviouofocoparaooutroextremodacozinha.Ocorpoestádaquelelado.Temosdeatravessarasaladejantar.

Jáfilmaramisto?Já. Tiveram de trazer dois pacotes de pilhas para conseguirem luz

suficiente.Jáasgastaram.Éporissoqueistoaquiestáumpoucoescuro.Maura entrou na cozinha atrás dele, com os braços agarrados ao

corpoparanãotocaremnada.Comoseelaquisesse...Ouviaumrestolharàsuavoltanassombras,epensouemmilharesdepernasdeinsectosasubirpelasparedeseagarradosao tectosobreacabeçadela.Podiaserestóicaem relação ao sangue e ao grotesco, mas os insectos causavam-lhe umaverdadeirarepugnância.

Ao entrarna sala de jantar, sentiu os cheiros que estavam sempreassociados às traseiras dos velhos restaurantes: a couves e a cervejaretardada.Mas aqui havia algomais, umodor terrivelmente familiar quelhe acelerou a pulsação. Era o motivo da sua visita e despertou-lhecuriosidadeemedo.

ParecequeandaramporaquialgunsvadiosdisseCrowe,apontandoalanternaparaochão,ondeelaviuumcobertorvelhoepilhasdejornais.E também há aqui umas velas. Ainda bem que não pegaram fogo a isto,comestelixotodo.

Ofocodalanternaincidiunummontedeembalagensdecomidaedelatas vazias.Dois olhos amarelados itaram-nos do cimodomonte de lixoeraumaratazana,corajosa,atrevidaaté,queosdesafiavaaavançar.

Ratosebaratas.Comestabicharada toda,oque restariadocorpo?interrogou-seMaura.

Está ali ao canto. Com uma con iança atlética, Crowe passou pelomeio das mesas e das cadeiras empilhadas. Mantenha-se deste lado. Háumaspegadasqueestamosafazeropossívelporconservar.Alguémpisousanguedocadáver.Elasterminammaisoumenosaqui.

Croweencaminhou-aparaumpequeno corredor.Deumaporta aofundosaíaumaluzténue.Vinhadacasadebanhodoshomens.

Adoutoraestáaqui!gritouCrowe.Apareceu mais um foco de luz à porta. Jerry Sleeper, o colega de

Crowe, saiu da casa de banho e acenou a Maura com a mão enluvada.SleepereraodetectivemaisvelhodaBrigadadeHomicídios,esemprequeMauraoviaparecia-lhequeeletinhaosombrosumpoucomaiscurvados.Perguntou a simesma até que ponto o desalento de Sleeper se icaria adeveràcompanhiadeCrowe.Nemasabedorianemaexperiênciapodiam

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sobrepor-seaodinamismodajuventude,ehámuitoqueSleepercederaocontrolodassituaçõesaoseuarrogantecolega.

NãoéumacenabonitadeseverdisseSleeperAindabemquenãoestamosemJulho.Nemqueropensarnocheirosenãoestivessetantofrioaquidentro.

Croweriu-se.ParecequealguémestádepartidaparaaFlorida.Tenho láumbeloapartamento.Ficaaumquarteirãodapraia.Hei-

depassarodiainteirodecalçõesdebanho.Semmepreocuparcomnada.Praias quentes, pensou Maura. Areia ina. Quem não gostaria de

estarlánessemomento,emvezdeestarnestecorredorpequenoeescuro,iluminadoapenasportrêslanternas?

Étudoseu,doutoradisseSleeper.Maura dirigiu-se para a porta. O foco da lanterna iluminou um

pavimento sujo, demosaicos pretos e brancos dispostos em xadrez, ondeseviampegadasesangueseco.

Mantenha-se encostada à parede aconselhou Crowe.Maura entrouna sala e recuou instantaneamente, assustada com algo amexer-se juntodosseuspés.

Céus!exclamouela,comumrisoassustado.Pois, essas ratazanas parecem coelhos disse Crowe. E têm-se

banqueteadoàgrandeaquidentro.Mauraviuumacaudaadeslizarporbaixodeumacabinedacasade

banho e pensou na velha fábula urbana em que as ratazanasatravessavamoscanosdeesgotoesubiampelassanitas.

Apontando lentamentea lanterna,viudois lavatórios sem torneiraseumurinol,cujoraloestavaentupidocomlixoepontasdecigarro.Por im,avistou o corpo nu, deitado de lado junto do urinol. Osmalares expostosdestacavam-se no meio do cabelo preto desgrenhado. Os roedores játinhamatacadoaquelaabundânciadecarnefresca,enotóraxdistinguiam-seváriasmordedurasde rato.Masnão foramosestragoscausadospelosdentes a iados quemais horrorizaramMaura; foi o tamanhodiminuto docorpo.Umacriança?

Maura agachou-se junto do corpo, que jazia com a face direitaencostada ao chão. Ao aproximar-se, reparou nos seios completamentedesenvolvidos; a inal, não era uma criança, como ela pensava, mas umamulher de pequena estatura, cujas feições não se distinguiam. Osnecrófagos tinham-se banqueteado avidamente com a face esquerdaexposta, devorando a pele e até a cartilagem nasal. A pele que ainda

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restavanotóraxestavafortementepigmentada.Amulherseriahispânica?,interrogou-seMaura, iluminando os ombros ossudos e a espinha nodosado cadáver. No tórax nu, viam-se nódulos escuros, quase arroxeados. Naancaenanádegaesquerdahaviamaislesões.Aterrívelerupçãoestendia-seàcoxa,àcanelaeao...

Ofocodalanternaparounotornozelo.MeuDeus!exclamouMaura.Faltava o pé esquerdo. O tornozelo terminava num coto, cuja

extremidadeestavanegradevidoaoestadoadiantadodedecomposição.Maura apontouo focode luzparao outro tornozelo e viumais um

coto.Tambémfaltavaopédireito.AgoraverifiqueasmãosdisseCrowe,queseaproximaradela.Oagentedirigiuo feixede luzda sua lanternaparaosbraços,que

estavamescondidospelasombradotórax.Em vez das mãos, Maura viu dois cotos, cujas extremidades

esfrangalhadasostentavamasmarcasdosdentesdosroedores.Recuou,petrificada.Também não foram os ratos que izeram esse trabalho observou

Crowe.Mauraengoliuemseco.Poisnão.Sãoamputações.Acha que ele fez uma coisa dessas com ela ainda viva? Maura

examinouosmosaicosmanchadoseviuapenaspequenaspoçasnegrasdesanguesecojuntodoscotos,semsalpicos.

Não havia pressão arterial quando estes cortes foram feitos. Aspartes foram removidas após amorte. Amédica olhou para Crowe. Vocêencontrou-as?

Não.Elelevou-as.Sabe-seláporquê...Há um motivo lógico para isso atalhou Sleeper. Agora não temos

impressõesdigitais.Nãopodemosidentificá-la.Seelepretendiaocultaraidentidadedela...Mauracontemplouaface

do cadáver, obrilhodoosso, e estremeceu, horrorizada.Tenhodevirá-laaocontrário.

Tirou um lençol descartável do seu estojo e estendeu-o ao lado docorpo.Juntos,SleepereCrowetransferiramocadáverparacimadolençol.

Sleepersustevearespiraçãoeafastou-se.Oladodireitodafacequeestivera encostado ao chão icou à vista, assim comoumúnico ori ício debalanoseioesquerdo.

MasnãofoiaferidaprovocadapeloprojéctilquerepeliuSleeper.Foi

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o rosto da vítima, cujos olhos sem pálpebras pareciam itá-los. O ladodireitodaface,que icaraencostadoaochão,nãoforaatacadopelosdentesdos roedores, mas a pele desaparecera. O músculo exposto secara emestriascoriáceas,dasquaisemergiaumpedaçoamareladodomalar.

TambémnãoforamosratosquefizeramistocomentouSleeper.NãodisseMaura.Estalesãonãofoiprovocadapelosnecrófagos.Céus,maselearrancou-a?Comosearrancauma...Uma máscara. Mas aquela máscara não era de borracha nem de

plástico;eradepelehumana.Ele destruiu a face. E as mãos. Inviabilizou a identi icação disse

Sleeper.Masporque levouospés?perguntouCrowe. Issonão fazqualquer

sentido. Não é possível identi icar ninguém pelas impressões digitais dospés.Alémdisso,nãomeparecequealguémdessepelafaltadela.Amulherénegra?Latina?

Oque tema raça a ver como facto de alguémdar pela falta dela?perguntouMaura.

Eu só quero dizer que ela não é uma dona de casa dos subúrbios.Casocontrário,porqueviriapararaestebairro?

Maura levantou-se, sentindo uma repugnância tão forte por Crowequetevedi iculdadeemmanter-seaoladodele.Examinouadivisãocomalanternaeviudiversoslavatórioseurinóis.

Hásangueaqui,naparede.EudiriaqueeleamatouaquimesmodisseCrowe.Arrastou-apara

aqui,atirou-acontraaparedeepuxouogatilho.Depois,fezasamputações,mesmoaquiondeelacaiu.

Maura olhou para o sangue nos mosaicos. Eram apenas algumasmanchas, porque nessa altura a vítima já estava morta. O coração tinhadeixadodebater,debombear.Elanãosentiranadaquandooassassinoseagachara a seu lado e lhe enterrara a lâmina nos pulsos, procurando asarticulações. Cortara-lhe a carne e arrancara-lhe a pele da face como seesfolasseumurso.Equandoacabaraderecolherosseustrofeus,deixara-a ali, como se ela fosse uma carcaça sem préstimo, uma oferta aosnecrófagosqueinfestavamaqueleprédioabandonado.

Passadosunsdias,semroupasqueimpedissemainvestidadosseusdentesafiados,osroedorestinhamchegadoaosmúsculos.

Ummêsdepois,aosossos.MauraolhouparaCrowe.Ondeestãoasroupasdela?

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Sóencontrámosumsapato.Umténis,tamanhoquatro.Achoqueeleodeixoucairquandoiaasair.Estavanacozinha.

Tinhasangue?Tinha.Salpicosdesanguenapartedecima.Mauraolhouparaocotoemquedeviaestaropédireito.Então,foiaquiqueeleadespiu.Houveabusosexualdecadáver?perguntouSleeper.Croweriu-se.Queméque temvontadede comerumamulher comestaporcaria

toda na pele? Que erupção é essa, a inal? Não é contagiosa, pois não?Pareceumaespéciedevaríola.

Não, estas lesões parecem crónicas, e não agudas. Reparem quealgumastêmcrostas.

Bem, não compreendo que alguém quisesse sequer tocar-lhe, emuitomenoscomê-la.

TudoépossíveldisseSleeper.OutalvezeleatenhadespidosóparaexporocadáverdisseMaura.

Paraacelerarasuadestruiçãopelosroedores.Porquehaviaelededar-seaotrabalhodelevarasroupas?Talvezfossemaisumamaneiradeocultaraidentidadedela.Acho que ele as levou propositadamente observou Crowe. Maura

olhouparaele.Porquê?Pelomesmomotivo que levou asmãos, os pés e a cara. Ele queria

recordações. Crowe olhou para Maura. Naquela semiobscuridade, odetective pareceu-lhe mais alto. Ameaçador. Acho que o nosso homem éumcoleccionador.

A luz do alpendre estava acesa;Maura avistou o clarão amareladoatravésdacortinadeneve.Asuacasaeraaúnicaemquesevialuzàquelahora. Em muitas outras noites, quando ela chegava, já os candeeirostinhamsidoacesos,nãopormãoshumanas,masportemporizadores.Estanoite,háalguémqueestáàminhaespera,pensou.

Reparou então que o carro de Victor já não estava estacionado àfrente da casa. Ele foi-se embora, pensou. Vou entrar numa casa vazia,comodecostume.Aluzdoalpendre,quelhetinhaparecidotãoacolhedora,mostrava-seagorafriaeanónima.

Teve uma sensação de vazio e de desapontamento ao virar para arampadeentrada.Oquemaisa incomodavanãoerao factodeelese teridoembora;eraasuaprópriareacção.Passeiumserãocomeleecáestoueucomohátrêsanos,indecisa,comaminhaindependênciaaesboroar-se,

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pensou.Accionou o controlo remoto da porta da garagem.A porta abriu-se

com ruído, e Maura soltou uma risadinha nervosa ao ver o Toyota azulestacionadonoespaçodoladoesquerdo.

Afinal,Victorguardaraocarronagaragem.Maura parou ao lado do Toyota alugado, e quando a porta da

garagem se fechou atrás dela deixou-se icar sentada durante algunsinstantes, bem ciente da sua pulsação acelerada, da expectativa que lherevolviaasentranhascomosefosseumadroga.Emdezsegundos,passarado desespero ao júbilo. Fez um esforço para recordar que nadamudaraentreeles.Quenadapodiamudarentreeles.Saiudocarro,respiroufundoeentrouemcasa.

Victor?Nãoteveresposta.Deuumaolhadela à sala; depoispercorreuo corredor e entrouna

cozinha.Aschávenasdecaféestavamlavadasearrumadas.Nãohaviaumúnico vestígioda visitadele.Maura foi espreitar osquartos e o escritórionadadeVictor.

Só quando voltou à sala é que lhe viu os pés, devidamenteprotegidos com peúgas brancas, a saírem de uma extremidade do sofá.Ficou ali a vê-lo dormir, com um braço inerte, o rosto tranquilo. Não eraesteoVictordequeelase lembrava,ohomemcujaspaixõesvulcânicasatinham atraído e depois repelido. O que ela recordava do casamento deamboseramasdiscussões, as feridasprofundasque sóumamantepodein ligir.Odivórciodistorceraasrecordaçõesqueguardavadele,tornando-o mais obscuro, mais irritado. Ela fomentara essas recordações,alimentara-se delas durante tanto tempo que o facto de o ver agora,desprevenido,despertavanelaummistodereconhecimentoedesurpresa.

Eucostumavaobservar-teenquantodormias.Euamava-te.Foibuscarumcobertoraoarmárioetapou-o.Preparava-separalhe

acariciarocabelo,masamãoimobilizou-sesobreacabeçadele.Victortinhaosolhosabertoseobservava-a.Estásacordadodisseela.Eunãoqueriaadormecer.Quehorassão?Duasemeia.Elegemeu.Euia-meembora...Podesficar.Estáanevarimenso.Metiocarronagaragem.Esperoquenãoteimportes.Olimpa-neves

vinhaachegar...

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E rebocavam-te o carro, se não o tirasses dali. Maura sorriu eacrescentoucomternura:

Dorme.Olharamumparaooutro.Apanhadaentreodesejoeadúvida,não

dissenada,sabendoquaisseriamasconsequênciasdeumaopçãoerrada.Deviamestarambosapensarnamesmacoisa:queoquartoeraaofundodo corredor. Bastavam uns passos, um abraço, e lá estaria elamais umavez,deregresso.Numrefúgioquelhecustaratantoaconquistar.

Mauralevantou-se,umactoquelheexigiuumesforçoenorme,comosetentasselibertar-sedeareiasmovediças.

Atéamanhãdisseela.Teriasidodesapontamentooqueviunoolhardele?Mauranãopôde

deixardesentirumacertasatisfaçãocomestahipótese.Já deitada na cama, não conseguia dormir, sabendo que ele estava

debaixodomesmotecto.Dotectodela,doterritóriodela.EmSãoFrancisco,tinham vivido na casa que ele já possuía quando se casaram, e Mauranunca a sentira verdadeiramente como sua.Nessanoite, a situação era ainversa, e era ela que a controlava. O que acontecesse a seguir seria oresultadodeumadecisãosua.

Ashipótesesatormentavam-na.Só quando acordou, sobressaltada, é que percebeu que tinha

adormecido.Jáseviaaluzdodiaatravésdajanela.Mauradeixou-se icarnacama, semsaberoquea tinhaacordado.Semsaberoque iriadizeraVictor.Então,ouviuaportadagaragemaabrir-seeoruídodeummotornasuarampa.

Levantou-seeespreitoupela janela,mesmoatempodeverocarrodeVictoraafastar-seeadesaparecernaesquina.

OitoJane Rizzoli acordou cedo. Ainda não se ouvia barulho na rua; o

trânsitomatinal ainda não tinha começado em força. Jane deixou-se icarna penumbra, a pensar: vá lá, tem de ser. Não podes en iar a cabeça naareia.

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Acendeualuzesentou-senabeiradacama,nauseada.Apesardeoquartoestarfrio,elaestavaasuaretinhaaT-shirtcoladaàsaxilas.

Eratempodeenfrentararealidade.Descalça,entrounacasadebanho.Aembalagemestavaemcimada

bancada,ondeelaadeixarananoiteanterior,paraquenãoseesquecessedeutilizá-lademanhã.Comoseissofossepreciso...Abriuacaixa,rasgouoinvólucrode papel de alumínio e retirou a vareta de teste.Na véspera, ànoite, lera as instruções várias vezes e praticamente memorizara-as.Mesmoassim,leu-asmaisumavez.Adiandoumpoucomaisomomentodaverdade.

Por im,sentou-senasanita.Comavaretanomeiodascoxas,urinou,embebendoapontacomumasgotasdaprimeiraurinadamanhã.

Esperoudoisminutos,seguindoasinstruções.Pousou a vareta na bancada e foi à cozinha. Encheu um copo de

sumodelaranja.Amesmamãoqueeracapazdeagarrarnumaarmaededispararváriostirostremeuquandoelapegounocopodesumoeolevouàboca.Olhouparao relógiodacozinha, sem tirarosolhosdomovimentocircularbruscodoponteiromaior.Sentiuopulsoaceleradoquandoosdoisminutoschegaramao im.Nuncaforacobarde,nuncadeixaradeenfrentaro inimigo, mas estemedo era diferente, íntimo e persistente. Omedo deque pudesse tomar a decisão errada e passasse o resto da vida a sofrerporcausadisso.Comosdiabos,Jane.Vaiemfrente!

Subitamenteirritadaconsigoprópria,revoltadacomasuacobardia,pousouocopodosumoevoltouparaacasadebanho.Nemsequerparouàportaparaseorientar;foidireitoàbancadaepegounavaretadeteste.

Não precisou de ler as instruções para perceber o que signi icavaaquelalinharoxa.

Nemselembravadeterregressadoaoquarto.Deuconsigosentadana cama, com a vareta na mão. Nunca gostara de roxo; era uma cordemasiado feminina e vistosa. Agora, só de olhar para ela tinha vómitos.Julgavaqueestavapreparadaparao resultado,masnãoestava.Tinhaaspernasdormentesporterestadosentadadurantemuitotemponamesmaposição, mas aparentemente não conseguia mexer-se. Até o cérebrobloqueara,afectadopelochoqueepelaindecisão.Nãoconseguiapensarnoque havia de fazer. A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi infantil ecompletamenteirracional.

Queroaminhamãe.Tinhatrintaequatroanoseeraindependente.Arrombaraportasao

pontapé e capturara assassinos. Matara um homem. E estava ali,

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subitamentedesejosadeabraçaramãe.Otelefonetocou.Olhou para ele, confusa, como se não o reconhecesse. Ao quarto

toque,atendeu.Olá, ainda estás em casa? perguntou Frost. A equipa já está toda

aqui.Fez um esforço para se concentrar nas palavras dele. A equipa. O

lago.Virou-se,olhouparaorelógioquetinhaàcabeceirae icouadmiradaaoverquejáeramoitoeumquarto.

Rizzoli? Eles estão prontos para começar a dragagem. Queres queavancemos?

Quero.Nãomedemoro.Desligou.Osomdoauscultadorapousarnodescansopareceu-lheo

estalardosdedosdeumhipnotizador.Findoo transe, endireitou-se.Maisumavez,oseutrabalhoexigiaasuaatençãototal.

Atirouavaretaparaocontentordo lixo.Emseguida,vestiu-see foitrabalhar.

ASenhoradosRatos.Depoisdeumavidainteira, icamosreduzidosa isto,pensouMaura

quando viu o cadáver estendido sobre amesa de autópsias, com os seushorroresescondidosporbaixodeumlençol.Nãotensnome,nãotensrostoe a tua existência reduz-se a três palavras que só realçam a indignidadecomqueacabouatuavida.Comidapararatos.

Fora Darren Crowe que alcunhara o cadáver na noite anterior,enquanto eles ali estavam, rodeados de vermes que se deslocavam naescuridão.Lançaraaalcunhaaoacaso,napresençadaequipaderesgatedamorguee,namanhãseguinte,quandoMauraentraranoseugabinete,já o pessoal tratava a vítima por Senhora dos Ratos.Maura sabia que setratava apenas de uma alcunha adequadapara umamulher quepoderiachamar-se, por exemplo, Jane Doe, mas não pôde deixar de estremecerquandoouviuodetectiveSleeperpronunciá-la.É assimque superamosohorror,pensouela.Quelidamoscomasvítimaspertodenós.Referimo-nosaelasusandoumaalcunha,umdiagnósticoouonúmerodeumprocesso.Destemodo,elasnãoparecempessoase,porconseguinte,odestinodelasnãoconsegueafectar-nos.

Maura levantou a cabeça quando Crowe e Sleeper entraram nolaboratório.Sleeperestavaexaustodevidoaoesforçodanoiteanterior,ealuzintensadasaladeautópsiasrealçava-lhecruelmenteosolhospapudose as bochechas lácidas. A seu lado, Crowe parecia um jovem leão,

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bronzeado, apto e con iante. Crowe não era uma pessoa que alguémquisesse humilhar; sob a capa da arrogância, escondia-se em geral acrueldade. Ele observava o cadáver com um esgar de repugnância. Aautópsiaqueiacomeçarnãoseriaagradável,eatéCrowepareciaencará-lacomumacertaagitação.

Asradiogra iasestãoprontasdisseMaura.Vamosexaminá-lasantesdecomeçarmos.

Atravessou a sala e accionouum interruptor.O visor iluminou-se erevelou imagens fantasmagóricas das costelas, da espinha e da pélvis.Viam-se estilhaçosmetálicos espalhados pelo tórax, como uma galáxia deestrelasnospulmõesenocoração.

IstopareceumcartuchodecaçacomentouSleeper.Foioqueeupensei,aoprincípiodisseMaura.Massevocêreparar

aqui,aoladodestacostela...Estáaverestasombraopaca?Quaseseperdenocontornodacostela.

Uminvólucrometálico?alvitrouCrowe.Éoquemeparece.Entãoistonãoéumcartuchodecaça.Não. Parece uma Glaser. A avaliar pelo número de projécteis que

vejo aqui, o mais provável é tratar-se de uma Glaser de ponta azul. Uminvólucrodecobrecomdozechumbos.

UmabaladotipoGlaser,destinadaaprovocarumalesãomuitomaisdestruidora do que uma bala convencional, atingia o alvo e só depois doimpactoéquesefragmentava.Mauranãoprecisavadeabrirotóraxparasaber que as lesões causadas por aquele único projéctil eramdevastadoras.

Retirou as radiogra ias do tórax e pendurou outras duas. Estasimagenseramdecertomodomaisperturbadoras,devidoàquiloque lhesfaltava.Mostravamo antebraço direito e esquerdo.O rádio e o cúbito, osdois ossos compridosdo antebraço, estendiam-sedesdeo cotovelo até aopulso, onde se juntavam aos densos ossos cárpicos. Mas neste caso,terminavamabruptamente.

Amãoesquerdafoidesarticuladaaqui,precisamentenaarticulaçãoentre a apó ise estilóide do rádio e o escafóide disse ela. O assassinoretirou todos os ossos cárpicos e amão.Até se vêemalgumasmarcas docorte,nasoutrasradiogra ias,ondeeleraspouapontadaapó iseestilóide.Ele cortou-lhe amão exactamente noponto emque os ossos do braço seligam aos do pulso. Maura apontou para a outra radiogra ia. Agorareparem na mão direita. Aqui, ele não foi tão perfeito. Não cortou

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exactamente a articulação do pulso e, quando amputou a mão, deixou oosso curvo. Vê-se como a faca fez aqui um corte. Parece que ele nãoconseguiuencontraraarticulaçãoeacabouporcortaràvolta,àscegas.

Entãoestasmãosnãoforamamputadas,digamos,comummachadodisseSleeper.

Não.Istofoifeitocomuma"faca.Elecortou-lheasmãostalcomonósdesconjuntamosumfrango.Dobramosapernaparaexporaarticulaçãoedepoiscortamososligamentos.Destemodo,nãotemosdeserraroosso.

Sleeperfezumesgar.Achoquenãovoucomerfrangoestanoite.Quetipodefacaéqueeleusou?perguntouCrowe.Tantopodetersidoumafacadedesossarcomoumbisturi.Ocotojá

foi demasiado mordido pelos ratos, o que nos impede de examinar aextremidadedaferida.Teremosde ferverostecidosmoleseexaminarasmarcasdocorteaomicroscópio.

AchoquetambémnãovoucomersopaestanoitedisseSleeper.Croweolhouparaabarrigagrandedocolega.Deviasviràmorguemaisvezes.Talvezperdessesessepneu.Emvezdepassaravidanoginásio?ripostouSleeper.Mauraolhouparaele,surpreendidacomareacção.AtéSleeper,em

geraltãoafável,podiacansar-sedocolega.Crowe limitou-se a rir, indiferente à irritação que despertava nas

outraspessoas.Olha,quandoestiveresprontoa inchar,dacinturaparacima,claro,

podesvirtercomigo.Háoutrasradiogra iasinterpôsMaura,retirandoaspelículascoma

eficiênciadeumaprofissional.Yoshima entregou-lhe as seguintes, que ela colocou no visor.

Mostravam a cabeça e o pescoço da Senhora dos Ratos. Na véspera, aoolharparao rostodocadáver,Mauraviraapenas carnecrua, aindamaisdevastada pelos necrófagos esfomeados. Mas, por baixo da carnearrancada, os ossos faciais estavam misteriosamente intactos, excepto aextremidadedoossonasal,queforaremovidaquandooassassinolevaraoseutrofeu.

FaltamosdentesdafrenteobservouSleeper.Achaqueeletambémoslevou?

Não. Estas parecem ser alterações atró icas. E é isso que mesurpreende.

Porquê?

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De um modo geral estas alterações estão associadas à idadeavançadaeaumamádentição.Mas istonão seaplicaaumamulherquepareciaserrelativamentenova.

Comopodefazeressaafirmaçãoseacaradeladesapareceu?As radiogra ias da espinha não revelam indícios de alterações

degenerativasqueemgeralsãovisíveiscoma idade.Elanão temcabelosbrancos,nemnacabeçanemnopúbis.Enãotemarcossenisnosolhos.

Queidadecalculaqueelativesse?Eudiriaqueelanãotinhamaisdequarentaanos.Mauraolhoupara

as radiogra ias que estavam no visor. Mas estes raios X são maisconsistentes com uma mulher de idade avançada. Nunca vi umareabsorçãoósseatãoacentuadaemninguém,emuitomenosnumamulhernova. Ela não seria capaz de usar uma dentadura, mesmo que pudessecomprá-la. É óbvio que esta mulher não tinha o menor cuidado com osdentes.

Entãoteremosdecompararcomradiografiasdentárias.Apostoque estamulhernão ia aodentista hámuitos anos. Sleeper

suspirou.Não há impressões digitais. Não há cara. Não há radiogra ias

dentárias. Nunca conseguiremos identi icá-la, e talvez fosse esse oobjectivodoassassino.

Masissonãoexplicaomotivoqueolevouaamputar-lheospésdisseMaura, sem tirar os olhos do crânio anónimo que o visor lhe mostrava.Acho que ele fez isto por outrosmotivos. Poder, talvez. Raiva. Quando searrancaafaceaumamulher,nãoselevaapenasumarecordação.Rouba-seasuaprópriaessência.Rouba-se-lheaalma.

Pois bem, ele utilizou o último recurso atalhou Crowe. Quem é quequeria uma mulher sem dentes e com a pele cheia de feridas? Se aintençãodeleeracoleccionarcaras,bempodiaarranjarumamelhorparaexpornaconsoladalareira.

Talvez ele esteja apenas a começar disse Sleeper em voz baixa.Talvezestanãosejaaprimeiraqueelemata.

Mauravirou-separaamesadeautópsias.Vamoscomeçar.EnquantoSleepereCrowepunhamasmáscaras,elaretirouolençol

e foi atingida por um cheiro intenso a putrefacção. Na noite anterior,medira os níveis de potássio através do humor vítreo e concluíra que avítimamorrera cerca de trinta e seis horas antes de ter sido descoberta.Aindaexistiarigormortis,enãofoifácilmanipularosmembros.Apesarde

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estar um frio gélido no local do crime, a decomposição já começara. Asbactériastinhaminiciadooseutrabalho,destruindoasproteínasecriandobolsas de ar. A baixa temperatura atrasara, mas não interrompera, oprocessodedecomposição.

Embora Maura já tivesse visto aquele rosto desfeito, sentiu umsobressaltoaocontemplá-lodenovo,aoverasmuitas lesõesnapeleque,soba luz intensa,pareciamnódulosescurose in lamados,realçadospelasmordeduras dos ratos. Naquele cenário de pele destruída, a feridaprovocada pela bala parecia insigni icante nãomais do que um pequenoori ício do lado esquerdo do esterno. As balas Glaser destinavam-se aminimizaroefeitodericocheteeaprovocaromáximodelesõesassimqueentravam no corpo. À penetração seguia-se a explosão dos grãos dechumbo que se encontravam no interior do cartucho de cobre. Aquelapequenaferidanãoeranadaemcomparaçãocomadestruiçãocausadanointeriordotórax.

Então o que é esta erupção de pele? perguntou Crowe. Mauraconcentrou-se nas zonas não afectadas pelos dentes dos roedores. Osnódulosarroxeadosestavamespalhadospelotroncoepelasextremidadesealgunstinhamcrostas.

Não sei o que é isto disse ela. Parece ser uma afecção sistémica.Podeserumareacçãoaummedicamento.Podeserumamanifestaçãodecancro.Maurahesitou.Oupodeserdeorigembacteriana.

Querdizer...Infecciosa?perguntouSleeper,dandoumpassoatrás.Foipor issoquevosaconselheiausaremmáscara.Maurapassouo

dedo por uma das lesões com crostas, o que provocou uma descamaçãoesbranquiçada.

Isto lembra-me um pouco a psoríase. Mas a distribuição não é domesmotipo.Emgeral,apsoríaseafectasobretudooscotoveloseosjoelhos.

Masnãohá tratamentopara isso?perguntouCrowe.Eu costumavaveroanúncionatelevisão.Otormentodapsoríase.

Éumaafecçãoin lamatóriae,comotal,reageacremesesteróides.Aterapiaporradiaçãoultravioletatambémajuda.Masreparemnadentiçãodela. Esta mulher não tinha dinheiro para pagar cremes caros nemconsultasmédicas.Seforpsoríase,nuncafoitratada.

Mas que sofrimento que isto lhe deve ter causado, sobretudo noVerão,pensouMaura.Mesmonosdiasmaisquentes,eladeviausarcalçaseblusasdemangacompridaparaesconderaslesões.

NãosóoassassinoescolheumavítimasemdentescomolheesfolaapeledacaradestamaneiracomentouCrowe.

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Apsoríasetendeapouparaface.Achaque issoé signi icativo?Talvezele só tenha cortadoaspartes

docorpoemqueapeleestavasã.Não sei disseMaura. Não consigo perceber o que pode ter levado

alguémafazerumacoisadestas.Mauraconcentrou-senocotodopulsodireito.Atravésdacarne,via-

seoossoesbranquiçado.Osroedorestinhamabocanhadoaferidaaberta,destruindo as marcas do corte deixadas pela faca, mas a observação aomicroscópio da super ície do osso cortado poderia revelar ascaracterísticas da lâmina. Maura levantou o antebraço do cadáver paraexaminarapartedebaixodaferida,eumamanchaamareladachamou-lheaatenção.

Yoshima,dá-meapinça,porfavor?Oqueé?perguntouCrowe.Éumaespéciede ibracoladaàextremidadedaferida.Yoshimaera

tão silencioso nos seusmovimentos que a pinça apareceu como que porencantonamãodeMaura.Deslocandoalentesobreocotodopulso,Mauraretiroucomapinçaofragmentodacrostadesangueecarneressequidaedepositou-o no tabuleiro. Através da lente, viu um espesso rolo de ioamarelo-canário.

Édasroupasdela?perguntouCrowe.Parecedemasiadoásperoparaserderoupa.Talvezdeumtapete...Umtapeteamarelo?Nãoconsigoimaginá-lo.Maura depositou o io num saco que Yoshima já aprontara e

perguntou:Haviamaisalgumacoisanolocaldocrimequecondissessecomisto?NãohavianadaamarelorespondeuCrowe.Serácordaamarela?perguntouMaura.Talvezelelhetenhaatadoos

pulsos.Edepois levouascordas?SleeperabanouacabeçaQueestranho,o

tiposertãoasseado.Mauraolhouparaocadáver,pequenocomoodeumacriança.Elenemprecisavadelheatarospulsos.Teriasidofácildominá-la.Ecomodevia ter sidosimples tirar-lheavida!Unsbraços tão inos

comoaquelesnãopodiamoferecerresistênciadurantemuitotempoaumagressor,nemumaspernastãocurtas.

Jáfostetãoviolada,pensouMaura.Eagoraomeubisturivaideixarmaisumamarcanatuapele.

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Maura trabalhoucomumae iciência silenciosa, cortandoapeleeomúsculo.Acausadamorteeratãoevidentecomoosestilhaçosdebalaquesedestacavamna radiogra ia.Quando,por im, ela abriuo troncoe viuosacopericárdicointactoeasbolsasdehemorragianospulmões,não icouadmirada.

AbalaGlaserperfuraraotóraxeemseguidarebentara,espalhandoos estilhaços mortíferos pelo peito. O metal lacerara veias e artérias eperfuraraocoraçãoeospulmões.Eosangueentraranosacoqueenvolviao coração, comprimindo-o de tal maneira que ele não conseguia incharnembombear.Umtamponamentodopericárdio.

Amortetinhasidorelativamenterápida.Ouviu-seozumbidodointercomunicador.DoutoraIsles?Mauravirou-separaoaltifalante.Sim,Louise?AdetectiveRizzolinalinhaum.Podeatender?Mauradescalçouasluvaseaproximou-sedotelefone.Rizzoli?disseela.Olá,doutora.Parecequeprecisamosdesiaqui.Oquehá?Estamosnolago.Levámosumcertotempoaretirarogelo.Jáacabaramdedragar?Já.Encontrámosumacoisa.

NoveNo campo desabrigado soprava um vento cortante que fustigou o

casacoeocachecoldelãdeMauraquandoelasaiupeloportãodoclaustrodas traseiras e começou a dirigir-se para o grupo de polícias que aaguardavamàbeirado lago. Sobre aneve caída formara-seuma camadade gelo que estalava sob o peso das suas botas, como se fosse umacoberturadeaçúcar.Maurasentiuque todososolharesconvergiamparaela. As freiras observavam-na do portão e a polícia aguardava a suachegada.Eraoúnicovultoquesemexianaquelemantodebrancura,eno

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silênciodatardetodosossonspareciamampli icados,desdeorangerdasbotasatéàsuaprópriarespiraçãoofegante

Rizzolidestacou-sedogrupoefoiaoseuencontro.Obrigadaporvirtãodepressa.EntãoaNonitinharazãoquantoaolagodospatos.É verdade. Camille passava muito tempo aqui e não é de admirar

queselembrassedeutilizarolago.Ogeloaindaestámuito ino.Éprovávelque a camada se tenha formadoháumoudois dias.Rizzoli olhoupara aágua.Sóconseguimosàterceira.

Eraumlagoarti icialpequeno,umasuper ícielisa,ovaleescuraquenoVerãodeviare lectirasnuvens,océuazuleapassagemdasaves.Numdos extremos, destacava-se um tufo de amentilhos que pareciamestalagmites.Avoltadetodooperímetro,aneveestavapisadaemisturadacomlama.

À beira da água, via-se umapequena forma coberta por um lençoldescartável. Maura agachou-se ao lado dela e o detective Frost, com umesgar,afastou-o,revelandoasligaduras,cobertasdelama.

Parece que tempedras lá dentro disse Frost. Por isso é que foi aofundo. Ainda não as desatámos. Achámos que devíamos esperar pelasenhora.

Maura tirou as luvas de lã e calçou as de borracha, que não aprotegiamdo frio.Foi já comosdedosenregeladosque retiroua camadaexteriordegaze.Caíramduaspedrasdotamanhodeumamão.Acamadaseguinte também estava ensopada,mas não tinha lama. Era um cobertorde lãazul-claro.Umtomqueassociamosaumbebé,pensou.Umcobertorparaomanterquenteeemsegurança.

Já tinha os dedos dormentes e com poucamobilidade. Afastou umcanto do cobertor, apenas o su iciente para ver um pé. Pequeno, quasecomoodeumboneco,comapeleescuraeveiosazulados.

Nãoprecisoudevermaisnada.Voltouacobri-locomolençol.Levantou-seeolhouparaRizzoli.Vamos levá-lo directamente para a morgue. Lá faremos o resto.

Rizzoli limitou-se a fazer um gesto de cabeça e olhou em silêncio para opequenoembrulho.Asligadurasmolhadascomeçavamjáaendurecercomoventogelado.FoiavezdeFrostfalar:

Comoéqueelafoicapazdefazerumacoisadestas?Deatirarobebéàágua?

Maura tirou as luvas de borracha e en iou os dedos entorpecidosnas de lã. Pensou no cobertor azul-claro que envolvia o bebé. Lã quente,

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comoadassuas luvas.Camillepodia terembrulhadoobebénoutracoisaqualquer jornais, lençóis velhos, farrapos, mas optara por um cobertor,comosequisesseprotegê-lo,isolá-lodaáguafriadolago.

Afogar o próprio ilho! exclamou Frost. Não devia estar boa dacabeça.

Talvezacriançajáestivessemorta.Pois bem, então ela matou-o primeiro. Mesmo assim, devia estar

louca.Parajá,nãopodemostirarconclusões.Sódepoisdaautópsia.Maura

olhou para a abadia. Debaixo da arcada, três freiras, quemais pareciamalmaspenadasvestidasdenegro,observavam-nos.

JáfaloucomMaryClement?Rizzolinãorespondeu.Continuavadeolhos ixosnaquiloqueo lago

lhes entregara. Bastaram duas mãos para en iar o embrulho no sacoenormeecorrerofechocomumgestoeficiente.Osomfê-laestremecer.

Asirmãssabem?perguntouMaura.Porfim,Rizzoliencarou-a.Souberamoqueencontrámos.Devemterumaideiadequeméopai.Elasnegamatéapossibilidadedeelaestargrávida.Masaprovaestáaqui.Rizzoliesboçouumsorrisotrocista.Aféémaisfortedoqueaevidênciadosfactos.A fé em quê?, interrogou-se Maura. Na virtude de uma jovem?

Existiriaalgumcastelodecartasmaispericlitantedoqueafénacastidadehumana?

Calaram-sequandoosacofoi levado.Nãofoinecessáriotrazerumamaca; o servente recebera o saconos seus braços comamesma ternuradequemembalavaopróprio ilhoeatravessavaagora,desolado,ocampoventosoemdirecçãoàabadia.

O telemóveldeMauracomeçoua tocar,violandoosilêncio fúnebre.Elaabriu-oerespondeuserenamente:

DoutoraIsles.Desculpatersaídosemmedespedir,estamanhã.Maura sentiuque corava equeo coraçãopulsavaduasvezesmais

depressa.Victor.Eu tinha de chegar a tempo à minha reunião em Cambridge. Não

quisacordar-te.Esperoquenãopensesquefugideti.Poracaso,pensei.Podemosencontrar-nosmaistarde,parajantar?

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Elacalou-se,apercebendo-sederepentedequeRizzoliaobservava.Etambémdasuaprópriareacção ísicaàvozdeVictor.Opulsoacelerado,a alegria da antecipação. Ele já regressou à minha vida, pensou. E eu jáestouaponderarashipóteses.

Furtou-seaoolhardeRizzolierespondeuemvozbaixa:Não sei quando estarei despachada. Está a acontecer muita coisa

nestemomento.Podescontar-meoteudiaaojantar.Istoestáacomplicar-se.Tensdecomer,não importaaquehoras.Possoconvidar-te?Parao

teurestaurantepreferido?Maura respondeu demasiado depressa, com uma ansiedade

exagerada:Não. Encontramo-nos em minha casa. Vou fazer o possível por

chegarporvoltadassete.Nãoestouàesperaquecozinhesparamim.Então,serástuacozinhar.Eleriu-se.Quemulhercorajosa!Seeumeatrasar,podesentrarpelaportalateraldagaragem.Deves

calcularondeestáachave.Nãomedigasquecontinuasaescondê-lanaquelesapatovelho.Aindaninguémdescobriu.Atélogoànoite.Maura desligou, virou-se e veri icou que Rizzoli e Frost a

observavam.Umencontroexcitante?perguntouRizzoli.Na minha idade, já é uma sorte ter um encontro respondeu ela,

guardandootelemóvelnacarteira.Encontramo-nosnamorgue.Aoatravessarnovamenteocampo,seguindootrilhodanevepisada,

sentiu que eles continuavama observá-la. Foi com alívio que entrou peloportão das traseiras e se refugiou no interior dosmuros da abadia.Masassimquedeumeiadúziadepassosnopátio,ouviualguémachamá-la.

Virou-se e deparou com o padre Brophy a sair de uma porta. Opadre, uma igura solenevestidadepreto, dirigiu-se a ela.Os seusolhos,de um azul extraordinário, contrastavam com o tom escuro e ameaçadordocéu.

AmadreMaryClementgostavadefalarconsigodisseele.ÉcomadetectiveRizzoliqueeladevefalarrespondeuMaura.Elapreferefalarconsigo.

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Porquê?Porque a senhora não é da polícia. Pelo menos, parece disposta a

ouviraspreocupaçõesdela.Acompreender.Acompreenderoquê,padre?Elecalou-se.Oventoaçoitava-lhesocasacoepicava-lhesacara.Essafénãodeveserridicularizadadisseele.E era por isto que Mary Clement não queria falar com Rizzoli; a

detectivenãoeracapazdedisfarçaroseucepticismo,oseudesprezopelaIgreja.Umacoisatãopessoalcomoa fénãodeviaestarsujeitaaodesdémdeoutrapessoa.

Éimportanteparaela.Porfavor!disseopadreBrophy.Maura entrou no edi ício atrás dele e desceu o corredor mal

iluminado e ventoso, em direcção ao gabinete da madre. Mary Clementestava sentada à secretária. Levantou a cabeça quando eles entraram.Atravésdaslentesgrossasdosóculos,eravisívelasuairritação.

Sente-se,doutoraIsles.Embora a Holy Innocents Academy fosse uma realidade muito

recuadano tempo,o factodeveruma freira zangada continuavaa agitarMaura, que acedeu a sentar-se na cadeira como se fosse uma alunaculpada. O padre Brophy sentou-se ao lado dela, como um observadorsilenciosodomaumomentoqueseaproximava.

NuncanosdisseramqualeraomotivodestabuscacomentouMaryClement.Os senhoresdesestabilizaramas nossas vidas. Violaramanossaprivacidade.Desdeoinícioquecolaborámosdetodasasmaneiras,emboranos tenhamtratadocomose fôssemoso inimigo.Devem-nosacortesiadepelomenosnosexplicaremoqueprocuram.

AchoquedeviaseradetectiveRizzoliafalarconsigoacercadisto.Masfoiasenhoraqueiniciouabusca.Eusólhesdisseoquedescobrinaautópsia.QueairmãCamilledera

à luzhápouco tempo.AdetectiveRizzoliéqueresolveu fazerumabuscanaabadia.

Semnosdizerporquê.Em geral, as investigações policiais são rodeadas de um grande

secretismo.Issoéporquenãocon iamemnós,nãoéverdade?Mauraenfrentou

oolharacusadordeMaryClementeconcluiuquesópodiadizeraverdade.Sónosrestavaavançarcomprecaução.Em vez de a irritar ainda mais, esta resposta pareceu dissipar a

indignação da madre. Com um ar subitamente esgotado, Mary Clement

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recostou-senacadeiraetransformou-senavelhaqueefectivamenteera.Mas que mundo este, em que nem sequer somos dignas de

confiança.Comotodaagente,madre.Maséprecisamente isso,doutora Isles.Nósnãosomoscomotodaa

gente.Mary Clement proferiu estas palavras sem qualquer tom de

superioridade. Pelo contrário, foi tristeza que Maura pressentiu na vozdela,eperplexidade.

Nós podíamos ter-vos ajudado. Podíamos ter colaborado, sesoubéssemosoqueprocuravam.

NãofaziamesmoideiadequeCamilleestavagrávida?Mascomo?QuandoadetectiveRizzolimedisse issoestamanhã,eu

nãoacreditei.Econtinuoanãoacreditar.Infelizmente,aprovaestavanolago.Amadreencolheu-seepareceuaindamaispequenanasuacadeira.

Fitouasmãosdeformadaspelaartrite.Ficouemsilêncio,acontemplarasmãos,comoseelasnãolhepertencessem.

Comopoderíamosnãosaber?perguntouelaemvozbaixa.É possível ocultar uma gravidez. Sabemos que as adolescentes

escondemoseuestadodasprópriasmães.Algumasmulheresnegamessefactomesmo a si próprias, até darem à luz. É provável que tenha sido ocaso de Camille. Tenho de admitir que iquei completamente estarrecidacomaautópsia.Nãoeranadaoqueeuesperavaencontrar...

NumafreiraconcluiuMaryClement,olhandodefrenteparaMaura.Não quero dizer que as freiras não sejam seres humanos. Um

sorrisoténue.Obrigadaporreconhecerisso.Eelaeratãonova...Acha que só os jovens é que lutam contra as tentações? Maura

pensou na noite agitada que passara. Em Victor, a dormir ao fundo docorredor.

Passamos a vida inteira fascinadas por isto ou por aquilo. Astentaçõesmudam,evidentemente.Quandosomosnovas,éumrapazbonito.Depois, são as guloseimas ou a comida. Ou, quando estamos velhas ecansadas, a simples possibilidade de poder dormir mais uma hora demanhã. Muitos pequenos desejos, e somos tão vulneráveis a eles comoqualqueroutrapessoa,sóquenãopodemosadmitirqueassimé.Osnossosvotosdiferenciam-nos.Usarovéupodeserumaalegria,doutoraIsles.Mas

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aperfeiçãoéumfardoenenhumadenósconsegueatingi-la.Emuitomenosumamulhertãojovem.Aidadenãofacilitaatarefa.Camille tinha apenas vinte anos. Deve ter tido algumas dúvidas

quantoaosseusvotosperpétuos.Aprincípio,MaryClementnãorespondeu.Olhouláparaforaatravés

dajanela,quedavaparaummuroliso.Umavistaquelherecordavaqueoseumundoeralimitadoporumabarreiradepedra.Depois,acrescentou:

Eutinhavinteeumanosquandofizosvotosperpétuos.Etevedúvidas?Nemuma.Eutinhaacertezarespondeuela,olhandoparaMaura.Como?PorqueDeusfaloucomigo.Mauranãodissenada.EuseioqueestáapensardisseMaryClement.Quesóospsicóticos

équeouvemvozes.Quesóospsicóticoséqueouvemosanjosafalarcomeles. A senhora é médica e talvez encare tudo sob a perspectiva docientista. Dir-me-á que isto não passou de um sonho. Ou de umdesequilíbrio químico. Ou de um ataque pontual de esquizofrenia. Euconheçoasteoriastodas.SeioquedizemdeJoanad'Arc...Quequeimaramumaloucanafogueira.Éoqueasenhorapensa,nãoé?

Nãosoureligiosa.Masfoi,emtempos?Recebiumaeducaçãocatólica.Eranoqueacreditavamosmeuspais

adoptivos.Nessecaso,estáfamiliarizadacomasvidasdossantos.Muitosdeles

ouviramavozdeDeus.Comoexplicaisso?Maura hesitou, sabendo que o que dissesse poderia ofender a

madre.Muitas vezes as alucinações auditivas são interpretadas como

experiênciasreligiosas.Mary Clement não se mostrou ofendida, como Maura esperava.

Limitou-searetribuiroolhar,bemfirme.Parece-lhequeestoulouca?Demaneiranenhuma.Noentanto,aquiestoueuadizer-lhequeouviavozdeDeus.Oolhar

de Mary Clement desviou-se mais uma vez para a janela. Para o murocinzento, cujaspedras reluziam, cobertas de gelo.A senhora é a segundapessoa a quem eu digo isto, porque sei o que as pessoas pensam. Euprópria não acreditaria se isso nãome tivesse acontecido. Quando temos

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apenas dezoito anos e Ele nos chama, o que nos resta fazer, exceptoescutá-Lo?

MaryClementrecostou-senacadeiraeacrescentouemvozbaixa:Eutiveumnamorado,sabe?Umhomemquequiscasarcomigo.Eusei.Amadredisse-merespondeuMaura.Elenãopercebia.Nãocompreendiaoquelevavaumamulherjovem

a esconder-se da vida. Era o que ele dizia. A esconder-se, como umacobarde.A submeter-me à vontadedeDeus. É claroque tentou fazer-memudardeideias.Talcomoaminhamãe.Maseusabiaoqueestavaafazer.Soube-odesdeomomentoemque fui chamada.Estavanomeuquintal, aouvirosgrilos.OuviavozdEle,claracomoumsino.Ecompreendi.

MaryClement olhouparaMaura, que semexia na cadeira, ansiosaporterminaraconversa.Incomodadacomesteassuntodevozesdivinas.

Mauraolhouparaorelógio.Reverendamadre,lamento,mastenhodeirandando.Nãosabeporquelheestouadizeristo.Sim,sei.Eusódisseistoamaisumapessoa.Sabequemfoi?Não.AirmãCamille.Maurafitouosolhosazuisdamadre.PorquêCamille?Porque ela também ouviu a voz. Foi por isso que ingressou nesta

ordem. Foi criada no seio de uma família extremamente rica. CresceunumamansãoemHyannisport, relativamentepertodosKennedy.Mas foichamada para esta vida, tal como eu. Quando somos chamados, doutoraIsles, sabemos que fomos abençoados e respondemos com o coração atransbordar de alegria. Ela não tinha dúvidas quanto aos votos. Estavatotalmentecomprometidacomestaordem.

Entãocomoexplicaagravidez?Comoéqueissoaconteceu?AdetectiveRizzoli jáme fez amesmapergunta.Mas só quis saber

nomes e datas. Quais os operários que trabalharam aqui. Em quemês éque a irmã Camille foi visitar a família. A polícia só se preocupa compormenores concretos e não com questões espirituais. Nem com ochamamentodeCamille.

Elaengravidou.Oufoiummomentodetentaçãooufoiumaviolação.A madre superiora deixou-se icar calada, a olhar para as mãos.

Depois,respondeutranquilamente:Háumaterceiraexplicação,doutoraIsles.Maurafranziuosobrolho.

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Qualé?Vai troçardisto,eusei.Émédica.Baseia-senos testes laboratoriais,

noquevêaomicroscópio.Masnãolheacontecejátervistooinexplicável?Quando um doente que devia estar morto recupera de repente? Nuncapresencioumilagres?

Todos osmédicos foram surpreendidos pelomenos algumas vezesnasuacarreira.

Não só surpreendidos. Estou a falar de algo que nos deixaestupefactos.Algoqueaciêncianãoconsegueexplicar.

Maura lembrou-se do seu período de internato no São FranciscoGeneral.

Houveumamulher,comumcancronopâncreas.Issoéincurável,nãoé?É.Equivaleaumasentençademorte.Elanãodeviatersobrevivido.

Quando a vi pela primeira vez, encontrava-se em estado terminal. Jáconfusaecomicterícia.Osmédicostinhamdecididonãoaalimentarmais,porqueelaestavaàsportasdamorte.Lembro-medasinstruçõesna icha:mantê-la confortável, apenas. Não podemos fazer mais nada, no im,excepto aliviá-la das dores. Convenci-me de que ela morreria dentro depoucosdias.

Maselasurpreendeu-a.Acordou, um dia de manhã, e disse à enfermeira que estava com

fome.Passadoummês,foiparacasa.Amadreabanouacabeça.Ummilagre.Não, madre. Uma remissão espontânea disse Maura, olhando

fixamenteparaela.Issoéapenasumamaneiradedizerquenãosabeoqueaconteceu.As remissões acontecem. Os cancros regridem por si próprios. Ou

entãoodiagnósticoinicialestavaerrado.Ou então foi outra coisa qualquer. Que a ciência não consegue

explicar.Querqueeudigaquesetratoudeummilagre?Quero que considere outras hipóteses. Muita gente que recupera

depoisdeterestadoamorrerafirmaqueviuumaluzbrilhante.Ouqueviuosseusentesqueridos,adizeremqueasuahoraaindanãochegara.Comoexplicaauniversalidadedestasvisões?

Sãoalucinaçõesdeumcérebroprivadodeoxigénio.Ouaprovadodivino.

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Eugostavamuitodeencontraressaprova.Seriareconfortantesaberqueexiste algopara alémdesta vida ísica.Masnãoposso aceitarque setrateapenasdeumaquestãodefé.Éondequerchegar,nãoé?DizerqueagravidezdeCamillefoiumaespéciedemilagre?Maisumamanifestaçãododivino.

A senhora diz que não acredita em milagres, mas não consegueexplicar porque é que a sua doente com um cancro no pâncreassobreviveu.

Aexplicaçãonuncaésimples.Porqueaciênciamédicanãocompreendetotalmenteamorte.Nãoé

verdade?Mas compreendemos a concepção. Sabemos que ela exige um

espermatozóideeumóvulo.Ébiologiapuraesimples,madre.Nãoacreditona imaculada concepção. Acredito é que Camille teve uma experiênciasexual.Podetersidoforçadaouconsensual.Maso ilhodelafoiconcebidodamaneira habitual. E a identidade do pai pode estar relacionada comoseuassassínio.

Esenuncaencontraremumpai?TeremosoADNdacriança.Sóprecisamosdonomedopai.Temtantacon iançanasuaciência,doutoraIsles!Éarespostapara

tudo!Mauralevantou-sedacadeira.Mas,pelomenos,sãorespostasemqueconsigoacreditar.O padre Brophy saiu do gabinete com Maura. Desceram ambos o

corredormaliluminado,fazendorangerastábuasdosoalhojámuitogasto.Podíamospuxaroassuntoagora,doutoraIsles.Queassunto?Opadreparouefitou-a.Saberseofilhoémeu.Oolhardeleenfrentouodelasempestanejar;foiMauraquetevede

desviaroseu,deproteger-sedaquelaintensidade.Énissoqueestáapensar,nãoé?perguntouele.Écompreensível,nãoacha?Acho. Como a senhora disse há pouco, as leis incontornáveis da

biologiaexigemumespermatozóideeumóvulo.O senhor é o único homem que tem acesso regular a esta abadia.

Rezamissa,confessa.Éverdade.Conhecesossegredosmaisíntimosdelas.

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Sóosqueelasqueremcontar-me.Éumsímbolodeautoridade.Háquemencareospadresdessamaneira.Paraumajovemnoviça,sê-lo-iacertamente.Eissotransforma-meautomaticamentenumsuspeito?Nãoseriaoprimeiropadreaquebrarosseusvotos.Elesuspiroue,pelaprimeiravez,deixoudeolharparaela.Nãopara

aevitar,masporquereconheceutristementequeelatinharazão.Não é fácil, hoje em dia. Os olhares que as pessoas nos deitam, as

graçolasnasnossascostas.Quandocelebroumamissa,olhosempreparaacara das pessoas que estão naminha igreja e sei no que estão a pensar.Interrogam-seseeutocoemrapazinhosousedesejomeninas.Todaselasseinterrogam,comoasenhora.Epensamopior.

Ofilhoéseu,padreBrophy?Osolhosazuisfitaram-namaisumavez,comumafirmezainabalável.Não,nãoé.Nuncaquebreiosmeusvotos.Compreendequenãopodemos iar-nosapenasnasuapalavra,não

éverdade?Claro.Eupodiaestaramentir,nãopodia?Apesardeelenãolevantaravoz,Mauradetectoulaivosdeirritação.

Eleaproximou-semaiseelaficouimóvel,resistindoaoimpulsoderecuar.Eupodiacometerumpecado,eoutro,emaisoutro.Nasuaopinião,

aondeconduzessaespiraldepecados?Àmentira,aoabusodeumafreira.Aoassassínio?

Apolíciatemdeexplorartodososmotivos.Atéosseus.EqueromeuADN,suponho.Issoeliminariaapossibilidadedeosenhorseropaidobebé.Oufariademimoprincipalsuspeitodoassassínio.Dependedosresultados.Oqueachaqueelesmostrarão?Nãofaçoideia.Masdeveterumpalpite.Estáaqui,aolharparamim.Vêemmimum

assassino?Sóconfionasprovas.Númerosefactos.Sóacreditanisso.Éverdade.Eseeulhedissessequeestouinteiramentedispostoasubmeter-me

aotestedeADN?Que lhedarei jáumaamostradesangue,sequisertirá-la?

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Nãoéprecisoumaamostradesangue.Bastaumagotadesaliva.Seja!Sóqueroesclarecerqueestouaoferecer-me.ComunicareiàdetectiveRizolli.Seráelaafazeracolheita.Issoiráalterarasuaopinião?Acercadaminhaculpabilidade?Comojádisse,sabereiquandovirosresultados.Dizendoisto,Maura

abriuaportaesaiu.O padre foi atrás dela até ao pátio. Não trazia casaco,mas parecia

insensívelaofrio,detãoconcentradoqueestavanela.Asenhoradissequeteveumaeducaçãocatólica.Frequenteiumliceucatólico.OHolyInnocents,emSãoFrancisco.Massóacreditanassuasanálisesaosangue.Nasuaciência.Emquehaviaeudebasear-me?Nosinstintos?Nafé?Emsi?Sóporqueépadre?Sóporisso?OpadreBrophyabanouacabeçaedeuumagargalhada

triste,lançandoumabaforadadearquenteparaaatmosferagelada.Achoqueissorespondeàminhapergunta.

Eu não tenho palpites. Não assumo nada em relação às outraspessoasporqueelassurpreendem-memuitasvezes.

Chegaram ao portão principal. Ele abriu-o e ela saiu. O portãofechou-seentreeles,separandoderepentedoismundosdiferentes.

Lembra-se do homem que desmaiou no passeio? perguntou ele.Aqueleaquemfizemosreanimação?

Lembro.Estávivo.Fuivisitá-loestamanhã.Acordouejáfala.Aindabem.Nuncapensouqueelesesafasse.Tinhatudocontraele.Estáaver?Porvezes,osnúmeroseasestatísticassãoenganosos.Mauradeumeiavolta.Doutora Isles! gritou ele. A senhora foi educada no seio da Igreja.

Restaalgumacoisadasuafé?Elaolhouparatrás.Afénãoexigeprovas.MaseuexijorespondeuMaura.A autópsia de uma criança era uma tarefa que aterrava todos os

patologistas. Enquanto Maura calçava as luvas e preparava osinstrumentos,evitouolharparaopequenoembrulhoqueestavaemcimadamesa, tentandodistanciar-se, tantoquantopossível,da triste realidadecom a qual estava prestes a confrontar-se. Com excepção do tilintar dos

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instrumentos, reinava o silêncio na sala. Nenhum dos presentes tinhavontadededizerfosseoquefosse.

Maura sempre impusera o respeito no seu laboratório. Quandoestudava Medicina, assistira às autópsias de doentes que tinham sidotratados por ela, e, embora os patologistas que faziam essas autópsias osconsiderassem pessoas estranhas e anónimas, ela, que os conhecera emvida,nãoconseguiaolharparaeles,estendidosnamesa,semouvirassuasvozes nem recordar os seus olhares conscientes. A sala de autópsias nãoera o local indicadopara contar anedotas nempara falar do encontrodanoiteanterior,eelanãotoleravataiscomportamentos.Umolhargravedosseus conseguia dominar omais desrespeitoso dos polícias. Ela sabia queelesnãoeram insensíveis,queohumorerauma formade lidaremcomanatureza sinistra da sua pro issão, mas esperava que eles deixassem osentido de humor à porta, caso contrário podiam contar com umadescompostura.

Essa descompostura nunca era necessária quando havia umacriançaestendidanamesa.

Mauraolhouparaosdoisdetectivesàsuafrente.BarryFrost,comoerahabitual, tinhaumapalidezdoentia e estava ligeiramenteafastadodamesa, como se se preparasse para fugir. Nesse dia, não eram os cheirosdesagradáveis que di icultavam a autópsia; era a idade da vítima. JaneRizzoliestavaaoladodele,comumaexpressãoresolutaeocorpofranzinoquase perdido numa bata cirúrgica que era demasiado grande para ela.Encostara-se à mesa, uma posição que anunciava: estou pronta. Consigolidarcomtudo.AmesmaatitudequeMauraviranas internasdecirurgia.Os homens podiam chamar-lhes cabras, mas ela reconhecia-as pelo queeram:mulheres preparadas para a luta, que trabalhavammuito para sea irmarem numa pro issão masculina, ao ponto de ostentarem umaarrogânciaprópriadoshomens.Erao casode JaneRizzoli, emborao seurosto não condissesse exactamente com a pose destemida. Estava pálido,crispadoecomumasolheirasquedenunciavamcansaço.

Yoshima apontara a luz para o embrulho e aguardava junto dotabuleirodosinstrumentos.

Ocobertorestavaensopado,ecaíramalgumasgotasdeáguageladadolagoquandoMauraoafastoudevagarinho,revelandomaisumacamadadeligaduras.Opezinhoqueelaviraestavaagoraexposto,asairdotecidomolhado. Colada ao corpo do bebé, como se fosse uma mortalha, estavauma fronha de almofada branca, fechada com al inetes-de-ama. Viam-separtículas rosadas agarradas ao tecido.Maurapegounapinça, retirou as

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partículasedeixou-ascairnumpequenotabuleiro.Oqueéisso?perguntouFrost.ParecemconfetesrespondeuRizzoli.Mauraenfiouapinçanumapregamolhadaeretirouumgraveto.Nãosãoconfetes,sãofloressecasdisseela.O signi icadodesta conclusão impôsdenovoo silêncio.Umsímbolo

de amor, pensou Maura. De luto. Lembrou-se como icara comovidaquando,háunsanos,souberaqueoshomensdeNeanderthalenterravamosseusmortoscom lores.Eraaprovadoseudesgostoe,portanto,dasuahumanidade.Aquelacriançatinhasidochorada,pensouela.Envolvidaemligaduras, aspergida com lores secas e embrulhada num cobertor de lã.Nãoforadeitadafora,forasepultada.Umadespedida.

Mauraconcentrou-senopé,minúsculocomoodeumboneco,asairdamortalha.Apeledaplantaestavaengelhadadevidoàimersãoemáguadoce,masnãohaviadecomposiçãonemveiassalientes.A temperaturanolagoeraquasenegativa, eo corpopodiamanter-senumestadodequaseconservaçãodurantealgumassemanas.Seriadi ícil,oumesmoimpossível,determinaradatadamorte.

Maurapôsdeparteapinçaeretirouosquatroal inetes-de-amaquefechavamafronha.Fizeramumruídoquasemusicalquandoelaosdeixoucairnumtabuleiro.Aolevantarotecidoeempurrá-loumpoucomaisparacima,apareceramaspernas,dobradasecomascoxasabertas,comoasdeumapequenarã.

A avaliar pelo tamanho, tratava-se de um feto completamenteformado.

Maura expôs os órgãos genitais e depois um pedaço inchado docordão umbilical, atado com uma ita de cetim vermelho. De repente,lembrou-se das freiras sentadas à mesa, com as mãos deformadas amexerem em lores secas e itas para fazerem os seus saquinhos. Umbebé-saquinho,pensouela.Cobertodefloreseatadocomumafita.

ÉumrapazdisseRizzoli,comavozquaseafalhar.MauralevantouacabeçaereparouqueRizzoliestavaaindamaispálidaequeseencostaraàmesa,comosenãoconseguisseequilibrar-se.

Precisadesair?Rizzoliengoliuemseco.Éapenas...Oquê?Nada.Estoubem.Opioraindaestavaparavir.Maurapuxouafronhasobreopeito,estendendoprimeiroumbraço

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e depois o outro, para libertá-los do tecido molhado. As mãos eramperfeitas, e os dedinhos capazes de acariciar a face de uma mãe, deagarrarumamadeixadecabelo.Aseguiraorosto,sãoasmãosquemelhordefinemumserhumano,eeraquasedolorosoolharparaelas.

Maura en iou a mão dentro da fronha para segurar a nuca,enquantopuxavaorestodotecido.

Nomesmoinstante,percebeuquealgonãoestavabem.A suamão apoiava um cérebro que, ao tacto, não parecia normal,

humano. Parou, sentindode repente a garganta seca. Aterrada, afastou otecido,eapareceuacabeçadacriança.

Rizzoliperdeuofôlegoeafastou-sedamesa.Céus!exclamouFrost.Oquediabolheaconteceu?Demasiado aturdida para falar, Maura só conseguiu olhar,

horrorizada,paraocrânioaberto,comamassaencefálicaàvista.Eparaaface,dobradaparadentrocomoumamáscaradeborrachaamolgada.

Derepente,umtabuleirometálicovirou-seecaiu.MauralevantouacabeçamesmoatempodeverRizzoli,lívida,acairlentamenteaochão.

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DezNãoqueroirpararàsurgências.Maura limpou o resto do sangue e franziu o sobrolho ao ver a

laceraçãodedoiscentímetrosemeionatestadeRizzoli.Nãosoucirurgiãplástica.Possosuturaristo,masnãopossogarantir

quenãofiquecomumacicatriz.Trateládisso,estábem?Nãoqueropassarhorasehorassentadana

sala de espera de um hospital. Além disso, podia sair-me na rifa umestudantedemedicina.

Mauradesinfectou-lheapelecomBetadineeemseguidapegounumfrascodexilocaínaenumaseringa.

Primeiro, vou anestesiar-lhe a pele. Vai sentir uma picada, masdepoisnãosentemaisnada.

Rizzoli deixou-se icar imóvel na marquesa, de olhos pregados notecto. Apesar de não se encolher quando a agulha lhe atravessou a pele,fechouamãoemanteveopunhobemcerradodurante a anestesia.Nemum lamento, nem uma lamúria. Já se sentira su icientemente humilhadacomaquedano laboratório.Eaindamaispornãoconseguirequilibrar-sesozinha e ter de aceitar a ajuda de Frost, que a conduziu ao gabinete deMaura como se ela fosse uma noiva. Agora estava deitada, com um armacambúzio,firmementedeterminadaanãodarpartedefraca.

QuandoMauraperfurouasextremidadesdalaceraçãocomaagulhacurva,Rizzoliperguntou,comumavozmuitocalma:

Vaidizer-meoqueaconteceuàquelebebé?Nãolheaconteceunada.Aquilonãoénormal!Bolas,falta-lhemetadedacabeça!Nasceu assim respondeu Maura, cortando a linha e dando um nó.

Suturarpelehumana era omesmoque coserum tecido, e neste caso elanão era mais do que uma simples costureira que unia as pontas erematavaacosturacomumnó.Obebééanencefílico.

Oquequerissodizer?Océrebrodelenuncasedesenvolveu.Masnãosetrataapenasdafaltadocérebro.Pareciaquelhetinham

cortadoocimodacabeça.Rizzoliengoliuemseco.Eacara...Faztudopartedomesmodefeitocongénito.Océrebrodesenvolve-se

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a partir de uma camada de células chamadas tubo neural. Se a parte decima do tubo não se fechar como deve, o bebé nasce sem uma parte docérebro,docrânioeatédocourocabeludo.Éoquesignificaanencefálico.

Nuncatinhavistoumcomoeste?SónummuseudeMedicina.Masnãoéassimtãoraro.Aconteceuma

vezemcadamilnascimentos,aproximadamente.Porquê?Ninguémsabe.Entãopodia...Aconteceromesmoaqualquerbebé.Exactamente. Maura deu o último ponto e cortou o excesso de

sutura. Esta criança nasceu com umamalformação grave. Se não nasceumorta,équasecertoquemorreriapoucodepois.

Então,Camillenãoaafogou.Vouexaminarosrinsparaversehádiatomáceas.Issoindicar-nos-á

se a criançamorreu por afogamento.Mas não acredito que este seja umcasodeinfanticídio.Creioqueobebémorrreudemortenatural.

Graças a Deus! disse Rizzoli em voz baixa. Se essa coisa tivessesobrevivido...

Não teria. Maura aplicou um penso sobre a ferida e descalçou asluvas.Estápronta,detective.Devetirarospontosdaquiacincodias.Podepassar por cá que eu tiro-lhos. Mas continuo a pensar que devia ir aomédico.

Vocêémédica.Trabalhocommortos,nãoseesqueçadisso.Acaboudesuturar-melindamente.Não estou a falar de dar alguns pontos. Estou preocupada com o

resto.Aqueserefere?Maurainclinou-separaafrenteefitouRizzoli.Vocêperdeuossentidos,lembra-se?Nãoalmocei.Eessacoisa...Obebé...Chocou-me.Chocou-nosatodos.Masvocêéquedesmaiou.Nuncatinhavistonadaigual.Jane, você já viu toda a espécie de coisas terríveis naquela sala de

autópsias.Todosvimos,todoscheirámosváriascoisasjuntos.Vocêsempreteve um estômago forte. Os polícias mais novos, tenho de mantê-losdebaixo de olho, caso contrário, caem como tordos. Mas você sempreconseguiumanterosanguefrioaquidentro.Atéagora.

Talvezeunãosejatãofortecomovocêjulga.

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Não.Creioqueháumproblemaqualquer.Dequegénero?Háunsdias,vocêsentiu-setonta.Rizzoliencolheuosombros.Tenhodecomeçaratomaropequeno-almoço.Porque não o faz? São os enjoos. E tenho reparado que você vai à

casa de banho praticamente de dez em dez minutos. Foi lá duas vezesenquantoeupreparavaosinstrumentos.

Masquediaboéisto?Uminterrogatório?Você tem de ir ao médico. Tem de fazer um exame completo e

análisesaosangueparacontrolaraanemia,pelomenos.Só preciso de apanhar ar puro. Rizzoli sentou-se e levou

imediatamenteasmãosàcabeça.Céus,éestamalditadordecabeça.Vocêbateucomacabeçanochãocomtodaaforça.Jámetinhaacontecidoomesmo.Mas o que mais preocupa é que tenha perdido os sentidos. Que

estejatãocansada.Jane Rizzoli levantou a cabeça e olhou para ela. Nesse instante,

Maura teve a resposta. Já descon iava, e agora via as suspeitasconfirmadasnoolhardadetective.

A minha vida é tão lixada! desabafou Rizzoli em voz baixa. AslágrimassurpreenderamMaura.NuncaviraRizzolichorar,

sempre a considerara uma mulher demasiado forte e obstinadapara soçobrar, mas nesse momento as lágrimas caíam-lhe pelas faces, eMauraficoutãoabaladaqueselimitouaobservá-laemsilêncio.

Ficaramambassobressaltadasquandoouvirambateràporta.Frostenfiouacabeçanogabinete.Comovão as coisas por aqui... Faltou-lhe a voz ao reparar no rosto

molhadodacolega.Oqueéisso?Sentes-tebem?Rizzolienxugouaslágrimascomumgestodeirritação.Sinto.Oquehá?JátedissequeestoubemDetective Frost. Precisamos de algum tempo a sós. Concede-nos

algumaprivacidade,porfavor?pediuMaura.Frostcorou.Desculpem disse ele em voz baixa, e retirou-se, fechando a porta

semfazerbarulho.Eu não devia ter gritado com ele disse Rizzoli. Mas às vezes é tão

estúpido!

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Elesóestápreocupadoconsigo.Pois,eusei.Pelomenosébomtipo.Rizzolinãoconseguiudizermaisnada.Fezopossívelpornãochorar

ecerrouospunhos,masaslágrimasapareceramedepoisossoluços.Eramsoluços sufocados, de vergonha, que ela não conseguiu reprimir. Maurasentiu-se incomodada aopresenciar a desintegraçãodeumamulher cujaforça moral sempre a impressionara. Se Jane Rizzoli se descontrolava,entãopodiaaconteceromesmoatodaagente.

De repente, Rizzoli bateu com os punhos cerrados nos joelhos erespirou fundo várias vezes. Quando conseguiu levantar a cabeça, aslágrimasainda láestavam,masoorgulho transformarao seu rostonumamáscararígida.

Sãoasmalditashormonas.Dão-mevoltaàcabeça.Háquantotempoéque"sabe?Nãosei...Hápouco,creioeu.Acabeipor fazerumtestedegravidez

estamanhã.Masjáháumassemanasqueeusabia.Sentia-mediferente.Enãomeapareceuoperíodo.

Dequantotempoestá?Rizzoliencolheuosombros.Ummês,pelomenos.Maura reclinou-se na cadeira. Agora que Rizzoli já controlava as

emoções,elapodiarefugiar-senoseupapeldemédica.Amédicadecabeçafria,dispostaadarconselhospráticos.

Temmuito tempopara tomarumadecisão.Rizzoli fungouepassouasmãospelorosto.

Nãohánadaadecidir.Oquevaifazer?Nãopossotê-lo.Bemsabequenãoposso.Porquê?Rizzolifitou-acomoseelafosseumaimbecil.Oquefariaeucomumbebénosbraços?Omesmoquetodaagentefaz.Consegueimaginar-mecomomãe?Rizzolideuumagargalhada.Que

horror!Acriançanãosobreviveriaummêscomosmeuscuidados.Ascriançastêmumaresistênciaespantosa.Poisbem,eunãosouboanisso.Foiimpecávelcomaquelamenina,aNoni.Pois.Maséverdade,Rizzoli.Eelacorrespondeu.Ignorou-meeretraiu-se

napresençadamãe.Masvocêstornaram-selogoamigas.

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Issonãosigni icaqueeusejado tipomaternal.Osbebésassustam-me. Não sei o que hei-de fazer com eles e passo-os logo para o colo deoutrapessoa.Rizzoli resfolegou,comosenãohouvessemaisnadaadizer.Assuntoencerrado.Nãoposso.Nãoposso.

Levantou-sedacadeiraeatravessouasalaemdirecçãoàporta.JádisseaoagenteDean?Rizzoliparou,comamãonopuxadordaporta.Jane?Não.Nãolhedisse.Porquê?Édifíciltermosumaconversaquandomalnosvemos.Washingtonnão icadooutroladodomundo.Atétemomesmofuso

horário.Vocêpodiatentarpegarnotelefone.Elegostariadesaber.Talvez não. Talvez seja uma daquelas complicações de que ele

preferenemouvirfalar.Maurasuspirou.Certo, admito que sim. Não o conheço muito bem. Mas durante o

pouco tempo em que trabalhámos juntos ele pareceu-me levar as suasprópriasresponsabilidadesasério.

Responsabilidades?Finalmente,Rizzolivirou-seeolhouparaela.Oh,nemmais!É issoqueeusou.É issoqueestebebéé.Eelenãoénenhumescuteiroparaterdecumpriroseudever.

Nãofoiissoqueeuquisdizer.Mas você tem toda a razão. O Gabriel cumpriria o seu dever. Pois

bem, que se lixe! Não quero ser o problema de homem nenhum, aresponsabilidadedehomemnenhum.Alémdisso,nãoéaelequecompetedecidir.Éamim.Euéqueteriadeocriar.

Vocênemsequerlhedeuumahipótese.Uma hipótese de quê? De pôr um joelho em terra e pedir-me em

casamento?retorquiuRizzoli,rindo-se.Porqueéque isso é assim tãoestranho? Já vos vi juntos.E reparei

comoeleolhaparavocê.Existealgomaisdoqueumcasodeumanoite.Pois.Foiumcasodeduassemanas.Nãofoimaisdoqueissoparavocê?Quemaispodiaser?EleestáemWashingtoneeuestouaqui.Rizzoli

abanoua cabeça, admirada.Céus,nempossoacreditarque fui apanhada.Istosódeviaaconteceràsmulherespatetas.Calou-se.Eriu-se.Pois,eoqueéqueeusou?

Patetanãoé,comcerteza.

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Infeliz.Eestupidamentefértil.Háquantotemponãofalacomele?Desdeasemanapassada.Eletelefonou-me.Porquenãolhedissenada?Porqueaindanãotinhaacerteza.Masagoratem.Masnãolhevoudizernada.Tenhodeescolheroquemeconvém,e

nãooqueconvémaosoutros.Oquereceiaqueelelhediga?Quemedigapara lixaraminhavida.Quemedigapara icarcomo

bebé.Émesmo issoque receia?Ou temmedoqueelenãooqueira?Que

elearejeiteantesquesejavocêarejeitá-lo?RizzoliolhouparaMaura.Sabeumacoisa,doutora?Oqueé?Àsvezes,nãoseidequeéquevocêestáafalar.Eàsvezeseuacertoemcheio,pensouMaura,vendoRizzoliasairdo

gabinete.RizzolieFrostestavamsentadosnocarro,comoradiadoraexpelir

ar frio e os locos de neve a embaterem no pára-brisas. O céu cinzentocondizia coma suadisposição.Adetective tremiade frio, na obscuridadeclaustrofóbicado carro, e cada locodeneveque caíanovidro impedia-aaindamaisdeveralgumacoisaláparafora.Enclausurava-a,sepultava-a.

Estásmelhor?perguntouFrost.Foiumadordecabeça.Maisnada.Tensacertezaquenãoqueresqueeuteleveàsurgências?SóprecisodetomarumTylenol.Estábem.Frostligouomotor,masdepoismudoudeideiasedesligou-o.Olhou

paraela.Rizzoli?Oqueé?Sequiseresfalarcomigosobrealgumacoisa,sejaelaqualfor,eunão

meimportodeouvir.Elanãorespondeue limitou-seaolharatravésdopára-brisaspara

osflocosdenevequedesenhavamumafiligranabrancanovidro.Trabalhamosjuntosháquantotempo?Hádoisanos?Parece-meque

nãomecontasmuitacoisaquesepassanatuavidadisseele.Talvezeute

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enchaosouvidosacercademimedaAlice.Todasasdiscussõesquetemos,tu sabes, quer queiras quer não. Nunca me mandas calar e, portanto,deduzoquenãoteimportas.Massabes?Apercebi-meagoradeumacoisa.Tuouvesmuito,masfalaspoucodeti.

Nãohámuitoadizer.Frost icou a pensar nisto. Depois, acrescentou, quase

envergonhado:Nuncatetinhavistochorar.Elaencolheuosombros.Poisbem,visteagora.Ouve,nemsemprenosdemosbem...Achasquenão?Frost corou, como acontecia sempre que era apanhado num

momento desastrado. A sua cara parecia um holofote, que se tornavavermelhoaoprimeirosinaldeembaraço.

Oqueeuquerodizeréquenãosomos,assim,grandesamigos.Masagoraqueresquesejamosgrandesamigos?Eunãomeimportava.Combinado, somos grandes amigos respondeu ela bruscamente.

Vamosandando.Rizzoli?Oqueé?Euestouaqui,ouviste?Sóqueroquesaibasisso.Ela pestanejou e virou-se para a janela lateral, para ele não ver o

efeito que as suas palavras tiveram nela. Pela segunda vez numa hora,Rizzoli sentiu as lágrimas a chegar. Malditas hormonas! Não percebiaporqueéqueaspalavrasdeFrosta faziamchorar.Talvez fosseapenasofactodeeleestarasertãomeigoparaela.Averdadeéquesempreofora,maselaestavahipersensíveleempartedesejavaqueFrostfosseestúpidoquenemumaportaenãoseapercebessedasuaagitação.Aspalavrasdeletornavam-na vulnerável e exposta. Não era assim que se conquistava orespeitodeumcolega.

Rizzolirespiroufundoedesanuviou.Omomentodi ícilpassaraeaslágrimasjátinhamdesaparecido.Conseguiuolharparaeleesimularasuaposturahabitual.

Olha, preciso daquele Tylenol disse ela. Vamos passar o dia inteiroaquisentados?

Ele concordou e ligou o motor. Os limpa-pára-brisas afastaram aneve do vidro, revelando-lhes o céu e as ruas cobertas por um mantobranco. Rizzoli passara o Verão escaldante a suspirar pelo Inverno, pela

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purezada neve. Agora, ao contemplar este cenário desolado, pensouquenuncamaisvoltariaaamaldiçoarocalordeAgosto.

Nas noites de sexta-feira, ninguém conseguia entrar no bar. P.Doyle'ssemesbarrarcomumpolícia.Situadomesmoao fundodarua,noextremo oposto da esquadra de Jamaica Plain da Polícia de Boston, eapenasadezminutosdeSchroederPlaza,oDoyle'seraopontoemqueosagentes costumavam encontrar-se para conversar e beber uma cervejaquando estavam de folga. Por isso, quando Rizzoli entrou no Doyle's,esperava encontrar uma série de rostos conhecidos. O que ela nãoesperava era ver Vince Korsak sentado ao balcão, a beber uma cerveja.Korsak era um detective aposentado da Polícia de Newton, e o Doyle'sficavaforadoseuterritóriohabitual.

Eleviu-aassimqueelaentroueacenou-lhe.Olá, Rizzoli! Há quanto tempo não te via! O que te aconteceu?

perguntouele,apontandoparaopensoqueJanetrazianatesta.Ora,nada.Escorregueinamorgueetivedelevarunspontos.Eoque

fazestuporestasbandas?Voumudar-meparacá.Oquê?Acabeidealugarumapartamentoaofundodarua.EatuacasaemNewton?Isso é uma longa história. Queres jantar? Conto-te tudo. Korsak

pegou na cerveja. Vamos para um compartimento na outra sala. Estesfumadoresidiotasestãoadar-mecabodospulmões.

Nuncateincomodastecomisso.Poisé.Issoéquandoeueraumdessesidiotas.Não há nada como uma trombose para transformar um fumador

inveterado num maníaco da saúde, pensou Rizzoli, seguindo atrás docorpulento Korsak. Embora tivesse perdido peso desde que sofrera oataquecardíaco,aindatinhaarcaboiçoparajogadordebasebol,queeraoque ele lhe parecia ao abrir caminho entre a multidão de sexta-feira ànoite.

Entraram na sala de não fumadores, onde o ambiente estava umpouco mais desanuviado. Korsak escolheu um compartimento junto dabandeira irlandesa. Na parede, viam-se recortes amarelados eemolduradosdoBostonGlobe,artigossobreantigosmayorsepolíticosquetinhammorrido há muito tempo. Os Kennedy, Tip O'Neill e outros ilhosilustresdoEire,muitosdosquaistinhamlidadocomamelhorsociedadedeBoston.

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Korsakdeslizouaolongodobancodemadeira,encolhendoabarrigagenerosadooutroladodamesa.Apesardecontinuarpesado,pareciamaismagro do que em Agosto, quando ambos tinham participado nainvestigaçãodeummúltiplohomicídio.Rizzolinãoconseguiaolharparaelesem se lembrar desse Verão. O zumbido das moscas nas árvores, oshorrores que a loresta desvendara, no meio da folhagem. Ainda lhevinhamàmente imagens daquelemês emque dois assassinos se tinhamjuntadoparaencenar fantasias terríveisemcasaisabastados.Korsak foraumadaspoucaspessoasqueseaperceberado impactoqueocaso tiveranela.Juntos,tinhamcombatidomonstrosesobrevivido,ehaviaumtraçodeuniãoentreeles,forjadonacrisedeumainvestigação.

Noentanto,haviamuitacoisaemKorsakquearepelia.Viu-obeberumgolede cerveja epassar a línguapelobigodepara

retirar a espuma. O ar simiesco dele sempre a impressionara. Assobrancelhas farfalhudas, o nariz largo e os pêlos negros e hirsutos dosbraços.Eomodocomoandava,comosbraçosgrossosabalouçarao ladodo corpo e os ombros curvados para a frente, exactamente como ummacaco.Rizzolisabiaquehaviaproblemasnoseucasamentoeque,desdequese reformara, lhesobrava tempo.Agora,aoolharparaele, sentiaumcertoremorso.Korsakdeixara-lheváriasmensagensnotelefone,propondoquejantassemjuntos,masela,sempreatarefada,nuncalherespondera.

A empregada aproximou-se da mesa, reconheceu Rizzoli eperguntou:

Quer a sua Sam Adams, como de costume, detective? Rizzoli olhoupara Korsak, que entornara cerveja na camisa, deixando um rasto denódoasmolhadas.

Hum,não.SóumaColarespondeuelaQuer encomendar? Rizzoli abriu a ementa. Nessa noite, não tinha

estômagoparacerveja,masestavaesfomeada.QueroumasaladadochefecommuitomolhoThousandIsland.Peixe

combatatasfritas.Eumpratinhoderodelasdecebola.Podetrazertudoaomesmo tempo?Ah, e traga tambémumadose extra demanteiga para ospãezinhos.

Korsakriu-se.Nãoteprives,Rizzoli!Estoucomfome.Sabesoqueosfritosfazemàstuasartérias?Está bem. Não comes nem uma das minhas rodelas de cebola. A

empregadaolhouparaKorsak.

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Eosenhor?Salmãogrelhado,semmanteiga.Eumasaladacommolhovinagrete.Assimqueaempregadaseafastou,Rizzolideitouumolharincrédulo

aKorsak.Desdequandocomeçasteacomerpeixegrelhado?perguntouela.Desdequerecebiumaviso"fortedotipoládecima.Estásmesmoacomerassim?Nãoésóparateexibires?Já perdi cinco quilos. Mesmo sem fumar, ou seja, peso realmente

menos. Não é apenas a retenção de líquidos. Korsak recostou-se,mostrando-sesatisfeitoconsigomesmo.Agoraatéusootapetedecorrida.

Nãomedigas!Inscrevi-me num ginásio. Faço exercícios cardíacos. Veri ico as

pulsações,controloestamáquina.Sinto-medezanosmaisnovo.Parecesdezanosmaisnovo,talvezfosseoqueeleesperavaqueela

dissesse,masRizzolinãodisse,porquenãoeraverdade.Cincoquilos.Issoébomparaticomentouela.Jánãopassosemisto.Então,porquebebescerveja?O álcool é bom, não sabes? É a última palavra no New England

JournalofMedicine.Umcopodevinhotintofazbemaocoração.KorsakapontouparaaColaqueaempregadaserviuaRizzoli.Oque

éisso?CostumavasbebersempreAdamsAle.Rizzoliencolheuosombros.Estanoitenãomeapetece.Sentes-tebem?Não, não me sinto bem. Estou grávida e não consigo beber uma

cervejasemtervontadedevomitar.Tenhoandadomuitoocupadarespondeuela.Pois,tenhosabido.Oquehácomasfreiras?Aindanãosabemos.Ouvidizerqueumadelastinhasidomãe.Ondeéqueouvisteisso?Bemsabes.Poraí.Equemaisouvistedizer?Quevocêsretiraramumbebédeumlago.As fugas de informação eram inevitáveis. Os polícias conversavam

unscomosoutros.Conversavamcomasmulheres.Rizzolipensouemtodososinvestigadoresqueestavamàvoltadolago,nosfuncionáriosdamorgue,nosperitos.Algunstagarelas,epoucodepoisatéumpolíciareformadodeNewton conhecia os pormenores. Rizzoli receava o que os jornais da

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manhãpudessempublicar.Umassassínio já fascinavabastanteopúblico;agora havia sexo proibido, um aditivo forte que manteria este caso nasprimeiraspáginas.

A empregada trouxe a comida. Aquilo que Rizzoli encomendaraocupava a maior parte damesa; os pratosmultiplicavam-se, como numafesta de família. Rizzoli atacou o que tinha à frente e deu uma dentadanuma batata frita tão quente que teve de beber um pouco de Cola pararefrescaraboca.

Korsak,apesardosseuscomentáriosvirtuososacercadosfritos,nãotirava os olhos das rodelas de cebola. Depois, olhou para o seu peixegrelhado,suspirouepegounogarfo.

Queresumasrodelasdecebola?perguntouRizzoli.Não.Estoubem.Garanto-tequeestouadarumavoltaàminhavida.

Talvezaquelatrombosetenhasidoamelhorcoisaquemeaconteceu.Estásafalarasério?Claro. Estou a perder peso. Deixei de fumar. Olha, acho que até o

meucabelovoltouacrescer.Korsak inclinou a cabeça e mostrou a calva. Se havia cabelos a

nascer,eradentrodacabeça,masnãoporfora,pensouRizzoli.É verdade. Estou a fazer uma série de alterações disse ele. Korsak

calou-se e concentrou-se no salmão, mas aparentemente sem prazer.Condoída, Rizzoli teve vontade de empurrar o seu prato de rodelas decebolaparajuntodele.

Masquandoelelevantouacabeçaoutravez,foiparaelaqueolhouenãoparaacomida.

Tambémfizmudançasláemcasa.Houve qualquer coisa na entoação dele que a deixou pouco à

vontade.Omodocomoolhouparaela,comosequisessedesabafar.Rizzolireceava ouvir os pormenores sórdidos, mas compreendeu que ele tinhanecessidadedefalar.

Oquesepassa láemcasa?perguntouela,quaseaadivinharoqueiriaouvir.

ADianeeeu... Sabesqualéa situação. Jáaviste.RizzoliviraDianepela primeira vez no hospital, quando Korsak recuperava do ataquecardíaco. No primeiro encontro, reparara na fala arrastada e nos olhosvítreos de Diane. A mulher era um autêntico armário de medicamentosambulante,cheiodeValium,codeína...Tudooqueelaconseguiaextrairaosmédicos.Há anos que o problema existia, conforme lhe explicaraKorsak,maselemantivera-seao ladodamulherporentenderqueeraessaasua

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obrigação.ComoestáaDiane?perguntouRizzoli.Namesma.Continuaobtusa.Tudissestequeascoisasestavamamudar.Eestão.Eudeixei-a.Rizzolisabiaqueeleestavaàesperadareacçãodela.Nãodesviouo

olhar,semsabersehaviade icarsatisfeitaoutristeporele.Semsaberoqueelequeriavernela.

Céus,Korsak!disseelaporfim.Nãotensdúvidas?Nunca tive tanta certeza na minha vida. Vou mudar-me para a

semana.Encontreiumapartamentodesolteiroaqui,emJamaicaPlain.Vouequipá-lo como me apetece. Um grande ecrã de televisão, uns brutosaltifalantesdaquelesquenosrebentamcomostímpanos,percebes?

Ele temcinquentaequatroanos, teveumataquecardíacoesaltou-lheatampa,pensouela.Estáacomportar-secomoumadolescenteansiosopormudar-separaoseuprimeiroapartamento.

Elanemvairepararqueeusaí.Desdequeeucontinueapagar-lheas contas da farmácia, sente-se feliz. Bolas, não sei porque levei tantotempo para fazer isto. Desperdicei metade da minha vida, mas, digo-te,estou farto. Daqui em diante, todos os minutos serão importantes paramim.

Eatuafilha?Oquediz?Korsakriu-se.Está-senastintas.Estásempreapedirdinheiro.Papá,precisodeum

carro novo. Papá, quero ir a Cancun. Julgas que eu alguma vez fui aCancun?

Rizzoli recostou-se, itando-o e deixando arrefecer as rodelas decebola.

Sabesoqueestásafazer?Sei.Estouaassumirocontrolodaminhavida.Korsak calou-se e em seguida acrescentou, com um certo

ressentimento:Julgueiqueficavascontentepormim.Efico.Achoquesim.Entãoeomeuaspecto?Queaspecto?Écomosemetivessemnascidoasas.Tenhodehabituar-meaonovoKorsak.Parecequejánãoteconheço.Eissoémau?Não.Pelomenosjánãomeatirasbaforadasdefumoparaacara.

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Riram-se.OnovoKorsak,aocontráriodovelho,nãodeixariaocarrodelaatresandaracigarro.

Korsak espetou uma folha de alface e comeu em silêncio, desobrolhocarregado,comoseosimplesactodemastigarexigissetodaasuaconcentração.Ouparaprepararoqueviriaaseguir.

EntãocomovaiissoentretieoDean?Continuamaver-se?A pergunta dele, feita com tanta naturalidade, apanhou-a

desprevenida.Eraoúltimoassuntodequelheapeteciafalar,aúltimacoisaque esperavaque eleperguntasse.Korsaknão escondiaquenão gostavadeGabrielDean.Ela tambémnãogostaradele,quandoDeanse juntaraàinvestigaçãoemAgosto,exibindoodistintivodoFBIequerendoassumirocontrolodasoperações.

Umassemanasdepois,tudomudaraentreelaeDean.Rizzoli olhou para a metade da refeição que ainda não comera,

subitamente sem apetite. Sentia que Korsak a observava. Quanto maistempoelaesperasse,menoscredívelseriaasuaresposta.

As coisas vão bem respondeu ela. Queres outra cerveja? Acho quevoupedirmaisumaCola.

Eleveiover-tehápoucotempo?;Ondeestáaempregada?Quandofoiisso?Háumassemanas?Háummês?Nãosei...Rizzolifezsinalàempregada,quenãoaviueseencaminhouparaa

cozinha.Oquê?Nãotensreparadonisso?Tenho outras coisas em que pensar, percebes? disparou ela. Foi o

tomdevozqueatraiu.Korsakrecostou-se, itando-acomoseuolhoclínico.Umolhoquesabiamuito.

Umtipobem-parecidocomoele talvez julguequenenhumamulherlheresiste.

Oquequerissodizer?Não sou tão estúpido como pareço. Percebo que alguma coisa não

vaibem.Sinto-onatuavoz.Eissoaborrece-me,porquetumerecesmelhor.Muitomelhor.

Eunãoquerofalardesteassunto.Nunca con iei nele. Eu disse-te, em Agosto. Parece-me que nessa

alturatambémnãoconfiavasnele.Rizzolifezdenovosinalàempregada,quevoltouaignorá-la.Háqualquercoisadedissimuladonesses tiposdoFBI.Em todosos

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que conheci. São todos falinhas mansas, mas nunca são frontais. Fazemjogosmentais.Julgam-semelhoresdoqueospolícias.Todaessaescumalhafederal.

OGabrielnãoédesses.Não?Nãoé.Sódizesissoporqueestásapanhadinhaporele.Porquêestaconversa?Porqueestoupreocupadocontigo.Écomoseestivessesacairdeum

penhasco e nem sequer pedisses socorro. Não creio que tenhas alguémcomquempossasfalardisto.

Estouafalarcontigo.Pois,masnãomeestásacontartudo.Masoquequeresqueeudiga?Elenãotemvindocáver-te,poisnão?Rizzolinãorespondeu,nemsequerolhouparaele.Concentrou-seno

muralpintadonaparedeatrásdele.Temosandadomuitoocupados.Korsaksuspiroueabanouacabeça,comumgestodecompaixão.Eunãoestouapaixonada,nemnadaquesepareça.Apelandoaoseu

orgulho,olhoufinalmenteparaele.Julgasqueficodeprimidasóporqueumtipomedeixa?

Bem,nãosei.Rizzoliriu-se,maspareceuumrisoforçado,atéaelaprópria.Ésósexo,Korsak.Tensumaexperiênciaeseguesoteucaminho.Éo

queosamantesfazem.Estásadizer-mequeésapenasumaamante?Nãomevenhascomessepaleiomachista!Não, pronto! Queres dizer que ninguém sai magoado? Ele vai-se

emboraetuficasnamesma?Rizzoliolhou-ofixamente.Ficonamesma.Ainda bem. Porque ele não merece, Rizzoli. Ele não merece um

minutodedesgosto.Eeuvou-lhedizerisso,dapróximavezqueovir.Porqueestásafazeristo?Afazeroquê?A interferir. A provocar. Eu não preciso disto. Já tenho problemas

quecheguem.Eusei.

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Esóestásapiorarascoisas.Korsakficouaobservá-la.Emseguida,baixouacabeça.Desculpadisseeletranquilamente.Mas,sabes,sóestouatentarser

teuamigo.De tudo o que ele pudesse ter dito, nada a teria afectado mais.

Rizzoli deu consigo a reprimir as lágrimas aomesmo tempo que itava acabeça calva de Korsak. Às vezes, ele causava-lhe repulsa, quando aenfurecia.

E havia momentos em que ela deitava um olhar surpreendido aointeriordaquelehomem,umhomemdecenteegeneroso,eenvergonhava-sedasuaimpaciênciaparacomele.

Não trocaram uma palavra enquanto vestiam o casaco e saíam doDoyle's, emergindo da nuvem de fumo de cigarro para a noiteresplandecente de neve. Da esquadra de Jamaica Plain, ao cimo da rua,saiu um carro-patrulha, cujo pirilampo mal se via através da cortina delocos.Viramambosocarroadescerarua,eRizzoliperguntouasimesmaqual seria a crise que o esperava. Havia sempre uma crise em qualquerlado.Casaisagritar,adiscutir.Criançasperdidas.Condutoresatordoados,encolhidosjuntodosseuscarrosameigados.

Tantasvidasdiferentesqueseintersectavamdemúltiplasmaneiras!A maioria das pessoas estava envolvida nos seus próprios casulos, numcaminhodouniverso.Umpolíciaviadetudo.

EntãooquetencionasfazernoNatal?perguntouele.Vou a casa dos meus pais. O meu irmão Frankie vem passar esta

quadraàcidade.Éaquelequeestánosfuzileiros,nãoé?E.Semprequeeleaparece,todaafamíliaseajoelhaeovenera.Olá...Umarivalidadezinhaentreirmãos?Nadadisso.Hámuitotempoqueperdiesseconcurso.OFrankieéo

maior.Etu,oquefazesnoNatal?Korsakencolheuosombros.Nãosei.Nesta resposta estava implícito um pedido de convite. Salva-me de

umNatalsolitário.Salva-medaminhaprópriavida lixada.MasRizzolinãopodiavaler-lhe.Nemsequerconseguiavaler-seasimesma.

Tenho alguns planos apressou-se a acrescentar Korsak, demasiadoorgulhoso para deixar que o silêncio se prolongasse. Talvez vá até àFlorida,veraminhairmã.

Parece uma boa ideia. Rizzoli suspirou, formando uma nuvem de

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vapor.Bem,tenhodeirparacasa.Precisodedormir.Se quiseres que voltemos a encontrar-nos, tens o número domeu

telemóvel,estábem?Pois, tenho.PassaumbomNatal.Rizzoliencaminhou-separao"seu

carro.Rizzoli!...Sim?Eu sei que ainda sentes alguma coisa pelo Dean. Desculpa-me por

ter dito aquelas coisas acerca dele. Mas continuo a achar que mereciasmelhor.

Elariu-se.Comosehouvesseumafiladetiposàespera,àminhaporta!Bemdisse ele, olhando para o cimo da rua e evitando, de repente,

encará-la.Háumtipo.Rizzoli icouimóvel,apensar:porfavornãomefaçasisto.Porfavor,

nãomeobriguesamagoar-te.Antes que ela pudesse reagir, ele virou-se abruptamente para o

carro.Fazendo-lheumacenodesleixado,contornou-oeen iou-seládentro.Rizzoli viu-o afastar-se e olhou para a toalha de neve que os pneusdeixaramparatrás.

OnzeJá passavada sete danoite quandoMaura chegou a casa.Ao virar

para a rampa de acesso, viu luzes acesas lá dentro. Não era a luzinsigni icante de algumas lâmpadas acesas por temporizadoresautomáticos, mas a incandescência alegre de muitos candeeiros quealguém ligara porque estava à espera dela. E através dos cortinados dasala,avistouumapirâmidedeluzesdeváriascores.

UmaárvoredeNatal.Era a última coisa que Maura esperava ver, e parou no meio da

rampa, a olhar para as luzes de várias cores a acender e a apagar,recordandoosNataisemqueforaelaafazeraárvoreparaVictor,emquetirara bolas frágeis das embalagens e as pendurara nos ramos que lhe

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perfumavam os dedos com o aroma acre do pinheiro. Lembrou-se dosNatais anteriores, quando erapequena e o pai a punha às cavalitas paraserelaacolocaraestrelaprateadanocimodaárvore.Ospaisnãotinhaminterrompido uma única vez essa tradição feliz, que no entanto ela seapressara a deixar fugir da sua vida. Era uma vida demasiado agitada,demasiado trabalhosa.Levara árvorepara casa,deitá-la fora, e ali icavadepoisaqueleobjectosecoeacastanhadonopasseio,àesperadocarrodolixo. Maura deixara-se desencorajar pelos pormenores incómodos eesquecera-sedaalegria.

Saiudagaragemfriae,aoentraremcasa,foirecebidacomocheiroa frango assado com alho e alecrim. Como era bom ser acolhida pelosaromasdo jantare teralguémàsuaespera!Ouviuosomda televisãonasalaefoiaoseuencontro,tirandoocasacoenquantopercorriaocorredor.

Victorestavasentadonochão,depernascruzadas, juntodaárvore,tentando desfazer um molho de teias. Ao vê-la, sorriu, com um arresignado.

Soutãobomnistocomoquandoéramoscasados.EunãoestavaàesperadisseMaura,olhandoparaasluzes.Bem, pensei que estamos a 18 de Dezembro e que tu ainda nem

tinhasumaárvore.Nãotivetempodeircomprá-la.HásempretempoparaoNatal,Maura.Amudança foimuito grande. Dantes, eras tu que andavas sempre

muitoocupadonestaépoca.Victorolhouparaela,porentreoemaranhadodeteiasprateadas.Etuatiravas-mesempreissoàcara,nãoera?Mauracalou-se,arrependidadoseuúltimocomentário.Nãoerauma

boa maneira de começar o serão, lembrar antigos ressentimentos. Deumeia volta e foi pendurar o casaco no roupeiro. De costas para ele,perguntou:

Possopreparar-teumabebida?Oquetiveres.Mesmoquesejaumabebidafeminina?Algumavezfuisexistanosmeuscocktails?Ela riu-se e foi para a cozinha. Tirou limas e sumo de arando do

frigorí ico.Mediuo tríplicesecoeavodcaedeitou-osnoshaker. Juntodolava-louça, misturou as bebidas com o gelo, sentindo que o recipientemetálicocomeçavaa icar frio.Misturar,misturar,misturar,comodadosachocalhar num copo. Tudo é um jogo, e o amor acima de tudo.Da última

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vez que ganhei, perdi, pensou ela. E desta vez, estou a jogar para quê?Para que haja uma hipótese de as coisas se recomporem entre nós? Ouparaficardenovodestroçada?

Dividiu o líquido gelado por dois copos de cocktail e ia a sair dacozinha quando reparou que o contentor do lixo estava cheio deembalagensdecomidavazias.Nãopôdedeixardesorrir.A inal,Victornãosetransformaranumcozinheiroporartesmágicas.Nessanoite,ojantardeambosficariaadever-seaoNewMarketDeli.

Quando entrou na sala, veri icou que Victor tinha desistido dependurar as teias e estava a arrumar as caixas vazias dos enfeites daárvore.

Otrabalhoquetiveste!exclamouela,pousandooscoposemcimadamesabaixa.Lâmpadas,luzesetudo.

NãoencontreidecoraçõesdeNatalnatuagaragem.DeixeitudoemSãoFrancisco.Enuncacomprasteoutras?NuncamaisfizumaárvoredeNatal.Jálávãotrêsanos,Maura.Maura sentou-se no sofá e bebeu tranquilamente um gole do seu

cocktail.E qual foi a última vez em que tu tiraste para fora essa caixa de

lâmpadas?Ele não disse nada e continuou a empilhar as caixas. Quando

respondeu,nãoolhouparaela.Tambémnãometemapetecidomuitofestejar.Atelevisãocontinuavaligada,semsom,easimagenssucediam-seno

ecrã. Victor pegou no controlo remoto e desligou-a. Depois, sentou-se nosofá, a uma distância confortável de Maura, sem lhe tocar, massuficientementepertoparadeixartodasashipótesesemaberto.

Olhouparaococktailqueelatrouxera.Écor-de-rosa!exclamouele,umpoucoadmirado.Avisei-tequeeraumabebidafeminina.Eleprovou.Sabearaparigasdivertidas.Durante alguns instantes, não disseram nada, saboreando as

bebidas à luz das lâmpadas da árvore que acendiam e apagavam. Umambiente acolhedor e confortável, mas Maura estava longe de sentir-sedescontraída.Nãosabiaoqueesperardoserão,nemtãopoucosabiaoqueeleesperava.TudoemVictoreradeuma familiaridadedesconcertante.Oseu cheiro, o modo como a luz do candeeiro incidia no seu cabelo. E os

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pequenos pormenores, que ela sempre considerara enternecedoresporque re lectiam a sua ausência de pretensiosismo: a camisa puída, ascalças de ganga desbotadas. O mesmo Timex que ele usava quando setinhamconhecido.Nãoposso irparaumpaísdoTerceiroMundocomumRolex no pulso, a irmara ele. Victor, qual Dom Quixote de La Mancha, alutar contra o moinho de vento da pobreza. Talvez Maura se tivessecansadodessalutahámuitotempo,maselecontinuavaempenhadonela.

Eelanãopodiadeixardeadmirá-loporisso.Victorpousouocopo.Hojevimaiscoisassobreasfreiras.Nonoticiário.Oqueandamelesadizer?Queapolíciaestavaadragarumlagonastraseirasdoconvento.De

quesetrata?Maura recostou-se no sofá. O álcool começava a dissolver a tensão

quesentianosombros.Encontraramumbebénolago.Odafreira?EstouàesperaqueotestedeADNoconfirme.Mastensacertezaqueobebéeradela?Temdeser.Ouentãoestecasotorna-separticularmentecomplicado.Assimconseguirásidentificaropai.SetiveresoADN.Em primeiro lugar, precisamos de um nome. E, mesmo que

consigamos estabelecer a paternidade, nunca saberemos se o sexo foiconsensualousehouveviolação.ComohavemosdeprovarsefoiumacoisaououtrasemotestemunhodeCamille?

Mesmoassim,podeserummotivoparaassassinaralguém.Semdúvida.Maura bebeu o resto do cocktail e pousou o copo. Fora um erro

beber antes do jantar. O álcool e a falta de sono conspiravam para lheturvarospensamentos.Esfregouastêmporas,tentandoobrigarocérebroamanteralucidez.

Eudevia alimentar-te,Maura.Pareceque tivesteumdia realmentedifícil.

Maurafezumsorrisoforçado.Conhecesaquelefilmeemqueomeninodiz:"Euvejogentemorta"?OSextoSentido.Pois bem, eu estou sempre a ver gente morta e já começo a icar

cansada. É isso queme deprime.ONatal está a chegar e eu nem sequerpenseiem fazerumaárvore,porque tragosempreasaladeautópsiasna

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cabeça.Aindaconservoo cheironasmãos.Numdia comohoje,depoisdefazerduasautópsias,chegoacasaenemconsigopensaremfazerojantar.Nem consigo olhar para um naco de carne sem pensar em ibrasmusculares.Oquemesabebeméumcocktail.Preparoabebida,cheirooálcoole,derepente, lávoltoeuparaolaboratório.Oálcooleoformoltêmambosomesmocheirointenso.

Nuncateouvifalarassimdoteutrabalho.Nuncamesentitãoassoberbadaporele.NãoparecesainvencíveldoutoraIsles.Bemsabesquenãosou.Mas desempenhasmuito bem esse papel. Inteligente e à prova de

bala.Sabesque intimidavasosteusalunosnaUniversidadedaCalifórnia?Todoselestinhammedodeti.

Mauraabanouacabeçaeriu-se.ARainhadosMortos.Oquê?Éassimqueospolíciasmechamamaqui.Nãonaminhacara.Maseu

soubeporportastravessas.Issoagrada-me.RainhadosMortos.Pois bem, eu detesto. Maura fechou os olhos e aconchegou-se nas

almofadas.Atéparecequesouumvampiro,umsergrotesco.Maura nem o sentiu levantar-se do sofá e ir para trás dela.

Assustou-se quando ele pousou de repente as mãos nos seus ombros.Ficou hirta, com as extremidades dos nervos bem alerta eextraordinariamentesensíveisaotacto.

Descontrai-tepediueleemvozbaixa,massajando-lheosmúsculos.Éumacoisaquenuncaaprendesteafazer.

Nãofaçasisso,Victor.Estás sempre de sobreaviso. Queres dar sempre uma imagem de

perfeição.Os dedos dele enterravam-se nos ombros e no pescoço dela.

Sondando, invadindo. Ela reagiu icando ainda mais tensa, e os seusmúsculosretesaram-se,nadefensiva.

NãoadmiraqueestejascansadadisseVictor.As tuasdefesasestãosempre alerta. Não consegues recostar-te e disfrutar a situação quandoalguémtetoca.

Nãofaçasisso!Mauraafastou-see levantou-se.Virou-separaele,aindacomapele

eriçada.

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Oquesepassaaqui,Victor?Euestavaatentarajudar-tearelaxar.Jáestourelaxada,obrigada.Estástãocrispadaqueatéparecequeosmúsculosestalam.Bem,oqueesperas?Nãoseioqueestásaquiafazer.Nãoseioque

pretendes.Equetalsevoltássemosaseramigos?Epodemosser?Porquenão?Quandoolhouparaele,sentiu-secorar.Porquehádemasiadahistóriaentrenós.Demasiada...Atracção,era

oqueelaestavaapensar,masconteve-se.Emvezdisso,acrescentou:Não sei muito bem se os homens e as mulheres conseguem ser

apenasamigos,afinal.Étristequepensesassim.É realista. Trabalho com homens todos os dias. Sei que eles se

sentem intimidados, e é isso que eu quero. Quero que eles sintamautoridade em mim. Um cérebro e uma bata branca. Porque assim quecomeçamapensaremmimcomomulher,osexoestásemprepresente.

Victorprotestou.Eissocontaminariatudo.Éverdade.Não interessa que tipo de autoridade lhes inspiras. Os homens

olhamparatietodosvêememtiumamulheratraente.Amenosqueen iesum saco na cabeça. O sexo está sempre presente. Não podes fechá-lo àchave.

Éporissoquenãopodemosserapenasamigos.Dizendoisto,Maurapegounoscoposefoiparaacozinha.Victornãofoiatrásdela.

Maura aproximou-se do lava-louça e icou a olhar para os copos,aindacomosabordalimaedavodcanabocaeocheirodelenonariz.Sim,osexoestavapresente,semdúvida,traiçoeiro,mostrando-lheimagensqueelatentavaafastar,masnãoconseguia.Pensounanoiteemquetinhamidoao cinema e chegado tarde a casa e tinham começado a despir-se um aooutro assim que entraram. Na maneira frenética e quase brutal comotinham feito amor ali mesmo, no soalho; os movimentos bruscos deletinham-na feito sentir-se utilizada, como se fosse uma prostituta. E ela"gostara.

Agarrou-seaolava-louçaesentiuaaceleraçãodoseupróprioritmo

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respiratório, sentiu o corpo a tomar a sua própria decisão, rebelando-secontraalógicaqueamantiveranocelibatodurantetodosestesmeses.

Osexoestásemprepresente.Aportaprincipalfechou-secomestrondo.Mauravirou-separatrás,sobressaltada.Correuparaasalaesóviu

aárvoredeNatalacintilar,masVictordesaparecera.Aoolharpelajanela,viu-oentrarnocarroeligaromotor.

Saiudecasaacorrer,escorregandonocaminhocobertodegelo,emdirecçãoaocarrodele.

Victor!Derepente,omotorparoueosfaróisdesligaram-se.Elesaiueolhou

paraela;acabeçadeleeraapenasumasilhuetaescuraporcimadacapotadocarro.Estavavento,eMaurasemicerrouosolhosparaseprotegerdosflocosdenevequelhepicavamapelecomosefossemagulhas.

Porquetevaisembora?perguntouela.Vaiparadentro,Maura.Estámuitofrio.Masporquetevaisembora?Mesmonasombra,Mauraviuanuvemfriadobafodele,exaladopor

frustração.Éóbvioquenãomequerescá.Volta.Euqueroquefiques.Maura contornou o carro e icou de frente para Victor. O vento

atravessava-lheablusafina.Recomeçaríamosaatacar-nosumaooutro.Comosemprefazemos.Victoriaaentrarnocarro.Elaagarrou-opelocasacoepuxou-oparasi.Nesseinstante,quando

elesevirouparaela,Maurateveacertezadoqueviriaaseguir.Fosseounãoirresponsável,nessemomentoeraoqueelaqueriaqueacontecesse.

Ele não teve de puxá-la para os seus braços. Ela já lá estava,procurando o calor dele, a boca dele com a sua. Sabores conhecidos,cheiros conhecidos. Os dois corpos encaixados, como sempre. Mauratremia,de frioedeexcitação.Ele abraçou-aeprotegeu-adovento comocorpo, enquanto se beijavam, ao mesmo tempo que se dirigiam para aportaprincipal.Comelesentrouumborrifodeneve,partículasbrilhantesqueescorregaramparaochãoassimqueeledespiuocasaco.

Nemchegaramaoquarto.Alimesmo, à entrada, ela desabotoou-lhe a camisa e libertou-o das

calças.Apeledelepareciaescaldanteemcomparaçãocomosseusdedos,entorpecidos pelo frio. Maura afastou o tecido, ansiosa pelo calor dele,

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desesperadaparasenti-lonasuaprópriapele.Quandochegaramàsala,jáa blusa dela estava desabotoada e as calças com o fecho aberto. Maurarecebeu-odenovonoseucorpo.Nasuavida.

Asluzesdaárvorecintilavamcomoestrelasdemuitascoresquandoela estava deitada no chão, debaixo dele. Fechou os olhos mas, mesmoassim,viuaquelasluzesapiscarporcimadela,num irmamentodecores.Os dois corpos rolaram juntos numa dança já conhecida, sematrapalhações,semaincertezadosprincipiantes.Elaconhecia-lheasmãos,osmovimentos, e quando o prazer se apoderou dela e ela gritou, não sesentiu envergonhada. Três anos de separação foram varridos por esteúnico acto. Depois, deixaram-se icar deitados no meio das roupas quetinhamdespido,eoabraçodelepareceu-lhetãofamiliarcomoumcobertorjágasto.

QuandoMaurareabriuosolhos,Victorobservava-a.Ésomelhorpresentequeeudesembrulheidebaixodeumaárvore

deNataldisseele.Mauraolhouparaumateiareluzentequecaíadeumramo.Éassimqueeumesinto.Desembrulhada.Expostaconfessouelaem

surdina.Dizesissocomosenãofosseumacoisaboa.Dependedoqueaconteceraseguir.Oqueaconteceaseguir?Maurasuspirou.Nãosei.Oquequeresqueaconteça?Nãoqueroquememagoemoutravez.Receiasqueeuofaça.Mauraencarou-o.Jáofizesteumavez.Magoámo-nosumao outro,Maura.De váriasmaneiras. As pessoas

queseamamfazem-nosempre,semintenção.Tuéquetivesteaquelecaso.Oquefizeu?Issonãonoslevaaladonenhum.Querosaberinsistiuela.Quemaltefizeu?Victorfezrolarocorpoe icoudeitadoaseulado,semlhetocar,de

olhospregadosnotecto.Lembras-tedodiaemquetivedepartirparaAbidjan?Lembrodisseela,aindacomosabordaamargura.Admito que foi um momento terrível para eu te deixar, mas fui

obrigadoa isso.Eueraaúnicapessoaquepodiaconduzirasnegociações.Tinhadeláestar.

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No dia seguinte ao funeral domeu pai? Maura olhou para ele. Euprecisavadeti.Precisavaqueestivessesemcasajuntodemim.

A One Earth também precisava de mim. Podíamos ter perdidoaquelecontentorcheiodemedicamentos.Oassuntonãopodiaesperar.

Bem,euaceitei,nãoéverdade?É exactamente essa a palavra. Aceitei. Mas eu percebi que icaste

furiosa.Porque isso estava sempre a acontecer. Aniversários, funerais...

Nadateconservavaemcasa.Euvinhasempreemsegundolugar.E era no que isso dava, não era? Eu tinha de escolher entre ti e a

OneEarth.Eeunãoqueriaescolher.Achavaquenãotinhadeescolher.Emuitomenoscomtantacoisaemcausa.

Nãopodessalvaromundosozinho.Possofazermuito.Antigamente,tambémacreditavasnisto.Mastudoacabacomotempo.Passasteanosobcecadopelaspessoas

que morriam noutros países. E depois, um dia acordaste e quisesteconcentrar-te na tua vida, para variar. Ter ilhos. Mas também nuncativestetempoparaisso.Maurarespiroufundoesentiuumnónagarganta,ao pensar nos bebés quedesejaramas que talvez nunca viesse a ter. Aopensar, também, em Jane Rizzoli, cuja gravidez lhe recordavadolorosamentequeelapróprianãotinha ilhos.Cansei-medeestarcasadacomumsanto.Euqueriaummarido.

Passaram-se alguns momentos. As luzes da árvore por cima deMauradiluíam-seemmanchascoloridas.Victorpegou-lhenamão.

Achoquefuieuquefalhei.Ela engoliu em seco, e as cores adquiriram de novo a nitidez das

luzesacintilarnumfio.Falhámosambos.Ele não retirou amão; apertou-a com força, como se receasse que,

aoretirá-la,nãohouvesseumasegundaoportunidadedecontacto.Podemos conversar sobre o que nos apetecer, mas não creio que

algumacoisatenhamudadoentrenósdisseela.Sabemosoquecorreumal.Isso não signi ica que desta vez seja diferente. Ele respondeu

serenamente:Não somos obrigados a fazer nada, Maura. Podemos apenas estar

juntos.Issonãobastanestemomento?Apenasestarjuntos.Pareciasimples.Deitadaaoladodele,sócomas

mãosatocarem-se,Maurapensou:Sim,possofazer isso.Possodistanciar-

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meosuficienteparadormircontigoenãodeixarquememagoes.Sexosemamor... Os homens gostavam disso, sem segundas intenções. Porque nãohaviaeladeconseguir?

Equemsabe sedestavez seráele a sairmagoado?, segredouumavozinhacruel.

DozeA viagem para Hyannisport devia ter levado só duas horas, em

direcçãoaosul,pelaEstrada3edepoispelaEstrada6,paraCapeCod,masfoi necessário parar duas vezes para Rizzoli ir à casa de banho. SóchegaramaSagamoreBridgeàs trêsda tarde.Depoisdeatravessaremaponte,encontraram-sederepentenazonabalnear.Aestradapassavaporumasériedepequenaslocalidades,comosefosseumcolardebelascontasen iadas ao longo do cabo. Rizzoli sempre fora a Hyannisport durante oVerão,quandoasestradasseencontravamentupidascomautomóveiseaspessoas de T-shirt e calções saíam em ila das geladarias. Nunca lá foranumdiade Invernocomoeste,emquemetadedosrestaurantesestavamfechadoseapenasalgunsbravoscirculavamnospasseios,comoscasacosabotoadosatéaopescoçoparaseprotegeremdovento.

FrostvirouparaOceanStreetedisseemvozbaixa,fascinado:Livra!Olhaparaotamanhodestascasas!Queresmudar-te?perguntouRizzoli.Talvez,quandoganharosmeusprimeirosdezmilhões.DizàAlicequeémelhorela irarranjandoessesprimeirosmilhões,

porque,comcerteza,nãovaissertuaconsegui-loscomoteusalário.Asplacasdesinalizaçãoconduziram-nosaumaentradaladeadapor

doispilaresdegranito;percorreramumcaminho largoquedesembocavanuma linda casa à beira-mar. Rizzoli saiu do carro e parou ao vento,tremendo de frio, para admirar a cobertura de madeira a que o salconferiaumtomprateadoeostrêstorreõesviradosparaomar.

Como é possível que ela tenha deixado tudo isto para ser freira?perguntouRizzoli.

Quando Deus nos chama, acho que temos de corresponder. Ela

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abanouacabeça.Se fosse eu, deixava que Ele continuasse a chamar. Subiram os

degrausdoalpendreeFrosttocouàcampainha.Umamulherpequenadecabelopretoabriuumanesgadaporta

sóparaverquemera.SomosdaPolícia deBostondisseRizzoli. Telefonámos antes. Vimos

falarcomMistressMaginnes.A mulher fez um sinal de reconhecimento e afastou-se para os

deixarentrar.A senhora está na Sala do Mar. Eu acompanho-os. Atravessaram

soalhosdetecaenceradaeviramparedescobertasdequadroscombarcosemaresencapelados.Rizzoli imaginouapequenaCamillenaquela casa, acorrerdeumladoparaooutronaquelechãoreluzente.Poderiacorrer?Ousóteriaautorizaçãoparaandar,solenementeesemfazerbarulho,nomeiodasantiguidades?

Amulherconduziu-osaumagrandesalarasgadaporjanelasatéaotectoquedavamparaomar.AvistadaságuasescurasvarridaspeloventoeradetalmodoespectacularqueabsorveuinstantaneamenteaatençãodeRizzoli.Noentanto,haviaumodoracrenasala.Cheirodeurina.

Rizzolivirou-seepercebeudondevinhaocheiro.Aopédasjanelas,exposto como uma obra de arte, estava um homem deitado numa camaarticulada.Umamulherdecabeloruivo,queestavasentadanumacadeiraao lado dele, levantou-se para cumprimentar os visitantes. Rizzoli nãoencontrou no rosto dela nenhuma semelhança com Camille. A beleza deCamilleera frágil,quaseetérea.Amulherà sua frenteeraaltivaocabelopareciaumelmoeassobrancelhaslembravamasasasdeumagaivota.

Sou Lauren Maginnes, a madrasta de Camille disse a mulher,estendendoamãoaFrost.

Algumas mulheres ignoram o seu próprio sexo e concentram-seapenas nos homens presentes. Lauren era uma delas, pois toda a suaatençãoconvergiuparaBarryFrost.

Fuieuque lhetelefonei.SouadetectiveRizzoli.EesteéodetectiveFrost.Lamentamosmuitoasuaperda.

SóentãoLaurensedignourepararemRizzoli.Obrigada disse ela. Olhou para amulher de cabelo preto que lhes

abrira a porta. Maria, diga aos meninos que desçam e venham terconnosco.Estáaquiapolícia.Laureenvirou-separaos recém-chegadoseapontouparaumsofá.Sentem-se,porfavor.

Rizzoli icousentadamesmoao ladodacama.Olhouparaamãodo

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homem,contraídacomoumagarra,eparaorostodele,imobilizadodeumlado,e lembrou-sedosúltimosmesesdevidadoavô,deitadonacamadacasaderepouso, comumolharatentoe irritado,prisioneirodeumcorpoque jánãoobedeciaàssuasordens.Viuomesmodiscernimentonoolhardestehomem.Eleolhavadefrenteparaela,umavisitaquenãoconhecia,eRizzoli viu nele desespero e humilhação. O desamparo de alguém cujadignidade lhe fora roubada.Nãodevia termuitomais de cinquenta anos,mas o corpo já o atraiçoara. Um io de saliva brilhava-lhe no queixo eescorriapara a almofada.Numamesa ao lado, estava toda aparafernálianecessáriaaoseuconforto: latasdeEnsure, luvasdeborrachaetoalhetesperfumados. Uma embalagem de fraldas para adultos. Uma vida inteirareduzidaaumamesacheiadeprodutosdehigiene.

Aenfermeiradoturnodanoiteestáumpoucoatrasada.Esperoquenão se importem de icar aqui enquanto eu tomo conta do Randall disseLaureen. Mudámo-lo para esta sala porque ele sempre adorou o mar.Agorapodeestarsempreaolharparaele.Laurenpegounumtoalhetedepapelelimpou-lhecuidadosamenteasalivadaboca.Pronto.Pronto,jáestá.Virou-seeolhouparaosdoisdetectives.Estãoaverporqueéqueeunãoquis ir a Boston? Não gosto de deixá-lo sozinho com as enfermeirasdurantemuitotempo.Ficaagitado.Nãoconseguefalar,masseiquesenteaminhafalta.

Laurenrecostou-senapoltronaeconcentrou-seemFrost.Temfeitoprogressosnainvestigação?Mais uma vez, foi Rizzoli que respondeu, determinada a atrair a

atençãodestamulhereirritadaporelacontinuarafugir-lhe.Estamosaseguiralgumasnovaspistasrespondeuela.ComcertezaquenãovieramatéHyannissóparamedizeremisso.Não. Viemos falar de alguns assuntos que preferimos tratar

pessoalmente.Equiseramsabercomoéramos,calculo.QueríamosterumanoçãodopassadodeCamille.Dafamíliadela.Pois bem, aqui estamos disse Lauren, agitando o braço. Foi nesta

casaqueelacresceu.Quemdiria,nãoéverdade?Queela iriatrocá-laporum convento. O Randall deu-lhe tudo o que uma rapariga poderiaambicionar.UmBMWnovinhoemfolhanodiadoaniversário.Umpóneisópara ela. Um roupeiro cheio de vestidos que elamal usou. Optou por sevestir de preto para o resto da vida. Optou... Lauren abanou a cabeça.Aindanoscustaaacreditar.

Nãogostaramdadecisãodela?

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Oh, eu habituei-me. A inal, a vida era dela. Mas o Randall nuncaaceitou. Continuava com esperança que ela mudasse de ideias. Que secansasse do que as freiras fazemdurante todo o dia e que voltasse paracasa.Laurenolhouparaomarido,deitadonacama,sempoderfalar.Creioquefoipor issoqueeleteveatrombose.ACamilleeraasuaúnica ilhaeelenãoconseguiaacreditarqueelaotivesseabandonado.

E a mãe biológica de Camille, Mistress Maginnes? Disse-me aotelefonequeelamorreu.

Camilletinhaapenasoitoanosquandoissoaconteceu.Quandoaconteceuoquê?Bem, chamaram-lhe uma dose excessiva de medicamentos,

acidental, mas estas coisas são realmente acidentes? O Randall já tinhaenviuvadoháváriosanosquandooconheci.Creioquepodemconsiderar-nos uma família reconstituída. Tenho dois ilhos do meu primeirocasamento,eoRandalltinhaaCamille.

HáquantotempoéqueasenhoraeoRandallestãocasados?Háquaseseteanos.Laurenolhouparaomaridoeacrescentou,numtomresignado:Paraomelhoreparaopior.Asenhoraeasuaenteadaeramíntimas?Eladesabafavaconsigo?A Camille? Lauren abanou a cabeça. Tenho de ser honesta. Nunca

fomosmuito chegadas, se é isso que quer saber. Ela já tinha treze anosquandoeuconhecioRandall,easenhorasabecomosãoosmiúdosnessaidade.Nãoqueremnadacomosadultos.Nãoéqueelame tratassecomose eu fosse a madrasta má. Não. Mas não ligávamos bem, acho eu. Eutentei,realmente,maselaerasempretão...

De repente, Lauren calou-se, como se receasse dizer alguma coisaquenãodevia.

Qual é o termo que procura, Mistress Maginnes? Lauren icou apensar.

Estranha disse ela por im. A Camille era estranha. Lauren olhouparaomarido,queaobservava,eapressou-seaacrescentar:

Desculpa, Randall. Sei que é terrível eu dizer isto, mas eles sãopolícias.Queremsaberaverdade.

Oquequerdizercom"estranha"?Porexemplo,quandovamosaumafesta,àsvezesreparamosnuma

pessoa que está completamente sozinha disse Lauren. Alguém que nãoolhaparanósde frente, percebe?Ela estava sempre en iada aumcanto,ouescondidanoquarto.Nuncanospassoupelacabeçaoqueelaestavaa

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fazer lá em cima. Estava a rezar! Ajoelhada, a rezar. A ler aqueles livrosquelheemprestouumacolegadaescola,queeracatólica.Nósnemsequersomos católicos, somos presbiterianos. Mas ela fechava-se no quarto. Aaçoitar-secomumcinto,acreditanisto?Parasepuri icar.Ondeéquevãobuscarestasideias?

Láfora,oventoborrifavaasjanelascomosalvindodomar.RandallMaginnes soltou um gemido quase inaudível. Rizzoli reparou que eleestavaaolhardefrenteparaelaeretribuiu,perguntandoasimesmaatéquepontocompreenderiaaquelaconversa.Secompreendessetudo, tantopiorparaele,pensou.Sabertudooquesepassavaàsuavolta.Saberqueailha,asuaúnica ilha,estavamorta.Saberqueoseuestadodesaúdeeraum fardo para amulher. Saber que o cheiro terrível que era obrigado asentirvinhadoseuprópriocorpo.

Rizzoliouviupassos,virou-seeviudois jovensaentrarnasala.Eraóbvioqueeramos ilhosdeLauren,comomesmotomdecabelocastanho-arruivado,asmesmas feições.Apesardeestaremvestidos informalmente,com calças de ganga e camisolas de gola alta, conseguiam projectar umacon iança com o seu quê de distintos, como amãe. Filhos-família, pensouRizzoli.

Estendeu-lhesamão.Fê-lo comumgesto irme,paramarcara suaautoridade.

SouadetectiveRizzoli.Osmeus ilhos,BlakeeJustindisseLauren.Vierampassarasférias

acasa.Os meus ilhos, a irmara ela. Nesta família, a reconstituição não

diluíra totalmente as fronteiras do amor. Mesmo após sete anos decasamento, os ilhosdela continuavama serdela e a ilhadeRandall eradele.

São os dois futuros advogados da família acrescentou Lauren. Comtodas as discussões que têm presenciado nesta casa, não terão falta depráticanasaladeaudiências.

Trocas de impressões, mãe corrigiu Blake. Nós chamamos-lhestrocasdeimpressões.

Àsvezes,nãoseiqualéadiferença.Os rapazes sentaram-se com a graciosidade fácil dos atletas e

olharamparaRizzoli,comoseesperassemqueoespectáculocomeçasse.Entãoandamnocolégio,hem?disseRizzoli.Emqual?EuandoemAmhersteoJustinandaemBowdoinrespondeuBlake.AmbosrelativamentepertodeBoston.

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Equeremseradvogados?Osdois?Eu jáme candidatei às faculdades deDireito disse Blake. Tenciono

seguir Direito do Espectáculo. Talvez resulte na Califórnia. Vou escolherumacadeiradeHistóriadoCinemaeestouconvencidodeque icareicomumasboasbases.

Pois, e ele também quer ir passear com actrizes giras. Ai não!interpôsJustin.

Ocomentáriovaleu-lheumapalmadanascostas.Rizzoliadmirou-sequeosdoisirmãosconseguissembrincarumcom

ooutrodestamaneiraenquantoameia-irmã,mortahátãopoucotempo,seencontravanamorgue.

Quandoéqueviramavossairmãpelaúltimavez?perguntouela.Blake e Justin olharam um para o outro e responderam quase em

uníssono:Nofuneraldaavó.IssofoiemMarço?RizzoliolhouparaLauren.QuandoCamilleveioa

casa?Laurenfezumsinalafirmativo.TivemosdepediràIgrejaqueaautorizasseaviracasaparaassistir

àscerimóniasfúnebres.Pareciaumaprisioneiraapedirapalavra.Eunempude acreditar, quando não a deixaram vir a casa outra vez, em Abril,depoisdeoRandalltersofridoatrombose.Oprópriopai!Eelaacatouessadecisão.Limitou-seaobedecer.Muitogostavaeudesaberoquesepassadentro desses conventos, para que receiem tanto deixá-las sair! Quais osabusos que escondem. Mas talvez fosse por isso que ela gostava de láestar.

Porquepensaassim?Porqueeradoqueelagostava.Decastigo.Desofrimento.Camille?Já lhedissequeelaeraestranha,detective.Quandotinhadezasseis

anos,descalçou-see foipassear.EmJaneiro.Estavamdezgrausnegativoslá fora! A criada foi dar com ela no meio da neve. É claro que todos osvizinhos vieram a saber. Tivemos de levá-la ao hospital por causa dasqueimadurasprovocadaspelo frio.Ela explicouaomédicoque izera issoporque os santos tinham sofrido e ela também queria sofrer. Estavaconvencida de que isso a aproximaria mais de Deus. Lauren abanou acabeça.Oquesepodefazercomumaraparigadestas?

Amá-la,pensouRizzoli.Tentarcompreendê-la.Eu queria que ela fosse a um psiquiatra, mas o Randall nem quis

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ouvir falar no assunto. Nunca admitiu sequer que a sua própria ilhafosse...

Laurencalou-se.Diga, mãe insistiu Blake. Ela era doida. Era o que todos nós

pensávamos.OpaideCamillesoltouumgemido.Lauren levantou-se e foi limpar mais um pingo de saliva que

escorriadabocadomarido.Masondeestáessaenfermeira?Deviaestaraquiàstrêshoras.QuandoCamilleveioacasaemMarço,quantotempoéquecá icou?

perguntouFrost.Laurenfitou-o,distraída.Cerca de uma semana. Podia ter icado mais tempo, mas resolveu

regressaraoconventomaiscedo.Porquê?Acho que ela não gostou-de estar com tanta gente. Vierammuitos

parentesmeusdeNewportaofuneral.Disse-nosqueelagostavadeseisolar.Issoédizerpouco.Elatinhamuitosamigos,MistressMaginnes?perguntouRizzoli.Setinha,nuncaostrouxecáacasa.Enaescola?Rizzolireparouqueosdoisrapazesolharamumparaooutro.Só aqueles que não andavam commais ninguém respondeu Justin

comumarispidezdesnecessária.Refiro-meanamorados.Surpreendida,Laurendeuumagargalhada.Namorados?Quandoelasósonhavaemtornar-seanoivadeCristo?Elaeraumajovematraente.Talvezvocêsnãoreparassemnisso,mas

tenhoacertezaquealgunsrapazesreparavamnela.RapazesqueestavaminteressadosneladisseRizzoli,olhandoparaosfilhosdeLauren.

Ninguémqueriasaircomela.Riam-sedeladisseJustin.EquandoveioacasaemMarço?Passoualgumtempocomamigos?

Houvealgumhomemquesemostrasseparticularmenteinteressadonela?Porqueinsistenosnamorados?perguntouLauren.Rizzolinãosabia

comohaviaderevelaraverdade.Desculpem, mas tenho de vos dizer isto. Pouco antes de ser

assassinada,Camilledeuàluzumfilho.Umbebéquemorreuànascença.Rizzoli olhou para os dois irmãos. Eles itaram-na com um ar

espantado.

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Por alguns momentos, o único som que se ouviu na sala foi o doventoafustigaromareasacudirasjanelas.

Não tem lidoos jornais?Todasessascoisas terríveisqueospadrestêm feito? Ela passou os dois últimos anos num convento! Esteve sob asupervisãodeles,sobaautoridadedeles.Asenhoradeviafalarcomeles.

Já interrogámos o único padre que tinha acesso ao convento. Eledispôs-seacederoseuADN.Essestestesestãoadecorrer.

Então,aindanemsabemseéeleopai.Porquenosincomodamcomestasperguntas?

O bebé podia ter sido concebido emMarço,MistressMaginnes. Nomêsemqueelaveioacasaparaassistiraofuneral.

Eachaqueissoaconteceuaqui!Ossenhorestiveramacasacheiadeconvidados.O que espera que eu faça? Que telefone a todos os homens que

vieram cá nessa semana? "A propósito, o senhor dormiu com a minhaenteada?"

Temos o ADN do bebé. Com a vossa ajuda, talvez conseguíssemosidentificaropai.

Laurenpôs-sedepénumabrirefechardeolhos.Peço-lhesquesaiamjádaqui.Asuaenteadamorreu.Nãoquerquedescubramosquemamatou?Estão a procurar no sítio errado. Lauren encaminhou-se para a

portaegritou:Maria!Ponhaestespolíciasnarua!O ADN dar-nos-ia a resposta, Mistress Maginnes. Com algumas

amostras,poderíamoseliminartodasassuspeitas.Laurenvirou-separaela.Entãocomecempelospadres.Edeixemaminhafamíliaempaz.Rizzoli entrouno carro e fechou a porta. EnquantoFrost aquecia o

motor, ela observou a casa e pensou como icara impressionada ao vê-lapelaprimeiravez.

Antesdeconheceraspessoasqueláviviam.Agora percebo porque é que Camille saiu de casa disse Rizzoli.

Imagino-aaviverali.Comaquelesirmãos.Comaquelamadrasta.Eles mostraram-se muito mais incomodados com as nossas

perguntasdoquecomamortedarapariga.Ao passarem pelos pilares de granito, Rizzoli olhou para trás pela

última vez, para a casa. Imaginou uma menina a deslizar como umfantasmanomeiodaquelessalões.Umameninaescarnecidapelosirmãose

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ignorada pela madrasta. Uma menina cujos sonhos e esperanças erampostos a ridículo por aqueles que deviam amá-la. Cada dia naquela casadesferiamaisumgolpena tua alma,maisdolorosodoque aqueimaduracausadapelogeloquandopasseavasdescalçananeve.QueriasestarmaispertodeDeus,conheceraternuraincondicionaldoSeuamor.Eelesriam-sedetiporisso,tinhampenadetioudiziam-tequeerasumacandidataaodivãdopsiquiatra.

Não era de admirar que os muros do convento parecessem tãoacolhedores.

Rizzolisuspirouevirou-separaafrente,olhandoparaaestrada.Vamosparacasadisseela.Estediagnósticodeixou-meperplexacomentouMaura.Colocouumasériedefotografiasdigitaisemcimadamesadasalade

reuniões. Os quatro colegas quase nem pestanejaram ao ver as imagens,porque tinham visto coisas muito piores na mesa de autópsias do queaquela pele roída pelos ratos e aqueles nódulos in lamados. Pareciammuitomaisconcentradosnacaixadospãezinhoscommirtilos frescosqueLouise trouxera nessamanhã, uma oferta que osmédicos devoravamdebomgrado,olhandoaomesmo tempoparaaquelas fotogra ias indigestas.Aqueles que trabalham com os mortos aprendem a não deixar que asimagens e os cheiros lhes tirem o apetite, e entre os patologistas queestavamsentadosàvoltadamesahaviaumqueapreciavaparticularmentefoiegras,umprazernãoofuscadopelo factodepassarosdiasadissecarígados humanos. A avaliar pela sua barriga avantajada, nada tirava oapetiteaoDr.AbeBristol,quemastigavaalegrementeoterceiropãozinhoquandoMaurapousouaúltimafotografia.

Estaé a sua JaneDoe?perguntouoDr.Costas.Maura fezumsinalafirmativo.

Sexo feminino, trinta a quarenta e cinco anos de idade, com umferimentodebalanopeito.Foiencontradacercadetrintaeseishorasapósa morte no interior de um prédio abandonado. Houve excisão do rostodepoisdamorte,assimcomoamputaçãodasmãosedospés.

Céus!Aquiestáumtaradoparasi.SãoestaslesõesnapelequemeconfundemdisseMauraapontando

paraasfotografias.Osroedoresfizeramalgunsestragos,masapeleintactaésuficienteparadetectaromauaspectodestaslesõessubcutâneas.

ODr.Costaspegounumadasfotografias.Não sou especialista, mas diria que este é um caso clássico de

inchaçosavermelhadosafirmouelecomumarsolene.

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Todos se riram. Os médicos atarantados com as lesões cutâneaslimitavam-se com frequência a descrever o aspecto da pele, semconheceremascausas.Os inchaçosavermelhadospodiamserprovocadospor qualquer coisa, desde uma infecção viral à auto-imunidade, e erampoucasaslesõesdepelequepermitiamumdiagnósticoimediato.

ODr.Bristol paroudemastigar o seupãozinho, apontouparaumadasfotografiasedisse:

Temosaquiumasulcerações.Sim, alguns nódulos apresentam ulcerações pouco profundas com

formação de crostas. E noutros vê-se a escamação prateada quecaracterizaapsoríase.

Culturasbacterianas?Nadaquenãosejavulgar.ApenasStaph.epidermidis.Oesta ilococoepidérmicoeraumabactériavulgarnapele,eBristol

limitou-seaencolherosombros.Contagioso.Easbiópsiasdapele?perguntouCostas.Ontem estive a examinar os diapositivos respondeu Maura. Há

alterações in lamatórias agudas. Edema, in iltração por granulócitos.Alguns microabcessos profundos. Também se registam alteraçõesinflamatóriasnosvasossanguíneos.

Evocênãofezculturadebactérias?NemacoloraçãoGramnemaFiteFaracoindicaramaexistênciade

bactérias.Estessãoabcessosestéreis.Vocêjásabeacausadamorte,nãoéverdade?disseBristol,comas

barbaspretascheiasdemigalhas.Queinteressaoquesãoestesnódulos?Detestopensar queme falha qualquer pormenor óbvioneste caso.

Nãopossuímosaidenti icaçãodestavítima.Nãosabemosmaisnadaacercadela,exceptoacausadamorteeofactodeapresentarestaslesões.

Bem,qualéoseudiagnóstico?Maura olhou para os inchaços de aspecto desagradável, como se a

vítimasofressedecarbúnculo.Eritemanodosorespondeuela.Causa?Mauraencolheuosombros.Idiopática.Quesignificava,apenas,decausadesconhecida.Costasriu-se.Esseseudiagnósticonãoéconvincente.Nãoseiqueoutracoisalhehei-dechamar.

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NemnósdisseBristol.Tambémconcordocomoeritemanodoso.Maura voltou para a secretária, releu o relatório da autópsia já

dactilografado da Senhora dos Ratos e ditado por ela e sentiu-seinsatisfeita ao assiná-lo. Sabia qual fora a hora aproximada da morte davítimaeacausa.Sabiaqueamulherdeviaserpobreequesofreraporsesentirhumilhadacomoseuaspecto.

Olhou para a caixa dos diapositivos da biópsia, etiquetada com onome de Jane Doe e o número da icha. Tirou um dos diapositivos eexaminou-o aomicroscópio. Através da lente, detectou espirais rosadas evioláceas.Eraumamanchadehematoxilinaedeeosinanapele.Mauraviuopontilhado escurodas células in lamatórias agudas, o círculo ibrosodeumvaso sanguíneo in iltradopor glóbulosbrancos, sinaisdequeo corpoestava a reagir, a enviar os seus soldados de células imunes para a lutacontra...Oquê?

Ondeestavaoinimigo?Reclinou-se na cadeira, a pensar no que vira na autópsia. Uma

mulher sem rosto nem mãos, mutilada por um assassino que ceifaraidentidadesevidas.

Masporquêospés?Porquelevaraeleospés?Esteéumassassinoquepareceagircomumalógicafriaenãocom

perversõessinuosas,pensouela.Atiraamatar,comumabalae icazeletal.Despeavítimamasnãoabusasexualmentedela.Amputa-lheasmãoseospés e esfola-lhe a cara. Em seguida, deixa o cadáver num local emque apeledavítimaserádevoradapelosnecrófagos.

MasMauravoltavasempreaospés.Aamputaçãodospésnão faziasentido.

Voltou a pegar no envelope com as radiogra ias da Senhora dosRatos e colocou as películas do tornozelo no visor. Mais uma vez, icouchocadacomademarcaçãobrutaldacarnecortada,masnãoviunadadenovo, nenhumas pistas que explicassem o que levara o assassino aefectuaraamputação.

Retirou as radiogra ias do visor e substituiu-as pelas do crânio,frontais e laterais. Observou os ossos da face da Senhora dos Ratos etentou imaginar como seria o rosto. Não tens mais de quarenta e cincoanos,mas jáperdesteosdentesdecima,pensouela. Já tensomaxilardeumavelha,osossosdafaceestãoaapodrecerpordentroeoteunarizestáa afundar-se numa cratera enorme. E há nódulos horríveis espalhadospelo teu torso e pelos teus membros. Se te visses ao espelho, seriadoloroso.Edepoissaíres,ficaresexpostaaosolharesdosoutros...

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Mauraobservouosossosabrilharnovisor.Epensou:euseiporqueoassassinolevouospés.

FaltavamapenasdoisdiasparaoNatal,equandoMauraentrounocampusdeHarvard, encontrou-oquasedeserto.O jardimeraumaamplaextensão de branco, com umas pegadas aqui e ali. Percorreu o caminho,comapastaeumgrandeenvelopederadiogra iasnamão,sentindonoaroodorpenetrantedeumnevãoiminente.Algumasfolhasmortaspendiam,trémulas,dasárvoresnuas.Unsveriamnestecenárioumpostaldeboas-festas,maselaviaapenasoscinzentosmonótonosdo Inverno,umaépocadequejáestavafarta.

Quando chegou ao Museu Peabody de Arqueologia de Harvard,tinha asmeias e a bainha das calças ensopadas em água fria. Sacudiu aneveeentrounumedi ícioquecheiravaahistória.Osdegrausdemadeirarangeram quando ela desceu à cave. A primeira coisa em que reparou,assimqueentrounogabineteescurodaDra.JulieCawley,foinascaveirashumanas, pelo menos uma dúzia delas, que forravam as estantes. Umaúnica janela,rasgadabemacimanaparede,estavasemicobertapelaneveeapoucaluzqueconseguiaentrarincidiadirectamentenacabeçadaDra.Cawley.Eraumamulheratraente,cujocabelogrisalhopenteadoparacimaparecia adquirir uma tonalidade de estanho naquela semiobscuridade.Trocaramumapertodemão, um cumprimento estranhamentemasculinoentreduasmulheres.

ObrigadapormereceberdisseMaura.Estouansiosaporveroquetemparamemostrar.ADra.Cawleyacendeuumcandeeiro.Graçasàsualuzamarelada,o

gabinetepareciasubitamentemaisquente.Maisacolhedor.Gostodetrabalharàsescurasdisseela,apontandoparaobrilhodo

ecrãdocomputadorquetinhaàfrente.Ajuda-meaconcentrar.Maséduroparaosolhosdeumapessoademeiaidadecomoeu.

Mauraabriuapastaeretirouumdossiêcomfotografiasdigitais.Estas são as fotogra ias que tirei àmorta. Lamento que não sejam

muitoagradáveisdever.ADra.Cawleyabriuodossiêeparou,olhandoparaafacemutilada

daSenhoradosRatos.Já há algum tempoquenão assisto a uma autópsia. É verdadeque

nunca gostei. Sentou-se à secretária e respirou fundo. Os ossos parecemmuitomaislimpos.Edecertomodomenospessoais.Veracarneéquedáavoltaaoestômago.

Tambémtrouxeasradiografiasdela,sepreferirvê-lasprimeiro.

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Não, tenho de olhar para isto. Tenho de ver a pele. Passoulentamente à fotogra ia seguinte e parou, horrorizada. Meu Deus! O queaconteceuàsmãos?perguntouelaemsurdina.

Foramamputadas.ADra.Cawleydeitou-lheumolharatónito.Porquem?Pelo assassino, calculamos nós. As duasmãos foram amputadas. E

algumaspartesdospés.Aface,asmãos,ospés...Estassãoasprimeiraszonasdocorpoque

euprocurariaparafazerestediagnóstico.Talvez tenha sido por isso que ele as removeu. Mas trago aqui

outrasfotografiasquetalvezaajudem.Aslesõescutâneas.ADra.Cawleyvirou-separaoconjuntodeimagensseguinte.Sim disse ela em voz baixa, enquanto as observava devagar, uma

poruma.Istopodiaser...O olhar de Maura desviou-se para a ila de caveiras que se

encontravamemcimadaestante,sempercebercomoéqueaDra.Cawleyconseguia trabalharnaquelegabinete, com todasaquelasórbitasvaziasaolharpara ela. Pensouno seupróprio gabinete, complantas envasadas equadros com motivos lorais... Não havia nada nas paredes que lhelembrasseamorte.

MasaDra.Cawleyoptaraporrodear-sedasprovasdasuaprópriamortalidade. Como professora de História da Medicina, erasimultaneamente médica e historiadora, uma mulher que sabia ler asmisérias escondidas nos ossos dos mortos. Sabia olhar para as caveirasque tinha em cima da estante e ver, em todas elas, uma história desofrimento.Umaantigafractura,umdentedosisoencravadoouumtumorno maxilar. Muito depois de a carne se desfazer, os ossos aindaconseguiamcontarassuashistórias.Eaavaliarpelasmuitasfotogra iasdaDra. Cawley tiradas em sítios arqueológicos de todo o mundo, há váriasdécadasqueelaexploravaessashistórias.

ADra.Cawleylevantouacabeça.Algumas destas parecempsoríase. Percebo que tenha sido umdos

diagnósticos que você ponderou. Também podem ser in iltraçõesleucémicas. Mas estamos a falar de um grande embusteiro. Podem sermuitascoisasdiferentes.Fezbiópsiasdapele?

Fiz,nomeadamenteparadetectarbacilosdeacidificaçãorápida.E?Nãovinenhum.

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ADra.Cawleyencolheuosombros.É possível que ela tenha recebido tratamento. Neste caso, já não

haveriabacilosnabiópsia.Épor issoquevimterconsigo.Semumadoençaactiva,sembacilos

paraidentificar,nãoseimesmocomohei-defazerestediagnóstico.Deixe-meverasradiografias.Mauraentregou-lheoenvelopegrande.ADra.Cawley levou-opara

um visor instalado na parede. Naquele gabinete repleto de artefactos dopassado caveiras, livros antigos e fotogra ias commuitasdécadas, o visordestacava-sepelasuamodernidade.ADra.Cawleydeuumavistadeolhospelasradiografiase,porfim,inseriuumaporbaixodasmolas.

Era uma radiogra ia do crânio. Sob os tecidos moles mutilados, asestruturasósseasdafacepermaneciamintactas,brilhandocomoacabeçade um morto em contraste com o fundo negro. A médica examinou-a,retirou-adovisoresubstituiu-aporumaimagemlateraldocrânio,captadadeperfil.

Ah,cáestamosdisseelaemvozbaixa.Oqueé?Está a ver aqui? Onde devia estar o osso nasal anterior? A Dra.

Cawleyacompanhoucomodedoaquiloquedevia tersidoacurvaturadonariz. Houve uma atro ia avançada do osso. Aliás, há uma obliteraçãoquasetotaldoossodonariz.Amédicaaproximou-sedaestanteemqueseencontravam as caveiras e pegou numa. Deixe-me mostrar-lhe umexemplo. Esta caveira foi exumada de um cemitério medieval naDinamarca.Estavaenterradanumanecrópoledesolada,muitoafastadadocemitério.Aqui,asalteraçõesin lamatóriasdestruíramumaquantidadetaldetecidoósseoqueexisteapenasumori ícionosítioemquedeviaestaronariz. Se fervêssemos os tecidos moles desta sua vítima, o cérebro delaseriamuitoparecidocomeste.

Nãosetratadeumalesãopost-mortem.Épossívelqueoossonasaltenhasidoquebradoquandosedeuaexcisãodaface?

Isso não justi icaria a gravidade das alterações que detecto nestaradiogra ia. E hámais. ADra. Cawley pousou a caveira e apontou para apelícula.Estamosperanteumaatro iaeumrecessodomaxilardetalmodogravesqueosdentesfrontaissuperioresforamafectadosecaíram.

Eujulgavaqueissosedeviaàfaltadehigienedental.Pode ter contribuído. Mas isto é outra coisa. É muito mais do que

uma gengivite em fase avançada. Fez as outras radiogra ias que sugeri?perguntouaDra.CawleyolhandoparaMaura.

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Estãodentrodoenvelope.Fizemosumaradiogra iainvertidaeumasérieperiapicalpararealçarasmarcasnosmaxilares.

ADra.Cawleytiroumaisradiogra iasdoenvelope.Colocounovisoruma radiogra ia apical, em que se via a base da cavidade nasal. Porinstantes, não disse nada, como que fascinada pelo brilho esbranquiçadodoosso.

Háanosqueeunãoviaumcaso comoestedisse ela emvozbaixa,espantada.

Entãoos raiosXpermitem fazerumdiagnóstico?Aparentemente,aDra.Cawleysaiudoseutranse.Virou-separatrásepegounacaveiraqueestavaemcimadasecretária.

Vê como houve atro ia e afundamento do processo alveolar damaxila? disse ela, virando a caveira ao contrário paramostrar o osso dovéu palatino. A in lamação destruiu este osso. Registou-se um tal recessodas gengivasqueosdentesda frente caíram.Mas a atro ianão icouporaqui. A in lamação continuou a devorar o osso e a destruir não só aabóbada palatina como os cornetos do nariz. A face foi literalmenteconsumida,apartirdedentro,atéqueovéupalatinoabriuburacosecaiu.

Comoestamulherdeveterficadodesfigurada!A Dra. Cawley virou-se e olhou para a radiogra ia da Senhora dos

Ratos.SeestivéssemosnaIdadeMédia,elateriasidoumobjectodehorror.Entãoistoésuficienteparafazermosumdiagnóstico?É quase certo que esta mulher padecia da doença de Hansen

respondeuaDra.Cawley.

TrezeO nome parecia su icientemente inócuo àquelas pessoas que não

reconhecessem o seu signi icado.Mas a doença tinha outra denominaçãocom ressonâncias de horror: lepra. Trazia àmemória imagensmedievaisde intocáveisqueenvergavam túnicas compridaseescondiamo rosto,depárias e desgraçados que pediam esmola. Das campainhas da lepra, quesoavamparaavisarosincautosdaaproximaçãodeummonstro.

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Tais monstros não eram mais do que as vítimas de um invasormicroscópico: o Mycobacteríum leprae, um bacilo que se desenvolvelentamenteevaides igurandoàmedidaquesemultiplica,enchendoapeledenódulosde aspectomuitodesagradável.Destrói osnervosdasmãos edospésdetalmodoqueasvítimasdeixamdesentirdor,nãoseprotegemdas agressões e os seusmembros tornam-se vulneráveis a queimaduras,traumaseinfecções.Comapassagemdotempo,amutilaçãoprossegue.Osnódulosengrossameacanadonarizabate.Osdedosdasmãosedospés,cobertosdeferidas,começamadesaparecer.Equandoodoenteacabapormorrer,nãoésepultadonocemitério,masbanidoeenterradomuitoparaalémdosseusmuros.

Aténamorteoleprosoeraevitado.Verumdoentenumafasetãoavançadaéumacoisamuitoraranos

Estados Unidos a irmou a Dra. Cawley. A medicina moderna conseguiriaconteradoençamuitoantesdeelaprovocaresteníveldedes iguração.Aterapiadostrêsmedicamentosconseguecuraratéospiorescasosdelepralepromatosa.

Estou a partir do princípio de que esta mulher foi tratada disseMaura.Porquenãovibacilosactivosnasbiópsiasdapele.

Sim, mas é óbvio que o tratamento chegou tarde para ela. Reparenestasdeformidades.Aquedadosdenteseocolapsodosossosdaface.Elajáestavainfectadahábastantetempo,talvezhádécadas,antesderecebercuidadosmédicos.

Atéodoentemaispobredestepaísteriarecebidotratamento.Esperobemquesim,porqueadoençadeHansenéumaquestãode

saúdepública.Entãoestamulherdeviaserumaimigrante.Cawleyconcordou.Esta doença ainda se encontra em certas populações rurais. A

maioriadoscasossitua-seapenasemcincopaíses.Quais?Brasil,Bangladesh,Indonésia,Myanmare,evidentemente,índia.A Dra. Cawley repôs a caveira na estante e em seguida juntou as

fotogra ias espalhadas em cima da secretária. Mas Maura quase nemreparounoqueaoutramulherfazia.Olhouparaaradiogra iadaSenhoradosRatosepensounoutravítima,noutrocrime.Emsanguederramado,nasombradeumcrucifixo.

índia.AirmãUrsulatinhatrabalhadonaíndia.AAbadiadeGraystonespareciamaisvelhaedesoladadoquenunca

quandoMauratranspôsoportãonessatarde.FoiavelhairmãIsabelquea

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conduziu através do pátio, com umas incongruentes botas de neve L.L.Bean a espreitarem por baixo do hábito preto. Quando o Inverno erabrutal,atéasfreirasrecorriamaoconfortodaGore-Tex.

AirmãIsabelencaminhouMauraparaogabinetevaziodamadreeem seguidadesapareceuno corredor escuro, a arrastar ospés, deixandoatrásdesiumecoquesefoidesvanecendo.

Mauratocounoradiadorde ferro fundidoqueseencontravaaseulado;estavafrio.Resolveunãotirarocasaco.

Passou tanto tempo que ela começou a pensar se teria sidoesquecida,seavelhairmãIsabeljánãoselembravadelaquandochegaraao fundodocorredor.Ouvindoosruídosdoedi ícioeasrajadasdeventonajanela,Mauraimaginou-seapassaravidainteiradebaixodaqueletecto.Osanosdesilêncioeoração,osrituais imutáveis.Haviaumcertoconfortonesse tipo de existência, pensou. Saber sempre como iria correr o dia.Nadadesurpresasnemdeagitação.Levantar-sedacamaevestirsempreamesmacoisa, ajoelhar-se e fazer sempreasmesmasorações,percorrersempre osmesmos corredores escuros para ir tomar o pequeno-almoço.Dooutroladodosmuros,assaiasdasmulherespodiamsubiredescer,osautomóveispodiamostentarnovas formase cores eumagaláxiamutávelde estrelas de cinema apareceria e desapareceria dos ecrãs.Mas dentrodaquelesmuros,os rituais continuavama serosmesmos,mesmoquandooscorposperdiama irmeza,asmãoscomeçavama tremereomundosetornavamaissilenciosocomaperdadeaudição.

Consolo,pensouMaura.Contentamento.Sim,esteserammotivosquejustificavamoafastamentodomundo,motivosqueelacompreendia.

Não sentiu Mary Clement a aproximar-se e icou sobressaltada aoveramadrenasoleiradaporta,aobservá-la.

Reverendamadre.Deduzoquetenhamaisperguntasafazer,nãoéassim?AcercadairmãUrsula.MaryClemententrounogabinete,comosedeslizasse,esentou-seà

secretária. Num dia tão gélido, nem ela estava imune ao frio do Inverno;por baixo do véu, trazia uma camisola de lã cinzenta bordada com gatosbrancos. Cruzou as mãos sobre a secretária e itou Maura com um arcarrancudoenãocomaexpressãoamigáveldaprimeiramanhã.

Asenhorafeztudoparadesestabilizaranossavida.Paradestruiramemória da irmã Camille. E agora quer repetir o processo com a irmãUrsula?

Elahaviadegostarquedescobríssemosqueméoseuagressor.

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E que terríveis segredos imagina que ela esconde? Quais são ospecadosqueprocuraagora,doutoraIsles?

Nãosãopecados,necessariamente.AindahápoucosdiasseconcentravaapenasemCamille.E talvez isso nos tenha impedido de sondarmelhor a vida da irmã

Ursula.Nãoencontraráescândalos.Nãoandoàprocuradeescândalos.Procuroomotivodoagressor.Para matar uma freira de sessenta e oito anos? Mary Clement

abanouacabeça.Nãomeocorrenenhummotivoracional.A madre disse-nos que a irmã Ursula cumpriu uma missão no

estrangeiro.Naíndia.A mudança repentina de assunto pareceu apanhar de surpresa

MaryClement,quesemexeunacadeira.Porqueéqueissoérelevante?Conte-me mais coisas. Fale-me do período em que ela esteve na

índia.Nãoseiexactamenteoquepretendesaber.Elatinhaconhecimentosdeenfermagem?Sim. Trabalhou numa pequena aldeia nos arredores da cidade de

Hyderabad.Esteveládurantecercadecincoanos.EregressouaGraystonesháumano?EmJaneiro.Elaralavamuitodotrabalhoqueláfez?Não.Passoulácincoanosenuncafaloudassuasexperiências?Nósaquidamosvaloraosilêncio.Nãoàconversaociosa.Não considero que falar de uma missão no estrangeiro fosse

conversaociosa.Já viveu no estrangeiro, doutora Isles? Não num belo hotel de

turismo,ondeosempregadosmudamoslençóistodososdias.Re iro-meaaldeiasemqueosesgotoscorremparaaruaeascriançasestãoamorrerde cólera. A experiência dela lá não era um tema de conversaparticularmenteagradável.

Disse-nosque tinhahavidoviolênciana índia.Quea aldeia emqueelatrabalhavafoiatacada.

Amadrebaixouacabeçaeolhouparaapelegretadaevermelhuscadasmãoscruzadasemcimadasecretária.

Reverendamadre?disseMaura.

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Não sei a história toda. Ela nuncame falou disso. O pouco que sei,contou-meopadreDoolin.

Queméele?Trabalha no arcebispado deHyderabad. Telefonou da índia, pouco

depois de aquilo ter acontecido, para me comunicar que a irmã Ursularegressava a Graystones. Que era seu desejo voltar a viver em clausura.Recebemo-la de braços abertos, evidentemente. Esta é a casa dela.Naturalmente,eraaquiqueencontrariaconsolação,depois...

Depoisdequê,reverendamadre?Domassacre.NaaldeiadeBara.Derepente,ajanelaestremeceu,comumarajadadevento.Dooutro

lado do vidro, o dia perdera todas as cores. Via-se um muro cinzentoencimadoporumcéucinzento.

Era láqueela trabalhava?perguntouMaura.MaryClement fezumsinalafirmativo.

A aldeia era tão pobre que não tinha telefone nem electricidade.Viviamláquasecempessoas,maspoucosseatreviamavisitá-las.FoiessaavidaqueairmãUrsulaescolheu.Servirosmaisdesafortunados.

Maura pensou na autópsia da Senhora dos Ratos. No crânio dela,deformadopeladoença.

Era uma aldeia de leprosos disse ela baixinho. Mary Clementconfirmou.

Na índia, consideram-nos os mais impuros de todos. Sãodesprezadose temidos.Expulsospela família.Vivememaldeiasespeciais,onde podem refugiar-se da sociedade, onde não têmde esconder a cara.Ondeosoutrossãotãodeformadoscomoeles.AmadreolhouparaMaura.Nemissoevitouqueelesfossematacados.Barajánãoexiste.

Amadredissequehouveummassacre.FoioqueopadreDoolinlhechamou.Umamortandade.Quemfoi?Apolícianunca identi icouos agressores. Podem ter sidomembros

deoutrascastas.Oufundamentalistashindus,furiososcomofactodeumafreiracatólicavivernoseiodeles.Podemtersidoos tamils,oualguémdameia dúzia de facções separatistas que se degladiamna região.Mataramtoda a gente, doutora Isles. Mulheres, crianças. Duas enfermeiras daclínica.

MasUrsulasobreviveu.Porque não estava em Barahèssa noite. Tinha partido na véspera

para ir buscar medicamentos a Hyderabad. Quando voltou na manhã

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seguinte, encontrou a aldeia reduzida a cinzas. Os operários de umafábricapróximatambémláestavam,àprocuradesobreviventes,masnãoencontraram nenhum. Até os animais as galinhas, as cabras foramchacinados,eoscorposqueimados.AirmãUrsuladesmaiouquandoviuoscadáveres, eummédicoda fábrica tevede interná-lana sua clínica atéopadreDoolinchegar.FoiaúnicapessoaquesobreviveuemBara.Foiumafelizarda.

Uma felizarda, pensou Maura. Poupada à mortandade, pararegressar à Abadia de Graystones e descobrir que a morte não a tinhaesquecido.Quenemalipodiaescapar-lhe.

Osolharesdasduasmulherescruzaram-se.Nãoencontraránadavergonhosonopassadodela.Apenasumavida

inteiraaoserviçodeDeus.Deixeamemóriadanossairmãempaz,doutoraIsles.Deixe-aempaz.

Maura e Rizzoli estavam no passeio, à porta daquele que fora orestaurante Mama Cortinas, e o vento atravessava-lhes os casacos comoumalâminagelada.EraaprimeiravezqueMauraseencontravaalidedia,eviuumaruadeprédiosabandonados, cujas janelasolhavamparabaixocomoórbitasvazias.

Masquebelazonaestaparaondevocêmetrouxe!exclamouRizzoli,levantando a cabeça e olhando para a tabuleta descorada do MamaCortinas.AsuaJaneDoefoiencontradaaqui?

Nacasadebanhodoshomens.Estavamortahácercadetrintaeseishorasquandoaexaminei.

E não tem pistas que permitam identi icá-la? Maura abanou acabeça.

Considerando o estado avançado da doença de Hansen, é possívelqueelativessechegadoaopaíshápoucotempo.Talvezsemdocumentos.

Rizzoliaconchegoumaisocasacoaocorpo.Ben-Hurdisseelaemvozbaixa.Éoqueissomefazlembrar.OVale

dosLeprosos.Ben-Hureraapenasumfilme.Masadoençaéreal.Aquiloquefazàcara,àsmãos.Podeserfortementemutiladora.Eraissoqueaterravaosantigos.O

simples facto de verem um leproso podia levar as pessoas a gritar dehorror.

Céus! E pensar que a temos mesmo aqui em Boston. Rizzoliestremeceu.Estáfrio.Vamosláparadentro.

Entraramnobeco,pisandoocaminhogeladoqueseformaracomas

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pegadasdemuitosagentesdaautoridade.Alipodiamproteger-sedovento,masopoçodeescuridãoentreosprédioseraaindamaisdesagradável,ereinava um silêncio lúgubre. A soleira da porta do restaurante estavavedadaporfitadapolícia.

Maura tirouachavee inseriu-anocadeado,masestenãoseabriu.Elaagachou-se,remexendonafechaduragelada.

Porquelhescaemosdedos?perguntouRizzoli.Oquê?Quandoalguémapanhalepra.Porquelhecaemosdedos?Adoença

atacaapele?Essabactériadevoraacarne?Não. Actua de uma maneira diferente. O bacilo da lepra ataca os

nervos periféricos, e os dedos das mãos e dos pés icam dormentes. Odoente não sente dor. A dor é o nosso sistema de alarme, faz parte donosso mecanismo de defesa contra as agressões. Sem ele, podíamosmergulharosdedosemáguaaferverenãosentiríamosaqueimaduranapele. Nem as bolhas a formarem-se nos pés. Podemos ferir-nossucessivamente, o que provoca outras infecções. Gangrena.Maura calou-se,frustradacomateimosiadocadeado.

Deixe-metentar.Maura afastou-se e, agradecida, en iou as mãos nas algibeiras,

enquantoRizzolimanipulavaachave.Nos países mais pobres, são os ratos os verdadeiros responsáveis

pelaslesõesnasmãosenospés.Rizzolilevantouacabeça,franzindoosobrolho.Osratos?Denoite,duranteosono.Vãotercomosdoentesàcamaeroem-lhe

osdedosdasmãosedospés.Estáafalarasério?E o doente não sente nada, porque a lepra deixa-lhe a pele

dormente.Nodiaseguinte,aoacordar,descobrequejánãotemaspontasdosdedos.Quesólherestamcotosensanguentados.

Rizzoli itou-aedepoisvirouachavecomforça.Ocadeadoabriu-se.Através da porta entreaberta, viam-semanchas cinzentas que se diluíamnaescuridão.

Bem-vindaaoMamaCortinasdisseMaura.Rizzoli parou na soleira da porta e dirigiu o feixe luminoso da sua

lanternaláparadentro.Estáqualquercoisaamexerládentrodisseemvozbaixa.Sãoratos.

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Nãofalemosmaisderatos.MauraligouasuapróprialanternaefoiatrásdeRizzoli,nomeiode

umaescuridãoquecheiravaagordurarançosa.Ele trouxe-aparaaqui,paraasalade jantardisseMaura,cujo foco

de luz dançava no chão. Eles descobriram algumas marcas dearrastamentonomeiodapoeira, talvezdeixadaspelos saltosdos sapatosdela.Eledevetê-laagarradoporbaixodosbraçosearrastadoparatrás.

Seriadeesperarquenemsequertivessevontadedelhetocar.Creioqueusouluvas,porquenãodeixouimpressõesdigitais.Mesmo assim esteve em contacto com as roupas dela. Expôs-se à

infecção.Vocêestáapensarcomoosantigos.Comoseo factodeumleproso

lhe tocar a transformasse num monstro. A doença não se transmite tãofacilmentecomojulga.

Maspodemosapanhá-la.Podemosficarinfectados.Éverdade.Easeguirverificamosquetemosonarizeosdedosdasmãosacair.Adoençaécurável.Háantibióticos.Não me interessa que seja curável disse Rizzoli, atravessando a

cozinha devagar. É de lepra que falamos. De algo saído directamente daBíblia.

Atravessaram a porta de batentes e entraram na sala de jantar. Alanterna de Rizzoli descreveu um círculo e mostrou várias cadeirasempilhadas junto da parede. Embora não vissem a infestação, ouviam orestolhar.Aescuridãoestavaviva.

Por onde vamos? perguntou Rizzoli. A sua voz era agora ummurmúrio,comoseambastivessementradoemterritóriohostil.

Continueaandar.Háumcorredoràdireita,aofundodasala.Apontaram os focos de luz para o chão. Os últimos sinais de

arrastamentotinhamsidoapagadospelapassagemdetodososelementosda autoridade que ali se tinham dirigido. Na noite em que Mauracomparecera no local do crime, estava acompanhada pelos detectivesCroweeSleeper,sabiaquejáestavaapostosumexércitodeperitosparaentrar por ali dentro com as suas competências, as suas máquinasfotográ icaseosseuspósdestinadosaassinalarimpressõesdigitais.Nessanoite,elanãotiveramedo.

Agora, arfava.Muito perto de Rizzoli,muito consciente de que nãotinhaninguémaprotegê-lapelascostas.Sentiuospêlosdanucaaeriçar-se, particularmente atenta a quaisquer sons, a qualquer movimento nas

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suascostas.Rizzoliparou,virandoofeixedeluzparaadireita.Ocorredoréeste?Acasadebanhoficaaofundo.Rizzoliavançou,virandoalanternaparaumladoeparaooutro.Ao

chegar à última porta parou, como se já soubesse que o que se seguiriaseriaperturbante.Apontoua lanterna láparadentroe icouaolharparaas manchas de sangue no chão de mosaicos. Examinou rapidamente asparedes,acabinedacasadebanho,osurinóisdeporcelanaeoslavatóriosmanchados de ferrugem. Depois, como que atraído por uma forçamagnética, o feixe de luz incidiu de novo no chão, no sítio onde foradescobertoocadáver.

Um local onde ocorreu uma morte tem uma força muito especial.Muitodepoisdeocorposerremovidoedeosangueserlimpo,permanecealiamemóriadoqueaconteceu.Háecosdegritos,oodorremanescentedomedo.E,comoumburaconegro,eleabsorveaatençãodosvivos,quenãoconseguem virar-lhe as costas, que não conseguem resistir a espreitar oinferno.

Rizzoliagachou-separaobservarosmosaicosmanchadosdesangue.FoiumtiroemcheionocoraçãodisseMaura,agachando-seaolado

dela. Um tamponamento pericárdico que provocou rapidamente umaparagemcardíaca.Porissoéquehátãopoucosanguenochão.Assimqueocoraçãoparou,acirculaçãocessou.Quandoelefezasamputações,estavaacortarumcadáver.

Permaneceramemsilêncio, aolharparaasmanchasacastanhadas.Naquelacasadebanhonãohavia janelas.Uma luzacesa ládentronãosevia da rua. Quem manejara a faca tivera o tempo por sua conta,demorando-se com o objecto da sua carni icina sem que ninguém oincomodasse. Não havia gritos para abafar, nem o perigo de serdescoberto. O assassino pudera cortar à sua vontade a pele e asarticulações,recolherosseustrofeus.

E, depois de acabar, deixara o corpo naquele local dominado pelosvermes, onde os ratos e as baratas iriam banquetear-se, fazendodesapareceracarnequerestasse.

Maura levantou-se, ofegante. Embora estivesse frio no interior doprédio,tinhaasmãosasuardentrodasluvasesentiuocoraçãoapalpitar.

Podemosir-nosembora?perguntouela.Espere.Deixe-mevermaisumascoisas.Nãohámaisnadaparaver.

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Aindaagorachegámos,doutora.Mauraolhouparao corredoras escuras e estremeceu. Sentiuuma

movimentaçãoestranhanoar,umsoprogeladoquelheeriçouospêlosdanuca.Aporta,pensoueladerepente.Nãofechámosàchaveaportaquedáparaobeco.

Rizzoli continuava agachada junto das manchas de sangue, com alanternaaescorregar lentamenteparaochão, semtirarosolhosdaquilo.Ela não está alterada, pensouMaura. Porque hei-de eu estar? Acalma-te,acalma-te.

Esgueirou-se para a porta. Brandiu a lanterna como se fosse umsabreeapontou-arapidamenteparaaescuridãodocorredor.

Nãoviunada.Estavaaterrada.Janesegredouela.Podemossairdaquiagora?Só então Rizzoli se apercebeu da tensão na voz de Maura e

perguntoutranquilamente:Oqueé?Queroir-meembora.Porquê?Mauraolhouparaocorredorescuro.Háqualquercoisaquenãobatecerto.Ouviualgumacoisa?Vamosemboradaqui,estábem?Rizzolilevantou-seerespondeuemvozbaixa:Estábem.Foi atrás dela na direcção do corredor. Parou, como se farejasse o

ar, tentando detectar uma ameaça. A destemida Rizzoli, sempre à frente,pensou Maura. Percorreram o corredor, atravessaram a cozinha eentraramna salade jantar,de lanternasemriste.Osalvosperfeitos.E lávamos nós, como soalho a ranger debaixo dos pés e os nossos feixes deluz,queparecemdoisolhos-de-boi.

Maura sentiu uma lufada de ar frio e olhou para o vulto de umhomemque se encontrava à porta. Parou, petri icada, enquanto as vozesexplodiamderepentenassombras.

Rizzoli,jáemposiçãodecombate,gritou:Alto!Atireaarmaparaochão!Eudissealto,idiota!ordenouRizzoli.PolíciadeBoston.EusoudaPolíciadeBoston!

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Quemdiabo...A lanterna de Rizzoli iluminou de repente a face do intruso. Este

levantouobraçoparaseprotegerdaluzintensa,apiscarosolhos.Fez-seumlongosilêncio.

Rizzoliriu-secomdesdém.Oh,merda!Pois,tambémtenhomuitoprazeremver-tedisseodetectiveCrowe

Apostoqueéaquiquedecorreaacção.Eupodiater-teestouradoosmiolosdisseRizzoli,Podiasteravisado

quevinhasaentrar...Faltou-lhe a voz. E icou imóvel quando surgiu mais um vulto. Um

homemalto,quesedeslocavacomumaelegância felinaatrásdeCroweeque entrou no círculo de luz da sua lanterna. De repente, a luz osciloudevidoaotremordasuamão.

Olá,JanedisseGabrielDean.A escuridão só contribuiu para acentuar o longo silêncio. Quando

Rizzoliconseguiuresponder,foicomumtomdevozestranhoeimpassível.Profissional.

Nãosabiaqueestavasnacidade.Chegueiestamanhã,deavião.Rizzoliguardouapistolanocoldre.Recompôs-se.Oqueestásaquiafazer?Omesmo que tu. O detective Crowe anda amostrar-me o local do

crime.OFBIestámetidonisto?Porquê?Deanolhouàsuavolta.Podemosfalarnissonoutrosítioqualquer.Maisquente,pelomenos.

Eugostavadesabercomoéqueoteucasosecruzacomeste,Jane.Se conversarmos, as informações têmde circular nos dois sentidos

retorquiuRizzoli.Comcerteza.Comascartastodasnamesa.Deanconcordou.Ficarásasabertudooqueeusei.Olhem, deixem-me acabar de mostrar isto ao agente Dean.

Encontramo-nosna salade reuniões. Pelomenos lá teremos luzparanosvermosunsaosoutros.Enãoestaremosdepé,comoraboaarrefecer.

Nasaladereuniões,àsduashoras.AtélogodisseRizzoli.

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CatorzeRizzoli encontrou as chaves do carro e deixou-as cair na neve.

Praguejouaoagachar-separaasapanhar.Sente-sebem?perguntouMaura.Eleapanhou-medesurpresa.Eunãoesperava...Rizzolilevantou-see

expeliu uma nuvem de vapor. Bolas, o que está ele a fazer aqui? O quediaboestáeleafazeraqui?

Otrabalhodele,imagino.Não estou disposta a isto. Não estou disposta a trabalhar com ele

outravez.Talveznãotenhaalternativa.Eu sei. E é isso que me lixa, o facto de não ter alternativa. Rizzoli

abriuasportasdocarroeambasentraram.Osbancosestavamgelados.Vai dizer-lhe o que se passa? perguntou Maura. Mal-humorada,

Rizzoliligouomotor.Não.Elegostariadesaber.Nãoestoucertadisso.Nãoseisealgumhomemgosta.Então você está a eliminar o inal feliz? Nem sequer lhe dá uma

hipótese?Rizzolisuspirou.Sefôssemospessoasdiferentes,talvezhouvesseumahipótese.Nãofoiaoutraspessoasqueistoaconteceu.Foiavocêsosdois.Éverdade!Quesurpresa,hem?Porquê?Rizzolicalou-se,deolhosfixosnaestrada.Sabe o que me chamavam os meus dois irmãos quando éramos

pequenos? perguntou ela em voz baixa. O sapo. Diziam que nenhumpríncipequereriabeijarumsapo.Emuitomenoscasarcomigo.

Osirmãossabemsercruéis.Masàsvezesdizem-nosaverdadenuaecrua.QuandooagenteDeanolhaparasi,nãomeparecequeelevejaum

sapo.Rizzoliencolheuosombros.Sabemosláoqueelevê.

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Umamulherinteligente?Pois,issoémesmosexy!Paraalgunshomensé.Issoéoqueelesdizem.Massabeumacoisa?Custa-meaacreditar.

Quandosãoconfrontadoscomaalternativa,optamsemprepelasmamasepelorabo.

Furiosa, Rizzoli concentrou-se na estrada. Passaram por ruas emque a neve formara uma crosta encardida nos passeios e os carrosestacionadosestavamcobertosdebranco.

Algumacoisaeleviuemsi,Jane.Osuficienteparadesejá-la.Foi o caso em que andávamos a trabalhar. A excitação da caçada.

Faz-nossentirvivos, sabe?Quandocomeçamosa fechar-nos,aadrenalinaaumentaetudoparecediferente.Trabalhamoscomalguémvinteequatrosobre vinte e quatro horas, tão perto que lhe conhecemos o cheiro.Sabemoscomoéqueelebebeocaféecomoéqueelefazonódagravata.Depois, o caso complica-se e nós enfurecemo-nos juntos e assustamo-nosjuntos. E pouco depois, isto começa a confundir-se com amor.Mas não é.Sãoapenasduaspessoasa trabalharnumasituação tão intensaquenemconseguemdiferenciaroprazer ísicodaemoçãodacaçada.Quantoamim,foiistoqueaconteceu.Conhecemo-nosnapresençadealgunscadáveres.E,passadoalgumtempo,eucomeceiaagradar-lhe.

Elenãoémaisdoqueissoparasi?Alguémquecomeçouaagradar-lhe?

Merda!Eleagrada-memesmo.Porque se você não o ama... Se nem sequer se interessa por ele...

Entãovê-lonãodeveriasertãopenosoparasi.Nãoacha?NãoseirespondeuRizzoli,exasperada.Nãoseioquesintoporele!Issodependedeeleaamarounão?Decertezaquenãolhevoufazeressapergunta.Éumamaneiradeconseguirumarespostadirecta.Comoéovelhoditado?"Senãoquiseresouviraresposta,entãonão

façasapergunta?"Nuncasesabe.Arespostapodesurpreender-nos.Na Schroeder Plaza, pararam na cafetaria para ir buscar cafés e

levaram as chávenas para cima, para a sala de reuniões. Enquantoesperavam que Crowe e Dean chegassem, Maura observou Rizzoli avasculhar nos documentos e a procurar nos dossiês, como se neleshouvessealgumsegredoqueelaquisessedesesperadamentedescobrir.Àsduas e um quarto, ouviram o toque frouxo do elevador e depois as

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gargalhadas de Crowe no átrio. Rizzoli empertigou-se. À medida que asvozesdoshomensseaproximavam,oolhardelaconcentrava-seaindamaisnosdocumentos.QuandoDeanapareceuàporta,Rizzolinãolevantoulogoacabeça,comoseserecusasseareconheceroseupodersobreela.

Maura conhecerao agenteespecialGabrielDeanno imdeAgosto,quando ele fazia parte da equipa que investigava o assassínio de casaisricos na zona de Boston. Dean, um homem de estatura imponente,inteligente e de poucas palavras, começara rapidamente a dominar aequipa e o seu con lito com Rizzoli, a responsável pela investigação, eraquase garantido à partida. Maura fora a primeira a ver esse con litotransformar-se em atracção. Reparara nas primeiras faíscas, vira osolhares que trocavam sobre os corpos das vítimas. Percebera os ruboresde Rizzoli, a sua insegurança. As primeiras fases do amor são semprepródigasemconfusão.

Assimcomoasúltimas.Dean entrouna sala e olhoude imediato paraRizzoli. Vestia fato e

gravata,eoseuaspectocontrastavafortementecomablusaamachucadaeocabelodesgrenhadodeRizzoli.Quandoelalevantouacabeça,foiparalhedeitarumolharquasededesafio.Poisaquiestou.Épegaroulargar.

Arrogante,Crowedirigiu-separaacabeceiradamesa.Muitobem,estácáamaltatoda.Étempodemostraroquevalemos

disseele,olhandoparaRizzoli.OuçamosprimeirooFBIdisseela.Deanabriuapastaquetrouxeraparaasala.Tirouumdossiêefê-lo

deslizarporcimadamesaemdirecçãoaRizzoli.Essa fotogra ia foi tirada há dez dias em Providence, Rhode Island

disseele.Rizzoli abriu o dossiê. Maura, sentada ao lado dela, teve uma

panorâmica completa da fotogra ia. Fora tirada no local do crime emostravaumhomem,enroladoemposiçãofetal,dentrodoporta-bagagemde um automóvel. Viam-se pingos de sangue no tapete castanho claro.Curiosamente, o rosto da vítima estava intacto, de olhos abertos, a pelelívidaecomderramesvioláceos.

Avítimachamava-seHowardRed ield,cinquentaeumanos,branco,divorciado,naturaldeCincinnatidisseDean.Acausadamortefoiumúnicoferimento de bala, que atravessou a têmpora esquerda. Além disso,apresentava fracturas múltiplas nas duas rótulas, provocadas por umaarma romba, possivelmente um martelo. Também tinha queimadurasgraves nas duas mãos, que estavam atadas com ita gomada atrás das

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costas.ElefoitorturadoconcluiuRizzoli.Foi.Durantemuitotempo.Rizzoli recostou-se na cadeira, muito pálida. Maura era a única

pessoa presente na sala que conhecia omotivo daquela palidez e itou-acom preocupação. Viu a luta desesperada que se travava no rosto delaparacontrolaroenjoo.

Foiencontradomortonoporta-bagagemdoseuprópriocarroacrescentouDean. O automóvel estava estacionado a cerca de dois

quarteirões da estação dos autocarros de Providence. Fica perto de umahora,horaemeiadecaminhodaqui.

MaspertenceaoutrajurisdiçãodisseCrowe.Deanconcordou.Porissoéqueestamortenãovoschamouaatenção.Épossívelque

o assasssino tenha levado esse carro para Providence com a vítima ládentro,o tenhadeixado láe tenhaapanhadoumautocarrode regressoaBoston.

DeregressoaBoston?Masporqueachaqueelepartiudaqui?perguntouMaura.É sóumpalpite.De facto, não sabemosonde é queo assassínio foi

cometido. Nem sequer sabemos ao certo qual foi o paradeiro de MisterRed ieldnasúltimas semanas. Ele vive emCincinnati,mas aparecemortoemNova Inglaterra. Não há rasto do cartão de crédito dele nem se sabeporondeandou.Sabemosque levantouumagrandequantiadasuacontaháummês.Equedepoissaiudecasa.

PareceseralguémqueandaafugirequenãoquerserencontradocomentouMaura.Oualguémqueestáassustado.

Deanolhouparaafotografia.E,comoéóbvio,tinhamotivosparaisso.Fale-nosmaisdestavítimapediuRizzoli,queconseguiracontrolar-se

eolhavaagoraparaafotografia,sempestanejar.Mister Red ield foi vice-presidente da Octagon Chemicals,

responsávelpelasoperaçõesnoestrangeiroexplicouDean.Hádoismeses,demitiu-sedaempresa,obviamenteporrazõespessoais.

A Octagon? perguntouMaura. Tem sido notícia. Essa empresa nãoestáaserinvestigadapelaComissãodoMercadodeValoresMobiliários?

Deanfezumsinalafirmativo.A Comissão levantou umprocesso cível contra aOctagon, alegando

múltiplasviolaçõesqueenvolvembiliõesdedólaresemtransacçõesilegais.Biliões?Uau!exclamouRizzoli.

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AOctagonéumagrandemultinacional,comvendasanuaisdaordemdosvintebiliõesdedólares.Estamosafalardepeixegraúdo.

Rizzoliolhouparaafotografia.E esta vítima navegava nessas águas. Ele conhecia-a por dentro.

AchamqueeleeraumproblemaparaaOctagon?Há três semanas, Mister Red ield marcou uma reunião com

responsáveisdoDepartamentodeJustiça.Pois. Ele era mesmo um problema para a empresa disse Crowe,

soltandoumagargalhada.Elepediuqueareuniãoserealizasseaqui,emBoston.PorquenãoemWashington?perguntouRizzoli.Ele disse-lhes que havia outras pessoas que queriam prestar

declarações.Queissotinhadeserfeitoaqui.Sónãosabemosporqueéqueele contactou o Departamento de Justiça e não apelou directamente àComissãodoMercadodeValoresMobiliários,porquepartimosdoprincípioqueocasoestavaligadoàinvestigaçãodaOctagon.

Masnãotêmacerteza?Não, porque ele não compareceu à reunião. Nessa altura já estava

morto.Bem,seistopareceumcontratoecheiraacontrato...disseCrowe.OquetemissoavercomaSenhoradosRatos?perguntouRizzoli.Já lá chego. A senhora fez a autópsia. Qual foi a causa da morte?

perguntouDean,virando-separaMaura.UmferimentodebalanopeitorespondeuMaura.Osfragmentosda

bala perfuraram o coração, provocaram uma grande hemorragia nopericárdio e o coração parou. Aquilo a que se chama um tamponamentocardíaco.

Equalfoiotipodebalautilizada?Maura lembrou-seda radiogra iaao tóraxdaSenhoradosRatos.A

dispersãodosfragmentos,comoumagaláxiadeestrelasespalhadaspelospulmões.

EraumaGlaserdepontaazulrespondeuela.Umcartuchodecobrecomchumbos.Fragmenta-senointeriordocorpo,compoucashipótesesdepenetraçãototal.

Mauracalou-seedepoisacrescentou:Éumprojéctildevastador.Dean olhou para a fotogra ia de Howard Red ield, enrolado e

cobertodesanguenoporta-bagagemdocarro,eabanouacabeça.Mister Red ield foi morto com uma bala Glaser de ponta azul.

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DisparadapelamesmaarmaquematouasuaJaneDoe.Porinstantes,ninguémfalou.Depois,Rizzolidisse,incrédula:Masacabaramdeadmitirquesetratadeumassassíniocontratado.

ÉamaneiracomoaOctagonlidacomquemfalademais.Estaoutravítima,aSenhoradosRatos...

AdetectiveRizzoli temrazãodisseMaura.ASenhoradosRatoséoalvomais improváveldeumassassínioamandodeumaempresaqueeupoderiaimaginar.

Mesmo assim, a bala que amatou foi disparada pelamesma armaquetirouavidaaHowardRedfielddisseDean.

ÉaquiqueentraoagenteDeanexplicouCrowe.EupediumabuscaDRUGFIRE sobre aquele cartucho de cobre que a senhora lhe retirou dopeito.

À semelhança da AFIS, a base de dados nacional do FBI, aDRUGFIRE era uma base de dados centralizada sobre armas de fogo. Asmarcas e estrias descobertas nas balas utilizadas nos crimes eramarmazenadas como dados digitalizados, que depois podiam sercomparados,ligandotodososcrimescometidospelamesmaarmadefogo.

EcondiziaconcluiuDean.Rizzoliabanouacabeça,espantada.Porquêestasduasvítimas?Nãoperceboaligação.ÉissoquetornaamortedeJaneDoetãointeressanteconcluiuDean.Mauranãogostouqueeleusasseapalavra "interessante".O termo

implicava que algumas mortes não eram interessantes, não erammerecedorasdeatençãoespecial. Comcertezaqueasvítimasnão seriamdamesmaopinião.

Concentrou-se na fotogra ia, uma terrível mancha de sangue emcimadamesadereuniões.

AnossaJaneDoenãopertenceaestahistóriadisseela.Porquê,doutoraIsles?Existeumarazãológica.HowardRed ieldfoiassassinado.Éprovável

que quisesse denunciar ilegalidades no âmbito da investigação daComissão.Ossinaisdetorturaindicam-nosqueasuamortenãofoiapenasalgoquecorreumalnumcasode fraude.Oassassinopretendiaqualquercoisadele.Umaretribuição, talvez.Ouumainformação.Mascomoéqueanossa Jane Doe muito provavelmente uma imigrante ilegal se encaixanisto?Porquehaviaalguémdedesejarasuamorte?

Essa é a questão, não é verdade?Dean olhou para Rizzoli. Sei quetêmumcasoquetambémpodeestarligadoaeste.

OolharatrapalhouRizzoli,queabanouacabeçacomnervosismo.

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Émaisumqueparececompletamentedesconexo.O detective Crowe disse-me que foram atacadas duas freiras no

convento.EmJamaicaPlaincontinuouDean.Mas o assassino não utilizou uma arma de fogo. As freiras foram

agredidasàcacetada,talvezcomummartelo.Parecetersidoumataquedefúria.Algumtaradoquedetestamulheres.

Talvezfosseoqueelequeriaquenóspensássemos.Talvezquisesseocultaraligaçãocomesteshomicídios.

Pois,entãoacoisaresultou.SegundoodiagnósticodadoutoraIsles,JaneDoe tinha lepra.Parecequeumadas freirasque foi atacada, a irmãUrsula,trabalhounumaaldeiadeleprosos,naíndia.

UmaaldeiaquejánãoexistedisseMaura.Deanolhouparaela.Oquê?Pode ter sido um massacre religioso. Foram chacinadas cerca de

cempessoaseaaldeiafoiincendiada.Maurafezumapausa.AirmãUrsulafoiaúnicapessoadaaldeiaquesobreviveu.

Rizzoli nunca tinha visto Gabriel Dean tão surpreendido. Em geral,era ele que mantinha os segredos e fazia as revelações. Esta novainformaçãoremeteu-otemporariamenteaosilêncio.

Atirou-lhemaisuma.Creioque anossa JaneDoepode ter vindodessamesmaaldeiana

índia.MastinhasadmitidoqueelafossehispânicadisseCrowe.Foiapenasumpalpitebaseadonapigmentaçãodapele.Entãomudasopalpiteparaqueseajusteàscircunstâncias?Não.Mudo-odevidoaoquedescobrimosnaautópsia.Lembras-teda

fitaamarelaqueelatrazianopulso?Lembro.Os peritos disseramque se tratava de algodão. Talvez um

pedaçodefio.Diz-se que quem usar uma ita no pulso ica protegido do mau

olhado.Éumhábitohindu.MaisumavezaíndiadisseDean.Mauraconcordou.Tudovaidaràíndia.Umafreiraeumaimigranteilegalcomlepra?Queligaçãopodemter

elas comum contrato de assassínio? interpôs Crowe, abanando a cabeça.Nãosecontratamprofissionaisanãoserquehajamuitoaganhar.

OumuitoaperderacrescentouMaura.Se todas estas mortes forem assassínios contratados, podem ter a

certeza de uma coisa disse Dean. A evolução da vossa investigação será

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acompanhada com muito cuidado. Vocês têm de controlar todas asinformaçõesrelativasaestescasos,porquealguémestáavigiartudooqueaPolíciadeBostonandaafazer.

Eamimtambém,pensouMaura,arrepiada.Easuavisibilidadeeratão grande. Nos locais dos crimes, nos noticiários televisivos. No carro.Estava habituada a estar debaixo do olho dos media, mas agora admitiaque outros olhos pudessemandar a observá-la. A seguir-lhe os passos. Elembrou-sedoquesentiranaescuridãodoMamaCortinas:asensaçãofriademedodapresa,quandoseapercebedequeestáaserperseguida.

Tenho de ver esse outro local. O convento, onde as freiras foramatacadas.Podeslevar-melá?perguntouDean,olhandoparaRizzoli.

Rizzoli não respondeu logo. Ficou imóvel, sem tirar os olhos dafotogra iadeHowardRed ield,mortoeenroladonoporta-bagagemdoseuprópriocarro.

Jane?Ela respirou fundo e endireitou-se na cadeira, como se de súbito

tivessedescobertoumanovareservadecoragem.Deforça.Vamos embora. Acho que somos de novo uma equipa disse ela,

levantando-seeolhandoparaDean.

QuinzeEuconsigolidarcomisto.Euconsigolidarcomele.Jane Rizzoli dirigiu-se para Jamaica Plain com os olhos postos na

estrada,masapensar emGabrielDean. Semavisar, ele tinhaentradodenovonasuavida,eelaaindaestavademasiadoatordoadaparaperceberoquesentia.Tinhaumapertonoestômagoeasmãosdormentes.Aindanavéspera pensara que a fase pior já estava a passar e que, com algumtempo e muita distracção, conseguiria deitar o assunto para trás dascostas.Longedavista,longedopensamento.

E agora ele estava à sua frente, e em grande parte no seupensamento.

Foi a primeira a chegar à Abadia de Graystones. Deixou-se icarsentada no carro à espera dele, com os nervos em franja. A ansiedade

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começavaadarlugarànáusea.Controla-te,raios!Concentra-tenotrabalho!Viuocarroalugadodeleaestacionaratrásdela.Saiu imediatamentee recebeudebomgradoovento castigadorna

face.Quantomaisbrutalfosseofrio,melhor,paracairemsi.Viu-osairdocarro e cumprimentou-o com o gesto de cabeça brusco que era habitualentrecolegas.

Em seguida, deumeia volta e tocou a sineta do portão. Não paroupara conversar, não arriscou dizer nada. Seguiu em frente, porque era aúnica maneira que conhecia de lidar com o reencontro. Ficou aliviadaquando viu uma freira a sair do edi ício e a avançar a custo através daneve,emdirecçãoaoportão.

ÉairmãIsabeldisseRizzoli.Acreditesounão,éumadasmaisnovas.Isabel semicerrou os olhos através das grades, examinando o

acompanhantedeRizzoli.EsteéoagenteGabrielDeandoFBIdisseRizzoli.Vousómostrar-lhe

acapela.Nãoqueremosincomodá-la.Isabel abriu o portão para os deixar entrar. Este fechou-se atrás

deles comum implacável sommetálico.O som frioda inexorabilidade.Doenclausuramento. A irmã Isabel regressou imediatamente ao edi ício,deixandoosdoisvisitantesnopátio.Asósumcomooutro.

Derepente,Rizzoliassumiuocontrolodosilêncioe lançou-senumarevisãodocaso.

Aindanãosabemosaocertoqualfoiopontodeentradadisseela.Aneve cobriu as pegadas, e não encontrámos ramos de hera partidos quenosindicassemqueeletenhasubidoomuro.Aqueleportãodafrenteestásempre fechado e, se o assassino entrou por ali, é porque alguém cá dedentro o deixou entrar. É uma violação das regras do convento. Teria deserànoite,quandoninguémvisse.

Nãotêmtestemunhas?Nenhuma. A princípio, julgámos que tinha sido a freiramais nova,

Camille,aabriroportão.PorquêCamille?PoraquiloquedescobrimosnaautópsiaRizzolidesviouoolharpara

a parede, evitando encará-lo. Ela esteve grávida recentemente.Encontrámosacriançamortanumlagonastraseirasdaabadia.

Eopai?Obviamenteéumdosprincipaissuspeitos,sejaelequemfor.Ainda

não o identi icámos. Os testes de ADN ainda não estão concluídos. Mas

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agora,depoisdoque tunoscontaste,éprovávelqueestejamosaapontaraoalvoerrado.

Rizzoli itouosmurosqueosrodeavam,oportãoquelhesvedavaaentradaaomundo,ederepentecomeçouadesenrolar-sediantedosseusolhosumasequênciaalternativadeacontecimentos,umasequênciamuitodiferente da que imaginara quando estivera no local do crime pelaprimeiravez.

SinãofoiCamillequeabriuoportão...Entãoqueméquedeixouentraroassassinonaabadia?perguntou

Dean,comoselhelesseospensamentos.Rizzolifranziuosobrolhoeolhouparaoportão,pensandonanevea

fustigaroempedrado.Ursulaestavadecasacoedebotas...Rizzoli virou-se e olhou para o edi ício. Imaginou-o naquela

escuridão antes do amanhecer, com as janelas sem luz e as freiras adormirnosseusquartos.Opátiosilencioso,àparteovento.

Já estava a nevar quando ela veio cá fora continuou Rizzoli. Elaestava vestida para o frio. Atravessou este pátio, até ao portão, ondealguémaesperava.

Alguém que ela devia saber que estava lá fora acrescentou Dean.Alguémdequemelaestavaàespera.

Rizzoli concordou. Virou-se para a capela e começou a andar,esburacandoanevecomasbotas.Deanseguiaatrás,maselajáoafastaradoseupensamento;seguiaaspassadasdeumamulherperdida.Umanoitea rodopiar com a primeira neve da época. As tuas bótas escorregam noempedrado. Deslocas-te sem fazer barulho porque não queres que asoutrasirmãssaibamquetevaisencontrarcomalguém.Alguémporquemestásdispostaaquebrarasregras.

Mas está escuro, e não há candeeiros que iluminem o portão. Porissonãolhevêsacara.Nãopodessaberaocertoseesteéovisitantequeesperasestanoite...

Aochegaràfonte,Rizzoliparouabruptamenteeolhouparaa iladejanelasquedavamparaopátio.

Oqueé?perguntouDean.OquartodeCamille.ÉaliemcimarespondeuRizzoli,apontando.Dean olhou para a janela do quarto. Estava corado do vento e

despenteado. Foi um erro olhar para ele, porque, de repente, sentiu umdesejo tão imperioso de lhe tocar que teve de se virar para o lado e delevaramãoàbarrigaparacontrariarovazioquesentia.

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Talvezelatenhavistoalgumacoisa,daquelequartoalvitrouDean.Aluznacapela.Estavaacesaquandodescobriramoscorpos.Rizzoli

olhou para a janela de Camille e lembrou-se do lençol manchado desangue.

Ela acorda com o penso higiénico ensopado. Levanta-se da cama evai à casa de banho mudá-lo. E quando regressa ao quarto, vê luz nasjanelasdevitral.Umaluzquenãodeviaestaracesa.

Rizzoli virou-se para a capela, atraída pela imagem fantasmagóricaque via agora da jovem Camille a sair do edi ício principal. Ao dirigir-separaapassagemcoberta,começouatremer,talvezarrependidadenãotervestidoumcasacoparafazeracurtatravessiaentreosedifícios.

Foiatrásdofantasmaeentrounacapela.Ficou ali às escuras. As luzes estavam apagadas, e os bancos não

eram mais do que faixas paralelas de sombra. Dean estava a seu lado,silenciosocomoumfantasma,quandoelaimaginouacenafinal.

Camille a transpor a porta, apenas um deslize de criança, brancacomoacal.

Olha para o chão, horrorizada. A irmã Ursula jaz a seus pés e aspedrasestãosalpicadasdesangue.

Talvez Camille não percebesse logo o que tinha acontecido e aprincípio julgassequeUrsulaescorregaraebateracomacabeçanochão.Outalvezjásoubesse,aovislumbrarosangue,queomalinvadiraaquelesmuros.Equenaquelemomentoestavaatrásdela,aobservá-la.

Queestavaaavançarparaela.O primeiro golpe deixa-a a cambalear. Apesar de ter icado

atordoada, ainda tenta fugir.Tomaaúnicadirecçãopossível: sobeanavecentral.Acaminhodoaltar,ondetropeça.Ondecaidejoelhos,esperandoogolpefinal.

E quando tudo acaba, e a jovem Camille está morta, o assassinovolta-separatrás,paraaprimeiravítima.ParaUrsula.

Masnãoacabaoseutrabalho.Deixa-aviva.Porquê?Rizzoli olhou para as pedras, para o sítio onde Ursula tinha caído.

Imaginouoagressoraagachar-separaconfirmaramorte.Ficouimóvel,aolembrar-sederepentedoqueaDra.Isleslhehavia

dito.Oassassinonãosentiuapulsaçãodisseela.Oquê?AirmãUrsulanãotinhapulsaçãonacarótidado ladoesquerdo.Ele

julgouqueelaestavamortacontinuouRizzoli,fitando-o.

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Subiramanave central epassarampelas ilasdebancos, seguindoos últimos passos de Camille. Aproximaram-se do local em que ela tinhacaído, junto do altar. Ficaram ali em silêncio, de olhos postos no chão.Emboranãovissemnadaàsescuras,aindadeviahavervestígiosdesanguenasfendasentreaspedras.

Atremer,RizzolilevantouacabeçaeviuqueDeanaobservava.Nãohámaisnadaparaveraqui.Amenosquequeirasfalarcomas

irmãsdisseela.Querofalarcontigo.Estouaqui.Não, não estás. A detective Rizzoli é que está aqui. Eu quero falar

comaJane.Elariu-se.Umsomblasfemonaquelacapela.Dizes isso de uma maneira que até parece que eu tenho dupla

personalidadeouqualquercoisadogénero.Isso não anda muito longe da verdade. Esforças-te muito por

representaropapeldepolícia,massufocasamulher.Foiamulherqueeuvimver.

Demorastemuito.Porqueestástãozangadacomigo?Nãoestou.QuemodotãoestranhodemereceberesemBoston!Talvezporquenãotedesteaotrabalhodemeavisarquevinhas.Elesuspirou,ressentido.Nãopodemossentar-nosumpoucoaconversar?Dirigiu-separaobancodafrenteesentou-se.Deaninstalou-seaseu

lado,mas ela continuou a olhar em frente, com receio de encará-lo. Comreceiodasemoçõesqueelepudessedespertarnela. Sóoactode inalarocheirodelejáeradoloroso,devidoàsrecordaçõesquereavivava.Esteeraohomemcomquemelapartilharaacama,

Icujo tacto, sabor e riso continuavam a povoar os seus sonhos. Aconsequênciadauniãodeamboscontinuavaacrescerdentrodela,e Janelevouamãoàbarrigaparamitigaradorsecretaquesentiuderepente.

Comotenspassado,Jane?Bem.Muitoocupada.Eessepensonatesta?Oqueaconteceu?Oh,isto!Passouamãopelatestaeencolheuosombros.Foiumpequenoacidentenamorgue.Escorregueiecaí.Parecescansada.

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Nãoteesforçasmuitocomcumprimentos,poisnão?Éapenasumaobservação.Pois, bem, estou cansada. É claro que estou. Esta tem sido uma

semanadosdiabos.EoNatalestáachegareeuaindanemsequercompreipresentesparaaminhafamília.

Deanobservou-aeeladesviouoolhar,semquererenfrentá-lo.Nãoteagradaestaresatrabalharcomigooutravez,poisnão?Elanãodissenada.Pelomenosnãonegou.Porquediabonãomeexplicasoquesepassa?disparoueleporfim.A irritação na voz dele apanhou-a de surpresa. Dean não era um

homem que exteriorizasse muito as suas emoções. No passado, issoenfurecera-a,porqueafaziasentirsemprequeeraelaadescontrolar-se,aqueameaçavasempreperderacalma.Ocasodelescomeçaraporqueforaela a dar o primeiro passo, e não ele. Fora ela que arriscara tudo e queapostaraoseuorgulho,equalforaoresultado?Estavaapaixonadaporumhomemque continuava a serumenigmapara ela.Umhomemcujaúnicaexteriorizaçãoemocionaleraairritaçãoqueelasentiranasuavoz.

Estasituaçãoirritou-atambém.Nãovaleapenadourarapíluladisseela.Temosdetrabalharjuntos.

Nãotemosalternativa.Mastudooresto...Nãoconsigolidarcomissonestemomento.

Não consegues lidar com quê? Com o facto de termos dormidojuntos?

Sim.Nãomepareceuqueteimportasses,nessaaltura.Aconteceu, pronto. Tenho a certeza que foi tão importante para ti

comoparamim.Ele calou-se. Estará melindrado?, interrogou-se ela. Ofendido?

Parecia-lhe impossível ofender um homem que não tinha emoções. Ficouadmiradaquandoeledeuumagargalhada.

Estásdetodo,Janedisseele.Elavirou-seolhoumesmoparaelee icousemfôlegopelosmesmos

motivos que a tinham atraído no passado. O queixo forte, os olhos azul-acinzentados. O ar de comando. Podia cobri-lo de insultos, mas sentiasemprequeeraeleacontrolarasituação.

Tensmedodequê?perguntouele.Nãoseidoqueestásafalar.Queeutemagoe?Quesejaoprimeiroair-meembora?Paracomeçar,nuncacáestiveste.

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Issoéverdade.Nempodia.Comaprofissãoquetemos.Etudovaidaraí,nãoéverdade?Janelevantou-sedobancoebateu

comospésnochãoparareactivaracirculação.TuestásemWashington,eeu estou aqui. Tu tens a tua pro issão, de que não abdicas. Eu tenho aminha.Nadadecompromissos.

Falascomoseissofosseumadeclaraçãodeguerra.Não, é apenas lógica.Façoopossívelpor serpragmática.Deumeia

voltaeencaminhou-separaaportadacapela.Eporteprotegeres.Achasquefaçomal?perguntouela,olhandoparatrás.Omundonãoestátodocontrati,Jane.Porqueeunãodeixo.Deixaram a capela. Atravessaram de novo o pátio e saíram pelo

portão,quefezumsommetálicoaofechar-se.Bem, acho que não tem interesse eu tentar furar essa carapaça

disse ele. Estou disposto a ir muito longe por ti, mas também tens deajudar.Tambémtensdedaralgumacoisa.

Deanvoltou-seecomeçouadirigir-separaocarro.Gabriel?disseela.Eleparouevirou-separaela.Oquejulgavasqueaconteceriaentrenósdestavez?Nãosei.Quegostariasdemever,pelomenos.Equemais?Quevoltaríamosafornicarcomocoelhos.Deu uma gargalhada e abanou a cabeça. Não me tentes. não me

recordesaquilodequetenhosentidoafalta.Deanolhouparaelaporcimadacapotadocarro.Eu contento-me com a primeira coisa, Jane disse ele. Em seguida,

entrounocarroefechouaporta.Viu-oafastar-seepensou:foiafornicarcomoumacoelhaqueeume

metinestesarilho.A tremer, olhou para o céu. Ainda eram quatro horas e a noite

pareciaestaracair,apoderando-sedosúltimosraiosdesol.Nãotrouxeraas luvas, e o vento era tão agreste que lhemagoou os dedos quando elatirouaschaveseabriuaportadocarro.Entrouetentouen iarachavenaignição,mastinhaasmãosentorpecidasemalsentiaosdedos.

Parou,jácomachavenaignição.Derepente,pensounasmãosdaleprosa,nosdedosdesfeitosatéaos

cotos.

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E lembrou-se, vagamente, deumapergunta sobre asmãosdeumamulher.Umareferênciadepassagem,queelatinhaignoradonessaaltura.

Ela disse que eu era malcriada porque perguntei porque é queaquelasenhoranãotinhadedos.

Saiudocarroeencaminhou-sedenovoparaoportão.Tocouasinetaváriasvezes.

Por im,apareceua irmãIsabel.Aavaliarpelasuaexpressãoentreasgradesdeferro,avelhafreiranãoficousatisfeitaporvoltaravê-la.

Tenhodefalarcomamenina,afilhadeMistressOtisdisseRizzolí.RizzolifoiencontrarNonisentada,sozinha,numaantigasaladeaula

ao fundo do corredor, com as pernas fortes a balouçar na cadeira e umarco-íris de lápis de cores espalhados no velho tampo de uma carteira.Estava mais quente na cozinha da abadia, onde Mrs. Otis preparava ojantarparaasfreiras,eoaromadosbolinhosdechocolatefeitoshápoucotempochegavaatéaqueleextremolúgubredaala,masNonioptaraporserefugiar naquela sala fria, longe da língua a iada e dos olharesreprovadoresdamãe.Ameninaparecianemdarpelo frio.Tinhanamãoum lápis verde-limão e manuseava-o como qualquer criança, muitoconcentrada,comalínguadefora,desenhandofaíscasasairdacabeçadeumhomem.

VaiexplodirdisseNoni.Osraiosdamorteestãoacozer-lheacabeça.Ele vai rebentar. Como quando cozemos coisas no microondas e elasexplodem,talequal.

Os raios da morte são verdes? perguntou Jane. Noni levantou acabeça.

Deviamserdeoutracor?Não sei. Sempre pensei que os raios da morte fossem, digamos,

prateados.Não tenhonenhum lápis prateado.OConrad tirou-meomeu, lá na

escola,enuncamodevolveu.Achoqueosraiosdamorteverdetambémservem.Maissossegada,Nonivoltouaconcentrar-senoseudesenho.Pegou

num lápis azul e acrescentou uns espigões aos raios, que pareciam umachuvadesetasacairsobreapobrevítima.Haviamuitasvítimasemcimada carteira. Nos desenhos viam-se naves espaciais a disparar fogo ealienígenas azuis a cortar cabeças. Não eram extraterrestres amigáveis.Aos olhos de Rizzoli, a menina que os desenhava parecia também umaalienígena,umgnomocomolhoscastanhosdecigana,escondidanumasalaemqueninguémaincomodava.

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Noni optaraporum refúgiodepressivo.A sala de aula parecia nãoser usada há muito tempo, e nas paredes austeras viam-se marcas depioneses e de ita gomada amarelecida. Várias carteiras estavamempilhadasaumcanto,deixandoanuosoalhoriscado.Aúnica luzvinhadasjanelasemergulhavatudonostonsdecinzentoprópriosdoInverno.

Noni passara ao desenho seguinte da sua série de atrocidadesalienígenas. A vítima dos raios da morte verde-limão tinha agora umburaco na cabeça donde saíambolhas arroxeadas. Por cima, via-se a suaexclamação de morte, delimitada por uma bolha como na bandadesenhada.AHHHHHH!

Noni, lembras-tedaquelanoiteemquefalámoscontigo?Oscaracóiscastanhosagitaram-separacimaeparabaixo,numgestoafirmativo.

Tununcamaisviestever-me.Pois,tenhoandadoacorrerdeumladoparaooutro.Devias deixar de andar a correr. Devias aprender a sentar-te e a

descontrair.Haviaecosdeumavozadultanestaa irmação.Nãoandessemprea

correr,Noni!EnãodeviasestartãotristeacrescentouNoni,pegandonoutrolápis.Emsilêncio,Rizzoliobservouameninaadesenhargotasvermelho-

vivoquesaíamdacabeçarebentada.Céus,pensou.Estacriança temolho.Estegnomodestemidovêmaisdoqueasoutraspessoas.

ÉsmuitoobservadoradisseRizzoli.Vêsmuitascoisas,hem?Umavezviumabatataarebentar.Nomicroondas.Contaste-nos umas coisas da última vez, acerca da irmã Ursula.

Dissestequeelaralhoucontigo.Eralhou.Elachamou-temalcriada,porquefizesteperguntassobreasmãosde

umamulher.Lembras-te?Noni levantou a cabeça, e viu-se um olho escuro a espreitar por

baixodomontedecaracóis.JulgueiquesóqueriassabercoisasdairmãCamille.Também me interessa a irmã Ursula. E a mulher que tinha um

defeitoqualquernasmãos.Oquequeriasdizercomisso?Ela não tinha dedos. Noni pegou num lápis preto e desenhou um

pássaro a voar por cima do homem que tinha rebentado. Uma ave derapina com umas asas pretas enormes. Abutres. Eles comem as pessoasmortasexplicouela.

Aqui estou eu, a con iar na palavra de uma criança que desenha

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alienígenaseraiosdamorte,pensouRizzoli.Inclinou-separaafrenteeperguntou,tranquilamente:Ondeéquevisteessamulher,Noni?Nonipousouolápisesuspirou,comoseestivessecansada.Estábem.Jáquetensdesaber.Dizendoisto,saltoudacadeira.Ondevais?Voumostrar-teondeestavaasenhora.O casaco de Noni estava-lhe tão grande que a criança parecia um

homenzinhodaMichelin,acaminharpesadamenteatravésdaneve.Rizzoliseguiu as pegadas deixadas pelas botas da criança, como um soldadosubmisso atrás de um general determinado. Atravessaram o pátio epassarampelafonte,ondeaneveseacumularaemcamadascomosefosseumbolodenoiva.Acriançaparoujuntodoportãoeapontou.

Elaestavaali.Doladodeforadoportão?Sim.Tinhaumlençograndea tapar-lheacara.Pareciaoassaltante

deumbanco.Entãonãolhevisteacara?Noniabanouacabeça,agitandooscaracóis.Essasenhorafaloucontigo?Não,ohomeméquefalou.Rizzolifitou-a.Elavinhacomumhomem?Elepediu-meparaosdeixarentrar,porqueelesprecisavamdefalar

com a irmã Ursula.Mas é contra o regulamento, e eu disse-lhes. Se umairmã não cumprir o regulamento, é expulsa. A minha mãe diz que asfreiras não têm mais nenhum sítio para onde ir e, portanto, cumpremsempreoregulamento,commedodeficaremnarua.

Nonifezumapausa.Levantouacabeçaeacrescentoucomumcertoorgulho:

Maseuandosemprenarua.Issoéporquenãotensmedodenada.Ésdestemida,pensouRizzoli.Noni começouadescreveruma linhananevecomasbotinhascor-

de-rosa, marchando com a precisão de um soldado. Cortou um galho edesenhoumetadedeumrosto,apagandoa linhaparalelacomospés.Elajulgaqueéinvencível,pensouRizzoli.Masétãopequenaevulnerável!Nãopassadeumapequerruchadentrodeumcasacoenfunado.

Eoqueaconteceudepois,Noni?A criança voltou para trás a arrastar os pés e parou de repente, a

olharparaasbotascobertasporumacamadadeneve.

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Asenhorapassouumacartaatravésdoportão.Noniinclinou-separaafrenteeacrescentouemvozbaixa:Eeuviqueelanãotinhadedos.Entregaste essa carta à irmã Ursula? A menina fez um sinal

afirmativo.Eelaveiocáfora.Logo.Efaloucomeles?Noniabanouacabeça.Porquê?Porquequandoelaveiocáfora,elesjásetinhamidoembora.Rizzolivirou-seeolhouparaopasseioondeosdoisvisitantestinham

ficado,implorandoaumacriançarecalcitrantequeosdeixasseentrar.De repente, sentiu os pêlos da nuca se eriçarem. A Senhora dos

Ratos.Elatinhaestadoali.

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DezesseisRizzolisaiudoelevadordohospital,passoupelaplacaondeseliaTODOS OS VISITANTES DEVERÃO IDENTIFICAR-SE À ENTRADA.

atravessouasportasduplaseentrounaUnidadedeCuidados Intensivos.Era uma hora da manhã, e as luzes estavam reduzidas ao mínimo paraassegurar o sono dos doentes. Saída directamente do corredor bemiluminado,encontrouumespaçoemqueasenfermeiraseramvultos semrosto. Só um dos compartimentos destinados aos pacientes tinha a luzacesa,queaatraiucomosefosseumfarol.

A agente negra que estava no exterior do compartimentocumprimentouRizzoli.

Olá,detective.Chegoucádepressa.Elajádissealgumacoisa?Não pode. Ainda tem aquele tubo en iado na garganta. Mas está

acordada.Temosolhosabertoseouviaenfermeiradizerqueelafazoquelhepedem.Todaagenteestáadmiradaporelateracordado.

O guincho do alarme do ventilador obrigou Rizzoli a espreitaratravés da entrada do compartimento o grupo de pessoal médicoconcentradoàvoltadacama.Reconheceuoneurocirurgião,oDr.Yuen,eointernista, o Dr. Sutcliffe, cujo rabo-de-cavalo louro era um pormenordesconcertantenaqueleconjuntodeprofissionaisdeaspectoaustero.

Oquesepassaaqui?Não sei. É algo relacionado com a pressão arterial. O Dr. Sutcliffe

chegouaquiquandoascoisascomeçaramacomplicar-se.Depoisapareceuo Dr. Yuen, e, desde então, têm estado sempre de volta dela. A agenteabanouacabeça.Nãomeparecequeaquiloestejaacorrerbem.Aquelasmáquinasnãosecalam.

Bolas, nãomedigamquevamosperdê-laprecisamentequandoelaacorda.

Rizzolien iou-senocompartimento,ondeobrilhointensodaluzerapenosoparaosseusolhoscansados.NãoconseguiuverairmãUrsula,queestavaescondidapelopessoal,masviuosmonitoresàcabeceiradacama.Oritmocardíacosaltavacomoumapedraàsuperfíciedaágua.

Ela está a tentar arrancar o tubo endotraqueal! exclamou umaenfermeira.

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Ate-lhemelhoressamão!...Ursula,descontraia-se.Tentedescontrair-se.Assístolesdesceramparaoitenta...Porqueestáelatãoafogueada?perguntouYuen.Olhemparaacara

dela!Omédicoolhouderelancequandooventiladorguinchou.Demasiada resistência ao ar explicou uma enfermeira. Ela está a

lutarcomoventilador.Atensãoestáadescer,Dr.Yuen.Estácomoitentasístoles.Vamosdar-lheumagotadedopamina.Já.Derepente,umaenfermeirareparouqueRizzoliestavaàporta.Minhasenhora,vaiterdesair.Elaestáconsciente?perguntouRizzoli.Saiadocompartimento!EutratodistodisseSutcliffe.Omédicoagarrou-aporumbraço,eoseugestonãofoinadameigo

quandoapôsforadocompartimento.Fechouacortina,impedindo-adeveradoente.Naquelasemiobscuridade,Rizzolisentiuoolhardasenfermeiras,que a observavam dos seus diversos postos na Unidade de CuidadosIntensivos.

Detective Rizzoli, tem de deixar-nos fazer o nosso trabalho disseSutcliffe.

Tambémestouatentarfazeromeu.Elaéanossaúnicatestemunha.Eencontra-seemestadocrítico.Temosdedeixarpassarestacrisee

sódepoisalguémpoderáfalarcomela.Maselaestáconsciente?Está.Compreendeoqueseestáapassar?O médico não respondeu logo. À luz fraca da UCI, Rizzoli não

conseguiu ler a sua expressão. Distinguiu apenas os ombros largos e oreflexoesverdeadodosolhosdevidoàproximidadedosmonitores.

Não tenho a certeza. Francamente, nunca esperei que elarecuperasseaconsciência.

Porqueestáatensãoarterialadescer?Éumdadonovo?Há pouco ela começou a entrar em pânico, talvez devido ao tubo

endotraqueal. É uma sensação assustadora, sentirmos um tubo nagarganta, mas é necessário para ajudá-la a respirar. Demos-lhe Valiamquandoatensãodisparou.Depois,derepente,começouadescer.

Umaenfermeiraarredouacortinadocompartimentoechamou:

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DoutorSutcliffe?Sim?A tensão não está a reagir, mesmo com dopamina. Sutcliffe

regressouaocompartimento.Através da porta aberta, Rizzoli assistiu ao drama que se

desenrolavaapoucosmetrosdela.Afreiratinhaospunhoscerrados,eostendões dos braços pareciam cordas esticadas enquanto ela tentavalibertar-sedosatilhosquelheprendiamasmãosàsgradesdacama.Tinhao cimo da cabeça envolvido em ligaduras e a boca estava escondida pelotuboendotraqueal,maso rosto erabemvisível. Parecia inchado, e a faceestavamuitocorada.Presacomoumamúmianaquelaprofusãodegazeede tubos, Ursula tinha os olhos de um animal acossado, com as pupilasdilatadas pelomedo, e virava-os freneticamente ora para a esquerda orapara a direita, como se procurasse fugir. As grades da cama abanavamcomoasdeumagaiolaquandoelapuxavaosatilhos.Todooseucorposeafastoudacamae,derepente,soouoalarmecardíaco.

Rizzoliolhouparaomonitor,ondeviuumalinhahorizontal.Está bem, está bem! exclamou Sutcliffe. Ela só desligou um dos

cabos.O médico voltou a ligar o io e a frequência do ritmo cardíaco

reapareceunoecrã.Umrápidoblip-blip-blip.Aumentemadosededopamina!ordenouYuen.Vamosempurraros

fluidos.Rizzoli viu a enfermeira a abrir completamente o ori ício do tubo

intravenoso,descarregandoumfluxodesoluçãosalinanaveiadeUrsula.Oolhar da freira cruzou-se com o seu num derradeiro momento deconsciência. Antes de começar a icar com os olhos vidrados, antes de aúltimacentelhadeconsciênciasedissipar,oqueRizzoliviunaqueleolharfoiumterrormortal.

Atensãocontinuaanãoaumentar!Desceuparaseis...OsmúsculosdafacedeUrsularelaxarameasmãosimobilizaram-se.

Porbaixodaspálpebras,osolhosdeixaramdever.Arritmias!exclamouaenfermeira.Estouaverarritmias!Todos os olhares se desviarampara omonitor cardíaco.O traçado,

queaté aímostravaumritmo cardíaco acelerado,masuniforme,no ecrã,eraagorairregular.

Taquicardiaventricular!exclamouYuen.Nãoconsigosentiratensão!Olíquidonãoestáaentrar.Desçam essa grade da cama. Vá, vá, vamos dar início às

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compressões.Rizzoli foi empurrada para trás e obrigada a sair, quando uma

enfermeiracorreuparaaportaegritou:TemosumCódigoAzul!Pela janela do compartimento, Rizzoli assistiu à agitação que se

desenrolouàvoltadeUrsula.ViuacabeçadoDr.Yuenasubireadescerenquanto tentavaa reanimação.Viudiversosmedicamentos,unsa seguiraos outros, a serem injectados nos tubos intravenosos e compressasesterilizadasacaíremaochão.

Rizzoli olhou para o monitor. O traçado era agora uma linha emziguezague.

Passemparaduzentos!No interior do compartimento, todos recuaram quando uma

enfermeira se debruçou sobre a doente com as pás do des ibrilador.Rizzoli viu claramente os seios nus de Ursula, com a pele manchada evermelha. Surpreendeu-a umpouco que uma freira tivesse uns seios tãogenerosos.

Aspáslançaramumadescarga.O corpo deUrsula deu um solavanco, como se tivesse sido puxado

porcordas.AagentequeestavaaoladodeRizzolidisseemvozbaixa:Tenhoummaupressentimento.Elanãosesafa.Sutcliffelevantouacabeçaoutravezeolhouparaomonitor.Depois,

oseuolharcruzou-secomodeRizzoliatravésdajanela.Omédicoabanouacabeça.

Uma hora mais tarde, Maura chegou ao hospital. Depois dotelefonema de Rizzoli, levantara-se da cama, deixando Victor a dormir, evestira-se sem tomar banho. Ao subir de elevador para a UCI, sentiu ocheirodelenapele.Doía-lheocorpodabrutalidadecomquetinhamfeitoamor durante a noite. Ela entrara no hospital a cheirar a sexo, ainda apensar emcorposquentes, enãoemcadáveresgelados.Nosvivos, enãonosmortos.Encostou-seàparededoelevador,fechouosolhosepermitiu-se saborear as recordações durante mais alguns segundos. Mais unssegundosdeprazer.

Ficousobressaltadaquandoaportaseabriu.Afogueada,precipitou-separaasaída,quasesemolharparaasduasenfermeirasqueesperavampara entrar. Terão reparado?, interrogou-se, ao descer o corredor. Comcerteza que toda a gente detecta na minha cara o rubor pecaminoso dosexo.

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RizzoliestavanasaladeesperadaUCI,sentadanosofáabebercafénuma chávena descartável. Quando Maura entrou, mirou-a, como setambémdetectassenela algodiferente.Um rubor indecoroso, nessanoiteemqueatragédiaasconvocara.

Dizem que teve um ataque cardíaco. A situação parece ser grave.Estãoatentarreanimá-la.

Aquehoraséqueelateveoataque?Por volta da uma. Tentaram reanimá-la durante quase umahora e

conseguiramqueoritmocardíacovoltasse.Masagoraestáemcoma.Semrespiraçãoespontânea.Semreacçãopupilar.Rizzoliabanouacabeça.Achoquenãovoltaaacordar.

Oquedizemosmédicos?Bem, esse é o pomo da discórdia. O Dr. Yuen não quer desligar a

máquinaporenquanto.Masohippieachaqueocérebrodelaestámorto.Refere-seaoDr.Sutcliffe?Sim. O garanhão de rabo-de-cavalo. Mandou fazer um

electroencefalogramademanhãparaverificaraactividadecerebral.Senãoexistir,édi ícil justi icaramanutençãodoapoiovital.Rizzoli

concordou.Eujácalculavaquedissesseisso.Aparagemcardíacatevetestemunhas?Oquê?Haviapessoalmédicopresentequandoocoraçãodelaparou?Rizzoli

pareciairritada,desconcertadacomasperguntasbanaisdeMaura.Pousouachávenacomforça,salpicandoamesadecafé.

Umamultidão,porsinal.Eutambémláestava.Oqueprovocouoataque?Disseramqueatensãocomeçouporsubirequeopulsodescarrilou.

Quando cheguei, a tensão já estava a descer. E foi então que o coraçãoparou.Portanto,todooprocessotevetestemunhas.

A televisão estava ligada, mas sem som. Transmitia o noticiário daCNN, e na banda que se deslocava na parte inferior do ecrã, Rizzoli leu:Funcionário descontente alveja quatro pessoas em fábrica de automóveisna Carolina do Norte... Derrame de produtos químicos tóxicos nodescarrilamentodeumcomboionoColorado...Umasériededesastresemtodoopaís,eaquiestamosnós,duasmulherescansadas,atentarquetudocorrabemestanoite.

Maurasentou-senosofáaoladodeRizzoli.Comovai,Jane?Parecedesanimada.

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Sinto-me terrivelmente mal. Como se tivesse esgotado todas asminhasenergias.Enãomerestassenada.

Bebeu o último gole de café e atirou a chávena para o cesto dospapéis,mas falhouapontaria. Ficouaolharpara ela, demasiado cansadaparaselevantareirapanhá-la.

Ameninaidentificou-odisseRizzoli.Oquê?ANoni.Rizzolifezumapausa.Gabrielfoimuitomeigocomela,oque

me surpreendeu. De certo modo, eu não esperava que ele tivesse jeitopara crianças. Você sabe como ele é, impenetrável. Tenso.Mas sentou-seao ladodelaeconseguiuqueela fossecomer-lheàmão...desviouoolhar,pensativa,masdepoisrecompôs-se.ElareconheceuafotografiadeHowardRedfield.

FoielequeesteveemGraystones?QueacompanhouJaneDoe?Rizzolifezumgestoafirmativo.Foramláosdois.Etentaramentrar,vê-la.Mauraabanouacabeça.Não percebo. O que têm estas três pessoas a ver umas com as

outras?EssaéumaperguntaaquesóairmãUrsulapodiaresponder.Rizzoli

levantou-seevestiuocasaco.Dirigiu-separaaporta,masdepoisparoueolhouparaMaura.

Elachegouaacordar,sabe?AirmãUrsula?Antesdesofreroataque,elaabriuosolhos.Achaqueelaestavamesmoconsciente?Quetinhaanoçãodoquese

estavaapassar?Apertou a mão da enfermeira. Reagiu às ordens. Mas eu não tive

oportunidadede falar comela.Euestavaalidepé, e elaolhouparamim,precisamenteantesde... calou-se,comoseopensamentoaabalasse.Fuiaúltimapessoaqueelaviu.

Mauradirigiu-separaaUnidadedeCuidadosIntensivos.Passoupormonitorescomluzesverdesapulsarepelasenfermeirasquecochichavamno exterior dos compartimentos resguardados por cortinas. Quando erainterna e estava de turno, as suas visitas a desoras à UCI eram sempreocasiões de ansiedade um doente a morrer, uma crise que exigia a suadecisãorápida.Mesmoapóstodosestesanos,aoentrarnaUCIsentiuqueo pulso acelerava. Mas nessa noite não a esperava nenhuma crise denaturezaclínica;estavaaliparaverificarasconsequências.

EncontrouoDr.SutcliffeàcabeceiradeUrsula,aescreverqualquer

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coisa na icha clínica da doente. A caneta dele imobilizou-se, com o bicoencostado ao papel, como se tivesse di iculdade em redigir a fraseseguinte.

DoutorSutcliffe?Ele olhou para ela. No rosto bronzeado viam-se novas rugas de

cansaço.AdetectiveRizzolipediu-mequeviesseaqui.Disse-mequetenciona

desligaramáquina.Você está a antecipar-se,mais uma vez respondeu ele. O Dr. Yuen

resolveu esperar mais um ou dois dias. Quer ver primeiro oelectroencefalograma. É irónico, não é? Há páginas e páginas sobre osúltimos dias dela neste mundo. Mas a história da vida dela cabe numpequenoparágrafo.Háqualquercoisadeerradonisto.Deobsceno.

Pelo menos você conhece os seus doentes quando eles aindarespiram.Eunemsequertenhoesseprivilégio.

Nãomeparecequeeugostassedoseutrabalho,doutoraIsles.Hádiasemquenemsequerpensonisso.Entãoporqueoescolheu?Porquepreferiuosmortosaosvivos?Eles merecem atenção. Querem que saibamos porque é que

morreram.ODr.SutcliffeolhouparaUrsula.Sevocêquersaberoquecorreumalnestecaso,eupossodar-lhea

resposta. Não fomos su icientemente rápidos. Ficámos aqui a observar oestado de pânico da doente e devíamos tê-la sedado. Se a tivéssemosacalmadomaiscedo...

Estáadizerqueelasofreuumataquecardíacodevidoaopânico?Foi assim que começou. Primeiro, uma subida rápida da tensão

arterial e das pulsações. Depois, uma descida brusca da tensão, ecomeçaram as arritmias. Levámos vinte minutos a recuperar o ritmocardíaco.

Oquemostraoelectrocardiograma?Um enfarte do miocárdio agudo. Ela está em coma profundo. Não

temreacçõespupilares.Nãoreageàdor.Équasecertoquesofreu lesõescerebraisirreversíveis.

Éumpoucocedoparafazeressaafirmação,nãoé?Eusourealista.OdoutorYuentemesperançaquerecupere,masele

é um cirurgião. Quer as suas estatísticas cor-de-rosa. Se o doentesobreviver à operação, ele pode averbar mais um êxito. Mesmo que odoentefiqueemestadovegetativo.

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Mauraaproximou-sedacamaefranziuosobrolhoaoveradoente.Porqueestáelatãoedematosa?Administrámos-lhe vários medicamentos por via intravenosa

duranteoataque,paratentarqueatensãoarterialsubisse.Éporissoqueelatemacarainchada.

Maura examinou os braços de Ursula e reparou numas pústulasavermelhadas.

Parecemvestígiosdeurticária.Quemedicamentoséqueelatomou?Amisturahabitualqueadministramosduranteosataquescardíacos,

paracombaterasarritmias.Dopamina.Acho que você deve pedir uma despistagem medicamentosa e

toxicológica.Desculpe?Esta paragem cardíaca não tem explicação. E esta urticária parece

umareacçãoaosmedicamentos.Não costumamos pedir despistagens toxicológicas só porque um

doentesofreumataquecardíaco.Nestecaso,devepedir.Porquê? Acha que cometemos algum erro? Que lhe demos alguma

coisaquenãodevíamos?O Dr. Sutcliffe parecia agora na defensiva. A fadiga estava a dar

lugaràirritação.ElaétestemunhadeumcrimelembrouMaura.Aúnicatestemunha.Passámos os últimos sessentaminutos a tentar salvar-lhe a vida. E

agoravocêinsinuaquenãoconfiaemnós.Ouça,euestouapenasatentarsercuidadosa.Estábem.Voumandarfazeradespistagem,sóporsuacausa.disse,

fechandoafichaesaindodocompartimento.Mauradeixou-se icar a observarUrsula, que jazia banhadana luz

suaveesepulcraldocandeeirodacabeceira.Nãoviunenhumdosobjectoshabituaisqueeramapanágiodeumaoperaçãodereanimação.Asseringasusadas,osfrascoseascompressasesterilizadasqueseutilizavamsemprenumasituaçãodaqueletipotinhamsidolevados.Opeitodadoentesubiaedesciaapenasdevidoaoarvindodosfolesdoventilador,quelheentravaàforçanospulmões.

Maura pegou numa lâmpada de fenda e examinou os olhos deUrsula.

Nenhumadaspupilasreagiuàluz.Aoendireitar-se, sentiuderepentequealguémaobservava.Virou-

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separatráseficouadmiradaaoveropadreBrophyàporta.As enfermeiras telefonaram-me disse ele. Pensaram que pode ter

chegadoahora.Tinhaolheirasprofundaseabarbaporfazerescurecia-lheoqueixo.

Como era habitual, vestia o seu fato de sacerdote, mas trazia a camisaamarrotada. Maura imaginou-o a acordar àquela hora, a levantar-se dacamaeavestir-seàpressa.Apegarnaquelacamisaeadeixarocalordoseuquarto.

Querquesaia?perguntouele.Possovoltarmaistarde.Não, faça o favor de entrar, padre. Eu ia apenas rever a icha. Ele

obedeceu e entrou no compartimento. O espaço tornou-se de repentedemasiadoexíguo,demasiadoíntimo.

Maurapegouna ichaclínicaqueSutcliffealideixara.Sentou-senumbanco ao lado da cama e apercebeu-se mais uma vez do seu própriocheiro, interrogando-se se Brophy também o sentiria. O cheiro de Victor.Dosexo.Brophycomeçouarezareelafezumesforçoparaseconcentrarnosapontamentosdasenfermeiras.

00.15:Sinaisvitais:tensãoarterial13/9,pulsação80.Olhosabertos.Fazmovimentoscomsentido.Apertaamãodireitaapedido.Dr.YueneDr.Sutcliffedetectaramalteraçãodoestadomental.

00.43:Tensãoarterial18/10,pulsação120.Dr.Sutcliffeesteveaqui.Doenteagitadaeatentararrancartuboendotraqueal.

00.50: Tensão arterial sistólica desceu para 11. Afogueada emuitoagitada.Dr.Yuenesteveaqui.

00.55:Tensãoarterialsistólica8,5,pulsações180.Tubointravenosototalmenteaberto...

Àmedidaqueatensãoarterialdescia,osapontamentostornavam-semaisconcisosea letramaisapressada,atésetransformaremgatafunhosquase ilegíveis. Maura imaginou a sucessão dos acontecimentos naquelecompartimento. A luta desordenada para encontrar sacos intravenosos eseringas.Aenfermeiraacorrerdeumladoparaooutroparairbuscarosmedicamentos. As compressas esterilizadas abertas à pressa, os frascosesvaziados, as dosagens correctas freneticamente calculadas. Tudo istoenquantoadoentesedebatiaeatensãoarterialdesciaapique.

01.00:CódigoAzulaccionado.Agora, a letra era diferente. Fora outra enfermeira a registar os

acontecimentos. As novas entradas eram impecáveis e metódicas, otrabalho de uma enfermeira cuja função durante o ataque cardíaco eraapenasobservaredocumentar.

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Fibrílação ventricular. Cardioversão a 300 joules.Dose intravenosadelidocaínaaumentadapara4mglminuto.

Cardioversãorepetida,400joules.Aindaemfibrilação.Pupilasdilatadas,masaindareactivasàluz...Aindanãoestavaadesistir,pensouMaura.Pelomenosenquantoas

pupilasreagissem.Enquantoaindahouvesseumahipótese.Mauralembrou-sedoprimeiroCódigoAzulquedirigiranointernato

eda relutânciaque sentira em reconhecer aderrota,mesmoquandoeraóbvio que o doente não tinha salvação.Mas a família do homemestava àespera lá fora a mulher e dois ilhos adolescentes e era no rosto dosrapazes que Maura continuava a pensar enquanto aplicava as pás dodes ibrilador, uma e outra vez. Os dois rapazes tinham altura su icientepara serem adultos, uns pés enormes e marcas de acne na face, maschoravam como crianças, e ela prolongara as tentativas de reanimaçãomuito para alémda inutilidade, pensando: aplica-lhemais um choque. Sómaisum.

Maura apercebeu-se de que o padreBrophy se calara. Levantou acabeçaedeucomeleaobservá-la,tãofixamentequesesentiuinvadida.

E,aomesmotempo,estranhamenteexcitada.Fechoua icha,umgestoostensivamentepro issionalparadisfarçar

asuaatrapalhação.TinhaacabadodesairdacamadeVictor,massentia-seatraídaporestehomem.Sabiaqueasgatascomcioconseguiamatrairosmachoscomoseuodor.Seriaesseosinalqueelaestavaadar,oodordeumafêmeareceptiva?Umamulherquepassaratantotemposemsexoquenãoconseguiasaciar-se?

Mauralevantou-seepegounocasaco.Eleavançouparaaajudaravestir-se.Aproximou-seportráseabriu

ocasacoenquantoelaen iavaosbraçosnasmangas.Maurasentiuamãodele a roçar-lhe na pele. Foi um toque acidental, mais nada, masdesencadeou um arrepio alarmante. Ela afastou-se e abotoou o casaco àpressa.

Antesdesair,gostavademostrar-lheumacoisa.Vemcomigo?perguntouele.Onde?Láabaixo,aoquartopiso.Confusa,Maurafoiatrásdeleatéaoelevador.Entrarame,maisuma

vez, partilharam um espaço fechado que parecia demasiado exíguo. Elaen iouasmãosnasalgibeirasepermaneceuestoicamenteaolharparaosnúmerosdospisos,perguntandoasiprópria: serápecadoconsiderarum

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padreatraente?Senãoerapecado,eracomcertezaumaloucura.Por im, a porta do elevador abriu-se, e ela percorreu o corredor

atrás dele. Atravessaram várias portas e entraram na Unidade deCuidados Coronários. Tal como no bloco operatório da Unidade deCuidadosIntensivos,a intensidadedaluzforareduzidaduranteanoite.OpadreBrophyconduziu-aàcentraldemonitoreselectrocardiográficos.

A enfermeira corpulenta que estava sentada em frente dosmonitores desviou o olhar dosmúltiplos traçados cardíacos emostrou osdentesnumsorriso.

PadreBrophy!Andaafazerrondasnocturnas?Ele tocou no ombro da enfermeira, um gesto fácil e familiar que

denunciou uma amizade confortávelrMaura lembrou-se da primeira vezque vira Brophy, a atravessar o pátio cheio de neve sob o quarto deCamille.Elepousaraumamãoanimadoranoombrodavelha freiraqueocumprimentara. Era umhomemquenão tinha receio de oferecer o calordoseucontacto.

Boa noite, Kathleendisse ele, com a cadência suave do irlandês deBoston.Anoitetemsidocalma?

Até agora sim, longe vá o agouro. As enfermeiras pediram-lhe queviesseveralguém?

Nãoénenhumdosseusdoentes.Estivemos láemcima,naUnidadede Cuidados Intensivos. Eu trouxe a doutora Isles cá abaixo para irmosfazerumavisita.

Asduasdamanhã?Kathleenriu-seeolhouparaMaura.Eledácabodesi.Estehomemnãotemdescanso.Descanso?Oqueéisso?perguntouBrophy.Éumacoisadequenós,pobresmortais,precisamos.Brophyolhouparaomonitor.EcomovaionossoMisterDemarco?Ah, o nosso doente especial. Amanhã vai ser transferido para a

enfermaria.Eudiriaqueeleestáaevoluirmuitobem.Brophy apontou para a linha electrocardiográ ica da Cama 6, que

avançavaserenamentenoecrã.Ali disse ele, tocando no braço de Maura, que sentiu a respiração

delenoseucabelo.Eraistoqueeuqueriamostrar-lhe.Porquê?perguntouMaura.MisterDemarcoéohomemquesalvámos,nopasseio.Ohomemque

vocêadmitiuquenãosobreviveria.Éonossomilagre.Oseueomeu.

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Nãoénecessariamenteummilagre.Jámetenhoenganado.Nãoasurpreendequeestehomemvásairdohospital?Mauraolhou

paraelenaintimidadesilenciosadapenumbra.Jánãohámuitascoisasquemesurpreendam,desculpequelhediga.Maura não queria ser cínica,mas foi assim que a frase lhe saiu, o

quealevouaperguntarasiprópriaseoteriadecepcionado.Porqualquermotivo, parecia ser importante para ele que ela demonstrasse algumaadmiração,eelalimitara-seacontemplá-locomoequivalenteverbaldeumencolherdeombros.

Noelevador,quandodesciam,Mauradisse:Eu gostava de acreditar em milagres, padre. Sinceramente. Mas

receioqueosenhornãoconsigaalteraraopiniãodeumavelhacéptica.Elereagiucomumsorriso.Asenhora foicontempladacomumamentebrilhante,eéclaroque

devefazerusodela.Fazerassuasprópriasperguntaseencontrarassuasprópriasrespostas.

Tenhoacertezaqueosenhorfazasmesmasperguntasqueeu.Todososdias.Mas aceita o conceito de divino. Nunca sente a sua fé abalada?

Seguiu-seumapausa.Aminha fé, não. Com ela posso eu contar.Maura detectou alguma

incertezanavozdeleefitou-o.Então,oquequestiona?Ele encarou-a, comumar quepareceu ir direito àmentedela, ler-

lheospensamentoscontraasuavontade.Aminhaforça.Àsvezes,questionoaminhaprópriaforçarespondeu

eleserenamente.Lá fora, sozinha no parque de estacionamento do hospital, Maura

recebeu lufadas castigadoras de ar frio. O céu estava limpo e as estrelasbrilhavam intensamente. Entrou no carro e deixou-se icar sentadaenquanto o motor aquecia, tentando compreender o que se acabara depassar entre ela e o padre Brophy. Absolutamente nada, a inal, mas elasentia-se culpada, como se tivesse acontecido alguma coisa. Culpada eentusiasmada.

Percorrendoasruasresplandecentesdegelo,foiparacasaapensarno padre Brophy e em Victor. Saíra cansada; agora, estava desperta eagitada,comosnervosàflordapele,esentia-semaisvivadoquenunca.

Arrumou o carro na garagem e já ia a despir o casaco quandoentrouemcasa.Jáiaadesabotoarablusaquandosedirigiuparaoquarto.

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Victor dormia profundamente, sem saber que ela estava ao pé dele, adespir-se. Nos últimos dias, passaramais tempo em casa dela do que noquarto do hotel, e agora parecia pertencer à cama dela. À vida dela. Atremer de frio, Maura en iou-se debaixo dos lençóis, que estavamdeliciosamentequentes,eafrescuradasuapelecontraadelefê-lomexer-se.

Umascarícias,unsbeijos,eeleacordoucompletamente,excitado.Maurarecebeu-o,incitando-o,e,emboraestivessedebaixodele,não

era por submissão. Desfrutou o seu próprio prazer, tal como ele,reclamando o que lhe era devido com um grito abafado de triunfo. Masquando fechou os olhos e sentiu o clímax dele dentro de si, não pensouapenasnorostodeVictor,mastambémnodopadreBrophy.Umaimagempassageira que não se consolidava, que ia e vinha, ao ponto de ela nãosaberaquempertencia.

Pertenciaaambos.Eanenhum.

DezesseteNoInverno,osdiaslímpidossãoosmaisfrios.Mauraacordoucomo

solabrilharnabrancuradanevee,apesardelheagradarverocéuazul,ovento era implacável e o rododendro que tinha no exterior da casacurvava-se como um velho, com as folhas penduradas e encarquilhadaspelofrio.

Bebeuocafénocaminhoparaoemprego,piscandoosolhosparaseprotegerdaluzdosoleansiandopordarmeiavoltaeirparacasa.Voltarameter-se na cama com Victor e passar o dia inteiro ao pé dele, aaquecerem-seumaooutrodebaixodoedredão.Nanoiteanterior, tinhamcantadocançõesdeNatalelecomasuabelavozdebarítonoeelatentandoharmonizar-se com a sua voz de contralto desa inado. O resultado foipéssimo,eacabaramosdoisariremvezdecantar.

Enessamanhã,láiaelaacantaroutravez,desafinadacomosempre,por entre os candeeiros das ruas enfeitados com grinaldas e asmontrasdos grandes armazéns, onde os manequins exibiam os vestidoscoruscantes próprios da época. Há várias semanas que as grinaldas e os

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festões estavam ali, evidentemente, mas Maura nem reparara neles.Algumavez reinarana cidadeumambiente tão festivo?Algumaveza luzdosolsereflectiracomtantaintensidadenaneve?

QueDeusvosabençoe,queavossaalegrianãoesmoreça.Entrounoedi íciodo InstitutodeMedicinaLegal emAlbanyStreet,

emcujoátrioselia,emgrandesletrasdepapeldealumínio,PAZNATERRA.Louiseolhouparaelaesorriu.Hojeestácomumarfeliz.Estouapenascontenteporverdenovoosol.Aproveite enquanto dura. Sei que vamos ter mais neve amanhã à

noite.Agrada-me que neve na véspera de Natal. Maura tirou alguns

bombonsdechocolatedataçaqueestavaemcimadasecretáriadeLouise.Qualéoprogramaparahoje?

Nãochegounadaontemànoite.AchoqueninguémquermorrernasvésperasdoNatal.OdoutorBristoltemdeestarnotribunalàsdezetalvezvá directamente para casa, se a senhora puder assegurar as chamadasdele.

Se isto se mantiver calmo, é provável que eu também saia cedo.Louiseergueuosobrolho,surpreendida.

Parasedivertir,espero.Podecrer.VouascomprasdisseMaura,dandoumagargalhada.Entrou no gabinete, onde nem a pilha de relatórios e de ordens

internasqueaguardavamrevisãoconseguiuestragar-lheaboadisposição.Sentou-seàsecretáriaepassouahoradealmoçoatrabalhareasaborearalegrementeoschocolates.TencionavasairporvoltadastrêseirdireitaaoSaksFiíthAvenue.

NãocontavacomumavisitadeGabrielDean.Quandoeleentrounoseugabineteàsduasemeiadatarde,nemelaimaginavacomoessavisitairiaalteraroseudia.Comosempre,achou-oimpenetrávelemaisumavezreconheceu que seria improvável existir um caso amoroso entre umapessoatemperamentalcomoJaneRizzolieestehomemfrioeenigmático.

Regresso a Washington esta tarde disse ele, pousando a pasta.Queriasaberasuaopinião-acercadeumacoisaantesdepartir.

Comcerteza.Primeiro, posso dar uma vista de olhos aos restosmortais de Jane

Doe?Estátudonomeurelatóriodeautópsia.

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Mesmo assim, acho que devia ser eu a ver. Maura levantou-se dacadeira.

Devoavisá-loqueoespectáculonãoseránadaagradáveldisseela.Arefrigeraçãoconsegueretardar,masnãointerromper,oprocesso

dedecomposição.QuandoMauraabriuo fechodecorrerdosaco, tevedeproteger-se dos cheiros. Já avisara Dean sobre o aspecto do corpo, e elenempestanejouquandooplásticoseabriuereveloucarnevivaemvezdeumrosto.

FoicompletamenteesfoladodisseMaura.Apelefoicortadaaolongodocourocabeludo,nacoroa,e,emseguida,puxadaparabaixo.Esoltacomoutraincisãoporbaixodoqueixo.Comosearrancaumamáscara.

Eelelevouapele?Nãofoiaúnicacoisaqueelelevou.Mauraabriucompletamenteosaco.Ocheiroexaladofoitãointenso

que ela lamentou não estar devidamente protegida. Mas Dean pediraapenasumvisionamentosuper icialenãoumexamecompleto,eestavamambosdeluvas.

Asmãosdisseele.Foram ambas amputadas, assim como uma parte dos pés. A

princípio, julgámos que estávamos perante um coleccionador, para quemaspartesdocorpoeramtrofeus.Aoutrahipóteseeraqueeleestivesseatentarocultara identidadedavítima.Nemimpressõesdigitais,nemrosto.Esteseriaummotivopráticoparaaremoção.

Senãofossemospés.E isso é que não fazia sentido. Então, admiti que houvesse outro

motivo para a amputação. Não foi para esconder a identidade dela, massimofactodeelaterlepra.

Eestaslesõesabrangemtodaapeledocorpo?TambémresultamdadoençadeHansen?

Esta erupção de pele chama-se eritema nodoso leproso. E umareacção ao tratamentomédico. É óbvio que ela estava a ser tratada comantibióticos.Porissoéquenãodetectámosbactériasactivasnabiópsiadapele.

Nãoéaprópriadoençaqueprovocaestaslesões?Não. Isto é um efeito secundário de um tratamento recente com

antibióticos.Aavaliarpelasradiogra ias,elapadeciadadoençadeHansenhá algum tempo, talvez há anos, antes de começar a receber tratamento.MauralevantouacabeçaeolhouparaDean.Jáviuosuficiente?

Elefezumsinalafirmativo.

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Agoraqueromostrar-lheumacoisa.Jáláemcima,nogabinete,Deanabriuapastaetirouumdossiê.Ontem, depois da nossa reunião, telefonei para a Interpol e pedi

informaçõessobreomassacredeBara. Isto foioqueaDivisãodeCrimesEspeciais da Polícia Judiciária indiana me enviou por fax. Também meenviarampore-mailalgumasfotografiasdigitaisqueeugostavaquevisse.

Mauraabriuodossiêeviuafolhaderosto.Éumdossiêdapolícia.DoestadoindianodeAndhraPradesh,ondeficavaaaldeiadeBara.Emquefaseseencontraainvestigação?Prossegue. O caso tem um ano, e eles ainda não izeram grandes

progressos. Duvido que alguma vez seja resolvido. Nem sequer tenho acertezaquesejaumagrandeprioridade.

Forammortasquasecempessoas,agenteDean.Pois,mastemdeinseriresteacontecimentonoseucontexto.Um sismo é um acontecimento. Um tornado é um acontecimento. O

massacre de toda a população de uma aldeia não é um acontecimento. Éumcrimecontraahumanidade.

Repare no que está a acontecer no Sul da Ásia. Em Caxemira,massacres emmassa efectuados por hindus e muçulmanos. Na índia, oscrimes dos tamils e dos sikhs. Além disso, todos os outros crimes entrecastas.Osbombardeamentosdeguerrilheirosmaoistas-leninistas...

A madre Mary Clement está convencida de que se tratou de ummassacrecommotivaçõesreligiosas.Deumataquecontraoscristãos.

Essesataquesacontecemnaquelazona.MasaclínicaemqueairmãUrsula trabalhava era inanciada por uma instituição secular. As outrasduas enfermeiras, as que morreram no massacre, não pertenciam anenhuma Igreja. Por isso é que a polícia de Andhra Pradesh duvida quetenhasidoumataquereligioso.Umataquepolítico,talvez.Ouumcrimedeódio, porque as vítimas foram leprosos. Esta era uma aldeia dosdesprezados.DeanapontouparaodossiêqueMauratinhanamão.Háunsrelatóriosdeautópsiaqueeuqueroquevocêveja,efotogra iasdolocaldocrime.

Maura virou a página e olhou para uma fotogra ia. Ficou tãoatordoada que nem conseguiu falar. Nem conseguiu desviar o olhardaquelehorror.

EraumavisãodoArmagedão.Emcimademontesdelenhafumeganteecinzasviam-secadáveres

calcinados. O calor contraíra os músculos lexores e os corpos estavam

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imobilizadosemposespugilísticas.Nomeiodosdespojoshumanos,viam-secabrasmortascomopêloenegrecido.

Eles mataram tudo disse Dean. Pessoas. Animais. Até as galinhasforammortasequeimadas.

Maura fezumesforçoparapassarà fotogra ia seguinte.Viuoutroscorpos,aindamaisconsumidospelaschamas,reduzidosamontesdeossoscalcinados.

O ataque registou-se durante a noite explicou Dean. Só na manhãseguinteéqueoscorposforamdescobertos.Osoperáriosdoturnodediade uma fábrica nos arredores repararam no fumo espesso que vinha dovale. Quando lá chegaram, encontram aquilo. Noventa e sete pessoasmortas,muitasdasquaiserammulheresecrianças,eduasenfermeirasdaclínica,ambasamericanas.

AmesmaclínicaemqueUrsulatrabalhava.Agoravêmospormenoresverdadeiramenteinteressantesdisseele.Mauralevantouacabeça,maisatentadoquenunca.Sim?Essafábrica,nosarredoresdaaldeia.Qualeraoproblema?PertenciaàOctagonChemicals.Mauraficouaolharparaele.Octagon?NãoeranessaempresaqueHowardRedfieldtrabalhava?Elefezumgestoafirmativo.AqueestáaserinvestigadapelaComissão.Hátantasligaçõesentre

estastrêsvítimasqueistocomeçaaparecerumateiagigantesca.Sabemosque Howard Red ield era vice-presidente para as operações noestrangeiro daOctagon, a proprietária da fábrica nos arredores de Bara.Sabemos que a irmã Ursula trabalhou em Bara. Sabemos que Jane DoepadeciadadoençadeHansenequetambémpodetervividoemBara.

TudoremeteparaessaaldeiareconheceuMaura.Paraessemassacre.Caíram-lheosolhosnasfotografias.Oqueesperaqueeuencontrenestesrelatóriosdeautópsia?Diga-meseháalgumacoisaqueospatologistasindianosnãotenham

detectado.Algoquepossafazerluzsobreesseataque.Mauraolhouparaoscadáverescalcinadoseabanouacabeça.Vaiserdifícil.Aincineraçãoprovocaumagrandedestruição.Sempre

que o fogo está envolvido, pode não ser possível determinar a causa damorte, a menos que existam outras provas. Balas, por exemplo, oufracturas.

Várioscrâniosforamesmagados,segundoosrelatóriosdeautópsia.

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Eles concluíram que as vítimas devem ter sido atacadas durante o sono.Depois,oscorposforamretiradosdascabanas,empilhadosecremados.

Maurapassouàfotografiaseguinte.Maisumavisãodoinferno.Todasestasvítimas...Eninguémconseguiuescapar?Devetersidotudomuitorápido.Éprovávelquemuitasdasvítimas

estivessem deformadas pela doença e não conseguissem fugir. A inal,aquilo era um santuário para os doentes. A aldeia estava separada dasociedade, isolada num vale, numa estrada sem saída. Era fácil que umgrandegrupodeassaltantesentrasseematasseumacentenadepessoas.Eninguémouviriaosgritos.

Maura concentrou-se na última fotogra ia do dossiê. Mostrava umpequenoprédiocaiado,comcoberturadezincoeasparedeschamuscadas.À porta, via-se mais um amontoado de corpos, cujos rostos queimadosimpediamoreconhecimento.

Essaclínicafoiaúnicacoisaque icoudepé,porserconstruídacomblocos de escória prensada esclareceu Dean. Os restosmortais das duasfreiras americanas foram encontrados nessa pilha. Tiveram de seridenti icadosporumantropólogoforense.Dissequeasqueimaduraseramtão fortes que, na sua opinião, os agressores devem ter usado umcatalisador.Concordacomisso,doutoraIsles?

Maura não respondeu. Já não estava concentrada nos cadáveres.Observavaumacoisaqueconsideravamuitomaisperturbante.Umacoisaque,poralgunssegundos,lhecortouarespiração.

Sobre a porta da clínica, via-se uma placa com uma insígnia bemdistinta: um pombo a voar, cujas asas abertas protegiam amorosamenteumgloboazul.Umainsígniaqueelareconheceuimediatamente.

EraumaclínicadaOneEarth.DoutoraIsles?Maura levantou a cabeça, sobressaltada. E percebeu que ele

continuavaàesperadasuaresposta.Oscorpos...Nãoéassimtãofácilincinerá-losobservouela.Oteorde

águaémuitoelevado.Estescorposforamqueimadosatéaosossos.Sim,éverdade.Portanto,umcatalisador...Temrazão,éprovávelque

tenhamusadoumcatalisador.Gasolina?Talvez. É o que está mais à mão. Maura voltou a olhar para as

fotogra iasdaclínicaincendiada.Alémdisso,vêem-seclaramenteosrestosdeumapira,quemaistardeabateu.Estesramosqueimados...

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Issofazdiferença?Usarumapira?perguntouDean.Maurapigarreou.Se os corpos não estiverem em contacto com o solo, a gordura

derretidaalimentaaschamas.Ela...Mantémofogo.De repente, Maura juntou as fotogra ias e guardou-as de novo no

dossiê.Cruzouasmãossobreopapel-manilha.Apesardeestesersuaveaocontactocomapele,oseuconteúdoeraesmagador.

Se não se importa, agente Dean, eu gostava de dispor de algumtempo para ler estes relatórios de autópsia. Eu devolvo tudo. Posso icarcomodossiêcompleto?

Com certeza. Dean levantou-se da cadeira. Pode telefonar-me paraWashington.

Mauracontinuavaaolharparaodossiêenemoviudirigir-separaaporta.Nemseapercebeudequeeletinhavoltadoatráseolhavaparaela.

DoutoraIsles?Elalevantouacabeça.Sim?Tenhooutrapreocupação.Nãoésobreocaso,éumassuntopessoal.

Nãoseiaocertoseéconsigoquedevofalar.Oqueé,agenteDean?ConversamuitocomaJane?Naturalmente.Nodecursodestainvestigação...Nãome re iro ao trabalho,mas ao que a preocupa.Maura hesitou.

Eupodiadizer-lhe,pensou.Alguémdeviadizer-lhe.Ela tem andado muito tensa disse ele. Mas há mais alguma coisa.

Perceboqueelaandasobumagrandepressão.Ocrimenaabadiatemsidoumcasodifícilparaela.Nãosetratadainvestigação.Hámaisalgumacoisaqueaincomoda.

Algumacoisadequeelanãofala.Nãoéamimquedeveperguntar.TemdefalarcomaJane.Játentei.E?Elaarma-seemprofissional.Vocêconhece-a,éumapolícia-robô.Deansuspiroueacrescentoutranquilamente:Achoqueaperdi.Diga-meumacoisa,agenteDean.Sim?Interessa-seporela?Elefitou-asempestanejar.

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Nãoestariaaperguntar-lheistoseelanãomeinteressasse.Então, tem de con iar em mim. Você não a perdeu. Se ela parece

distante,ésóporquetemmedo.AJane?Deanabanouacabeçaeriu-se.Elanãotemmedodenada.E

muitomenosdemim.Maura viu-o sair do gabinete e pensou: estás enganado. Todos nós

temosmedodaspessoasquepodemmagoar-nos.Emcriança,RizzoliadoravaoInverno.PassavaoVerãoapensarnos

primeiros nevões, na manhã em que abriria os cortinados do quarto everia o chão coberto de branco, comumapureza ainda não conspurcadapelaspegadas. Saía.Ria-se e começavaa correr, a transporosmontesdeneveacumuladapelovento.

Agora,enfrentandoo trânsitocongestionadodomeio-diae todasasoutras pessoas que também faziam compras, perguntava a si própriaquemteriaroubadoessamagia.

AperspectivadepassaravésperadeNatalcomafamíliananoitedodia seguinte não contribuía para a alegrar. Sabia como iria decorrer oserão:todaagenteaempanturrar-sedeperu,comabocademasiadocheiaparafalar.OseuirmãoFrankiebarulhentoeirritantedevidoaoexcessodelicor de ovos "baptizado" com rum. O pai, com o controlo remoto dotelevisor namão, a ligar para a ESPN e a inviabilizar qualquer conversainteressante.Eamãe,Angela, cansadadepassarodia inteiroa cozinhar,"a "cabecearnapoltrona.Todososanos repetiamosmesmosrituais,masuma família era isso mesmo, pensou ela. Fazemos as mesmas coisas damesmamaneira,querelasnosfaçamounãofelizes.

Embora não lhe apetecesse ir às compras, não podia adiarmais aprovação; não era possível aparecer em casa dos Rizzoli na véspera deNatal sem os devidos presentes. Não interessava que não fossemapropriados, desde que tivessem um bonito embrulho e toda a genterecebesse um. No ano anterior, o Frankie, esse idiota, oferecera-lhe umporta-moedasdepelede sapodoMéxico.Foraumamaneira cruelde lhelembraraalcunhaqueelelhepusera.Umsapoparaosapo.

Esteano,oFrankieestavatramado.Jane empurrou o carrinho no meio da multidão que enchia os

armazénsTarget,àprocuradoequivalenteaosapo.DosaltifalantessaíamcânticosdeNatalePaisNatalmecânicossaudavam-nacomosseusho-ho-hos enquanto ela avançava, com uma determinação implacável, noscorredores decorados com festões dourados. Para o pai, comprou unsmocassins forrados de lã. Para a mãe, um bule irlandês decorado com

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pequenosbotõesderosa.Parao irmãomaisnovo,Michael,umroupãodebanho, e para a nova namorada dele, Irene, uns brincos compridos decristal australiano vermelho-vivo. Até comproupresentes para osmiúdosdeIrene,unsfatosdeesquicomriscas,comoosdosdesportistas.

MasparaFrankie,oidiota,nãotinhanada.Deu uma volta pela secção de roupa interior para homem. Aqui

haviaalgumashipóteses.Frankie,o fuzileiromachista, comroupa interiorcor-de-rosa? Não, era demasiado vexatório; nem ela desceria tão baixo.Continuouaandar,passoupelosfatosdeequitação,eabrandouaochegaràsboxers,pensandode repentenãoemFrankie,masemGabriel, comosseus fatos cinzentos e as suas gravatasmonótonas.Umhomemde gostosdiscretoseconservadores,mesmonaroupainterior.Umhomemquepodiadarcomumamulheremdoida,porqueelanuncasabiaoqueesperardele,nuncasabiasehaviaumcoraçãoasériodebaixodaquelefatocinzento.

Saiuabruptamentedaquelasecçãoecontinuouaandar.Concentra-te,raios!ArranjaqualquercoisaparaoFrankie.Umlivro?Janelembrou-sedealgunstítulosapropriados.ComoNãoSerUmIdiota.Eraumapenaqueninguémotivesseescrito;mercadonãolhefaltaria.Atravessouasecçãoepassouàseguinte,àprocura,àprocura.

E depois parou, com um nó na garganta e os dedos dormentes deempurrarocarrinho.

Ficou a olhar para o corredor dos artigos de bebé. Viu pijamas delanelaminúsculoscompatinhosbordados.Luvasquepareciamdeboneca,botinhas e gorros rematados por pompons. Pilhas de cobertores azuis ecor-de-rosa para embrulhar recém-nascidos. Foi nos cobertores que seconcentrou, lembrando-se do modo como Camille embrulhara o seupróprio ilhomortonumapeçadelãazul-bebé,comamordemãe,comdordemãe.

Sóapósalguns toquesdo telemóveléquedespertoudoseutranse.Tirou-odabolsaeatendeu-o,atordoada:

Rizzoli.Olá,detective.FalaWaltDeGroot.DeGroot trabalhava na secção de ADN do laboratório criminal. Em

geral, era Rizzoli que lhe telefonara, tentando convencê-lo a apressar osresultados dos testes. Nesse dia, respondeu ao telefonema dele com uminteressereduzido.

Entãooquetemparamim?perguntouela,voltandoaolharparaoscobertoresdebebé.

Analisámos o ADN materno daquele bebé que você descobriu no

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lago.Sim?Avítima,CamilleMaginnes,é, semdúvida,amãedacriança.Rizzoli

suspirou,cansada.Obrigada,Waltdisseelaemvozbaixa.Eraoquenósesperávamos.Mashámais!Mais?Isto,nãomeparecequevocêsesperassem.Éacercadopaidobebé.Derepente,Rizzoliconcentrou-setotalmentenavozdeWalt.Noque

eleiadizer-lhe.Oqueháacercadopai?Euseiquemeleé.

DezoitoRizzoli conduziu durante toda a tarde até ao anoitecer, vendo a

estrada à sua frente através de uma nuvem de raiva. Os presentes quecompraraaindaestavamamontoadosnobancode trás,alémdosrolosdepapel de embrulho e da ita prateada, mas ela já não pensava no Natal.Pensavanumarapariguinha,aandardescalçananeve.Umarapariguinhaqueprocuraraosofrimentodasqueimadurasprovocadaspelofrio,mesmoque fosse só para mascarar um sofrimentomais profundo. Mas nada secomparavaaoseu tormentosecreto,nãohaviaoraçãonemauto lagelaçãoqueconseguissesilenciarosseusgritosdedor.

Quando inalmente passou pelos pilares de granito e entrou napropriedade dos pais de Camille, eram quase cinco horas, e sentia osombroscrispadospela tensãoque foraacumulandoduranteaquela longaviagem.Saiudocarroeencheuospulmõescomoarsalgadodomar.Subiuosdegrausetocouàcampainha.

Agovernantadecabelopreto,Maria,veioabriraporta.Desculpe,detective,masMistressMaginnesnãoestá.Elaesperava-

a?Não.Aquehoraséqueelachega?Foiàscomprascomosmeninos.Masvemjantar.Daquiaumahora,

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calculo.Então,esperoporela.Eunãoseise...EufaçocompanhiaaMisterMaginnes.Senãoháinconveniente.Relutante,Mariadeixou-aentrar.Umamulherhabituadaacumprir

ordensnãoiriavedaraentradaaumagentedaautoridade.RizzolinãoprecisouqueMarialhemostrasseocaminho;atravessou

osmesmossoalhosencerados,passoupelosmesmosquadroscommotivosmarítimos e entrou na Sala do Mar. A vista de Nantucket Sound eraterrí ica, a água agitada pelo vento e salpicada de carneirinhos. RandallMaginnesestavadeitadonacamadehospital, sobreo ladodireito,viradoparaasjanelasparapoderveratempestadequeseaproximava.Umlugarnaprimeirafilaparaassistiràturbulênciadanatureza.

A enfermeira particular de serviço estava sentada ao lado dele.Assimquereparounavisita,levantou-sedacadeira.

Boatarde.Sou a detective Rizzoli, da Polícia de Boston. Estou à espera que

Mistress Maginnes chegue. Lembrei-me de vir ver como está MisterMaginnes.

Estámaisoumenosnamesma.Temhavidoprogressosdesdequeeleteveatrombose?Háunsmesesqueandaafazer isioterapia.Masaslesõessãomuito

graves.Esãoirreversíveis?A enfermeira olhou para o doente e em seguida fez sinal a Rizzoli

paraquesaíssemambasdasala.Não gosto de falar acerca dele quando está a ouvir-nos. Sei que

compreendeoquedizemosobservouaenfermeira,jánocorredor.Comoéquesabe?Pelomodocomoeleolhaparamim.Pelomodocomoreageàscoisas.

Emboranãoconsigafalar;océrebrodelefunciona.Estatarde,pusatocarum CD com a ópera preferida dele, La Bohème. E reparei que tinhalágrimasnosolhos.

Talveznãosejadamúsica.Podeserapenasfrustração.É claro que ele tem direito a sentir-se frustrado. Passados oito

meses,a recuperaçãoéquasenula.Éumprognósticomuitocruel.Omaiscertoénãovoltar a andar.Equantoà fala, bem...A enfermeira abanouacabeçatristemente.Foiumatrombosefortíssima.

Rizzolivirou-separaaSaladoMar.

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Sequiserfazerumintervalo,eunãomeimportode icarcomeleumpouco.

Nãoseimporta?Amenosqueelenecessitedealgunscuidadosespeciais.Não, não é necessário fazer nada. Basta conversar com ele. É uma

coisaqueeleaprecia.Estábem.RizzoliregressouàSaladoMarepuxouumacadeirapara juntoda

cama.Sentou-sedemodoaverosolhosdeRandallMaginnes.Demodoaqueelenãopudesseevitaroseuolhar.

Olá, Randall disse ela. Lembra-se de mim? Sou a detective Rizzoli.Soueuqueestouainvestigaroassassíniodasua ilha.SabequeaCamillemorreu,nãosabe?

Rizzoli detectou um lampejo de tristeza nos olhos cinzentos deRandall. Era a prova de que ele estava a entendê-la, de que lamentava amortedafilha.

Ela era bonita, a sua Camille. Mas você sabe isso, não sabe? Comopoderianãosaber?Todososdiasaobservavanestacasa.Viu-acresceretransformar-senumamulher.Rizzolihesitou.Eassistiuàdestruiçãodela.

Os olhos dele continuavam ixos nela, absorvendo todas as suaspalavras.

Entãoquandoéquecomeçouafornicá-la,Randall?Láfora,asrajadasdeventofustigavamNantucketSound.Mesmoao

anoitecer,distinguia-seaespumanacristadasondas,pontinhosbrilhantesdeturbulêncianaságuasescuras.

Randall Maginnes já não a itava. Baixou os olhos, tentandodesesperadamenteevitá-la.

Elatinhaapenasoitoanosquandoamãesematou.E,derepente,aCamillenãotemmaisninguémexceptooseupapá.Precisadesi.Con iaemsi.Eoquefezvocê?Rizzoliabanouacabeça,enojada.Vocêsabiacomoelaera frágil. Você sabia porque é que ela caminhava descalça na neve.Porque é que ela se fechava à chave no quarto. Porque é que ela fugiuparaoconvento.Elafugiadesi.

Jane aproximou-se mais dele. O su iciente para sentir o cheiro daurinaquelheensopavaafralda.

Aúnicavezqueelaveioacasadevisita,pensouquetalvezvocênãolhe tocasse.Que,porumavez,adeixasseempaz.Você tinhaacasacheiade parentes para o funeral. Mas isso não foi um obstáculo para si, poisnão?

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Randall continuava de olhos baixos, evitando enfrentá-la. Rizzoliagachou-se ao lado da cama. Aproximou-se tanto que, olhasse ele paraondeolhasse,veriasempreacaradela.

Obebéeraseu,Randalldisseela.Nem foinecessáriaumaamostradoseuADNparafazeraprova.Obebéémuitoparecidocomamãe.Estáescritoaqui,noADNdobebé.Umfilhoincestuoso.

Você sabia que a tinha engravidado? Sabia que destruiu a suaprópriafilha?

Rizzolideixou-se icarsentadanacadeira,aolharparaele.Nomeiodo silêncio, ouvia a respiração ofegante, os arquejos ruidosos de umhomemquequeriadesesperadamenterugir,masnãopodia.

Sabe, Randall, não acredito lámuito em Deus. Mas você leva-me apensar que talvez eu esteja enganada a este respeito. Reparenoque lheaconteceu. EmMarço, você fornicou com a sua ilha. Em Abril, teve umatrombose. Nunca mais poderá andar. Nem falar. Você não passa de umcérebro num corpomorto, Randall. Se isto não é justiça divina, não sei oqueé.

Randall choramingava e tentava mexer os seus membros inúteis.Rizzoliinclinou-seesegredou-lheaoouvido:

Não sente o cheiro da sua própria podridão? Enquanto você estáaquideitado,afazerchichinafralda,oquejulgaqueasuamulher,Lauren,andaafazer?Talvezadivertir-se.Talvezàprocuradealguémquelhefaçacompanhia.Pensenisso.Nãoéprecisomorrerparairparaoinferno.

Comumsuspirodesatisfação,Rizzolilevantou-se.Felicidades,Randall!disseela,saindodasala.Quandosedirigiapara

aportaprincipal,ouviuMariaagritar:Jásevaiembora,detective?Já.ResolvinãoesperarporMistressMaginnes.Oquelhedigo?Diga-lhesóquepasseiporaqui.Rizzoliolhouparatrás,paraaSala

doMar.Olhe,diga-lheoseguinte.Sim?AchoqueoRandallsenteafaltadaCamille.Porqueéquenãopõem

umafotogra iadelaondeeleapossaver,permanentemente?Elehaviadegostar.

Dizendoisto,Rizzolisorriu,abriuaportaesaiu.AslâmpadasdeNatalcintilavamnasuasaladeestar.A porta da garagem abriu-se eMaura viu que o carro alugado de

Victor estava lá dentro. Ocupava o lado direito, como se aquele lugar lhe

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pertencesse. Como se aquela fosse agora a sua casa, também. Mauraestacionouao ladoedesligouomotorcomumgestode irritação.Esperouum pouco que a porta voltasse a fechar-se, tentando acalmar-se epreparando-separaoqueviriaaseguir.

Agarrounapastaesaiudocarro.Entrouemcasa, levoualgum tempoadespiro casacoe apousara

carteira.Semlargarapasta,dirigiu-separaacozinha.Victorestavaadeitargelonoshakeresorriuaovê-laentrar.Olá, estou a preparar a tua bebida preferida. O jantar já está no

forno.Estouatentarprovar-tequeumhomempodesermuitoútilemcasa.Maura viu-o manejar o shaker e deitar o líquido num copo de

cocktail.Eleestendeu-lheabebida.Paraadonadacasaquese fartade trabalhardisseele,beijando-a

naboca.Mauranemsemexeu.Elerecuoulentamente,perscrutando-a.Oquesepassa?Elapousouocopo.Chegouomomentodesereshonestoparacomigo.Achasquenãotenhosido?Nãosei.Se vamos falar do que correu mal há três anos... Dos erros que

cometi...Istonãotemnadaavercomoqueaconteceunessaépoca.Re iro-me

aopresente.Nãoseiseestásaserhonestoparacomigo.Confuso,Victordeuumagargalhada.Oque iz eudesta vez?Porquedevopedirdesculpa?Éque terei o

maior gosto nisso, se é o que pretendes. Com os diabos, eu até peçodesculpaporcoisasquenãofiz.

Nãoestouaexigirquepeçasdesculpa,VictorMauratiroudapastaodossiêqueGabrielDean lheemprestaraeentregou-lho.Sóqueroquemefalesdisto.

Oqueéisto?Éumdossiêdapolícia, transmitidopela Interpol.Diz respeitoaum

massacre em massa que se registou o ano passado, na índia. NumapequenaaldeianosarredoresdeHyderabad.

Victorabriuodossiêe,aoveraprimeirafotogra ia,pestanejou.Semdizerumapalavra,passouàsegundaedepoisàterceira.

Victor?Elefechouodossiêeolhouparaela.

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Oqueesperasqueeudigaacercadisto?Sabiasdaexistênciadestemassacre,nãosabias?Éclaroquesabia.ElesatacaramumaclínicadaOneEarth.Perdemos

duas voluntárias. Duas enfermeiras. Compete-me tomar conhecimentodisso.

Nãomedisseste.Istoaconteceuháumano.Porquehaviaeudecontar-te?Porque é importante para a nossa investigação. Uma das freiras

atacadasnaAbadiadeGraystonestrabalhavanessamesmaclínicadaOneEarth.Tusabias,nãoéverdade?

Quantos voluntários julgas tu que trabalham para a One Earth?Temosmilharesdemembrosdepessoalmédicoemmaisdeoitentapaíses.

Masresponde-me,Victor.SabiasqueairmãUrsulatrabalhavaparaaOneEarth?

Ele deu meia volta e encaminhou-se para o lava-louça. Ficou ali aolharpelajanela,emboranãohouvessenadaparaver,apenasaescuridão.

Éinteressantedisseela.Depoisdodivórcio,nuncamaistivenotíciastuas.Nemumapalavra.

Devo lembrar-te que também nunca te deste ao trabalho de mecontactar?

Nemuma carta, nemum telefonema. Se quisesse saberde ti, tinhadeleraPeople.VictorBanks,osantodascausashumanitárias.

Nãofuieuquemesagrei,Maura.Nãopodesusarissocontramim.E depois, de repente, sem mais nem menos, apareces aqui em

Boston, ansioso por me ver. Precisamente quando começo a trabalharnestecasodehomicídio.

Victorvirou-separaela.Nãoacreditasqueeuquisessevoltaraver-te?Esperastetrêsanos.Pois.Trêsanosémuitotempo.Porquêagora?Ele perscrutou-lhe o rosto, como se esperassedetectar algum sinal

decompreensão.Tenhosentidoatuafalta,Maura.Asério.Masnãofoiessencialmenteporissoqueviestever-me,poisnão?Seguiu-seumalongapausa.Não,nãofoi.Sentindo-sederepenteexausta,Mauradeixou-secairnumacadeira

dacozinhaeolhouparaodossiêondeseencontravaamalditafotografia.

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Entãoporquefoi?Euestavanomeuquartodehotel, a vestir-me, e a televisãoestava

ligada.Ouvianotíciasobreosassassíniosnoconvento.Evi-te,ali.Nolocaldocrime.

Foinessediaquedeixasteaprimeiramensagemàminhasecretária.Nessamesmatarde.

Elefezumsinalafirmativo.Meu Deus, estavas espantosa na televisão! Embrulhada naquele

casacopreto!Jámetinhaesquecidodequeéstãobonita.Mas não foi por isso que me telefonaste. O assassínio é que te

interessava.Telefonasteporqueeusouamédica-legista,nestecaso.Elenãorespondeu.Tu sabias que umadas vítimas tinha trabalhadopara aOneEarth.

Queriasapuraroqueapolíciasabia.Oqueeusabia.Denovoosilêncio.Porque não me perguntaste? O que andas a tentar esconder? Ele

endireitou-se,desafiando-asubitamentecomoolhar.Imaginasquantasvidaséquenóssalvamostodososanos?Nãoestásaresponderàminhapergunta.Quantas crianças é que vacinamos? Quantas mulheres grávidas é

que recebem cuidados pré-natais nas nossas clínicas? Elas dependemdenós,porquenãotêmalternativas.EaOneEarthsósobrevivegraçasàboavontade dos seus benfeitores. A nossa reputação tem de ser imaculada.Uma referência desfavorável na imprensa, e o nossodinheiro evapora-seassimdisseele,fazendoestalarosdedos.

Oquetemissoavercomestainvestigação?PasseiosúltimosvinteanosaconstruiraOneEarthapartirdozero,

mas nunca por mim. Tem sido sempre por elas, pelas pessoas semninguémquese interessepelo seudestino.Elaséque são importantes.Épor isso que não posso permitir que alguma coisa ponha o nossofinanciamentoemperigo.

Dinheiro,pensouela.Étudopelodinheiro.Maurafitou-o.Odonativodaempresa.Oquê?Tu falaste-me nisso. Que recebeste um grande donativo de uma

empresa,oanopassado.Nósrecebemosdonativosdemuitasfontes...FoiaOctagonChemicals?O ar assustado dele foi uma resposta à pergunta. Maura ouviu-o

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respirarfundocomosesepreparasseparanegar,masdepoisexpirousemdizerumapalavra,reconhecendoqueseriainútildiscutir.

NãoédifícilconfirmardisseMaura.Porquenãomedizesaverdade?Elebaixouacabeça,comumarcansado.AOctagonéumdosnossosmaioresdoadores.Eoqueesperadevocês?OquetemdefazeraOneEarthemtroca

dessedinheiro?Porque julgas que temos de fazer alguma coisa? O nosso trabalho

falaporsi.Porquejulgasquesomostãobemrecebidosemmuitospaíses?Porque as pessoas con iam em nós. Não pregamos moral nem nosmetemosnapolíticalocal.Estamosaliapenasparaosajudar.A inal, issoéqueinteressa,nãoé?Salvarvidas?

EavidadairmãUrsula?Éimportanteparati?Claroqueé!Elaestáaserventilada.Maisumelectroencefalogramaeéprovável

quelhedesliguemamáquina.Queméqueaquermorta,Victor?Comohei-desaber?Pareces saber muitas coisas que nem te deste ao trabalho de me

contar.Sabiasqueumadasvítimastrabalhouparati.Nãoacheiqueissofosserelevante.Deviasterdeixadoquefosseeuadecidirseeraounão.Disseste que estavam concentrados na outra freira. Namais nova.

Elafoiaúnicavítimadequetufalaste.PartidoprincípioquenadatinhaavercomUrsula.

Ocultasteinformação.Agora estás a falar como um maldito polícia. Tencionas exibir o

distintivoeasalgemasaseguir?Estou a tentar não envolver a polícia. Estou a tentar dar-te a

oportunidadedeexplicar.Paraquetedásaessetrabalho?Jápassasteaojulgamento.Etujáestásaagircomoculpado.Ele icou imóvel, deolhar atento, comumamãoagarradaao tampo

de granito da bancada. Passaram alguns segundos sem nenhum delesquebrarosilêncio.EderepenteMauraconcentrou-senoconjuntodefacasde cozinha que estavamesmo ao pé dele. Oito facas de cozinhaWusthof,queelaconservavasemprebema iadaseprontasautilizar.NuncativeramedodeVictor.Masohomemqueestavajuntodaquelasfacaseraalguémqueelanãoconhecia,quenemsequerreconhecia.

Achoque tedeves iremboradisseela tranquilamente.Elevirou-se

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paraela.Oquevaisfazer?Vai-teembora,Victor.Por instantes, ele não semexeu. Maura itou-o, com o coração aos

pulos e os músculos tensos. Não tirou os olhos dasmãos dele, atenta aomovimento seguinte, e sempre a pensar: Não, ele nãome fariamal. Nãoacreditoqueelefossecapazdemefazermal.

E,aomesmotempo,conscientedaforçadasmãosdele.Perguntouasi própria se alguma vez aquelas mãos teriam pegado num martelo eesmagadoocrâniodeumamulher.

Euamo-te,Mauradisseele.Mashácoisasmais importantesdoquequalquer de nós. Antes de daresmais algum passo, pensa no que podesestar a destruir. Quantas pessoas, pessoas inocentes, podes estar aofender.

Maura retraiu-se quando ele se encaminhou para ela.Mas ele nãoparou; limitou-se a seguir em frente. Ela ouviu-o a sair do corredor edepoisafecharaportaprincipal.

Levantou-seimediatamenteefoiparaasala.Atravésdajanela,viuocarrodeleasairdarampaemmarchaatrás.Foitrancaraportaprincipal.Emseguida,fechouàchaveaportaquedavaacessoàgaragem.BloqueouaentradaaVictor.

Voltouàcozinhaetrancoutambémaportadastraseiras,comamãoa tremer quando pegou na corrente. Virou-se e olhou para uma divisãoque agora lhe parecia estranha, ainda com os ecos da ameaça no ar. Ococktail que Victor lhe preparava estava em cima da bancada. Maurapegou no copo já morno e despejou o líquido no lava-louça, como seestivessecontaminado.

Elaprópriasentia-secontaminada.Porterfeitoamorcomele.Foi direita à casa de banho, despiu-se e entrou no duche. Ficou ali

debaixodo luxodeáguaquente, tentandoretirardasuapele tudooquerestavadele,masnãoconseguiuremoverasrecordações.Fechouosolhoseeraaindaorostodelequevia,ocontactodelequerecordava.

No quarto, tirou os lençóis da cama, e o cheiro dele libertou-se dotecido.Maisumalembrançadolorosa.Fezacamacomlençóislavados,quenão cheiravama sexo. Substituiu as toalhasda casadebanho, asque eleusara.Voltouàcozinhaedeitouforaacomidaqueele estava a aquecer no forno um prato de beringelas com queijoparmesão.

Nessa noite, não jantou; encheu um copo de vinho da Califórnia e

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levou-oparaasala.Acendeualareiraesentou-seaolharparaaárvoredeNatal.

Boas-festas, pensou. Posso abrir o tórax de alguém e esvaziá-lo doseu conteúdo. Posso cortar tiras de pulmão e, através do microscópio,diagnosticarumcancro,umatuberculoseouumenfisema.Masossegredosqueumcoraçãohumanoencerranãoestãoaoalcancedomeubisturi.

O vinho teve um efeito anestésico e adormeceu o desgosto. Assimqueesvaziouocopo,Maurafoiparaacama.

De noite, acordou sobressaltada e sentiu a casa a estalar com ovento. Quando os últimos resquícios do pesadelo se dissiparam, estavaofegantee como coraçãoaospulos.Corposqueimados, empilhados comoramos enegrecidos numa pira. Labaredas que iluminavam uma série devultosemcírculo.Elatentavamanter-senasombra,esconder-sedoclarãoda fogueira. Mesmo em sonhos, não consigo afastar-me destas imagens,pensou.VivocomomeupróprioinfernodeDantenacabeça.

Acariciou os lençóis frios ao seu lado, no sítio em que Victor tinhadormido. E sentiu a falta dele. De repente, a ausência dele foi-lhe tãopenosa que ela cruzou os braços sobre o peito paramitigar o vazio quesentia.

Eseestivesseenganada?Eseeleestivesseadizeraverdade?Aonascerdosol, saltou inalmenteda cama, sentindo-sedrogadae

inquieta.Foiparaacozinha, fezcaféesentou-seàmesaabebê-lonasuacaneca, na semiobscuridade da manhã. Olhou para o dossiê com asfotografias,queaindaaliestava.

Abriu-o e deparou com a fonte de inspiração do pesadelo dessanoite. Os corpos queimados, os restos calcinados das cabanas. Tantosmortos, pensou ela, vítimas do paroxismo de violência de uma noite. Quefúria terrível terá levado os atacantes a chacinar até os animais? Mauraolhou para as cabras e para os seres humanos mortos, misturados nomesmoamontoadodecorpos.

Ascabras.Porquêascabras?Ficou a pensar nisto, tentando compreender os motivos de uma

destruiçãotãoabsurda.Animaismortos.Passou à fotogra ia seguinte. Mostrava a clínica da One Earth, as

paredesdeblocosdeescóriachamuscadaseapilhadecorposqueimadosemfrentedaporta.Masnãoforamoscorposquelhechamaramaatenção;foi a cobertura de zinco ondulada, intacta.Maura nem tinha reparadonacobertura.Agora,examinavaoquelhepareciamserfolhascaídas.Viam-se

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diversas manchas escuras espalhadas pela chapa ondulada. Eramdemasiadopequenasparaqueelapudessedistinguiralgumpormenor.

Levouafotogra iaparaoescritórioeacendeuasluzes.Procurounasecretária e descobriu uma lupa. À luz intensa do candeeiro, examinou aimagem,concentrando-senacoberturadezinco,perscrutandocomalentetodos os pormenores das folhas caídas. De repente, as manchas escurasganharamumanovaeterrívelforma.Maurasentiuumarrepionaespinha.Largoualupaeficoupetrificada.

Pássaros.Erampássarosmortos.Dirigiu-se à cozinha, pegou no telefone e enviou umamensagem a

Rizzoli.Quandootelefonetocou,algunsminutosdepois,Mauraassustou-secomosom.

TenhodelhecontarumacoisadisseMaura.Àsseisemeiadamanhã?EudeviatercontadoistoontemaoagenteDean,antesdeelepartir.

MasnãoquisdizernadaantesdefalarcomoVictor.OVictor?Nãoéoseuex-marido?-É.Oquetemeleavercomisto?Achoqueelesabeoqueaconteceunaíndia.Naquelaaldeia.Foioqueelelhedisse?Por enquanto, não. É por isso que você tem de o intimar para um

interrogatório.

DezenoveEstavam sentados no carro de Barry Frost, estacionado mesmo à

porta do Hotel Colonnade. Frost e Rizzoli estavam no banco da frente eMauranodetrás.

Deixem-mefalarcomeleprimeiropediuMaura.Émelhor icaraqui,doutoradisseFrost.Nãosabemoscomoele irá

reagir.Émenosprovávelqueresistaseeufalarcomele.Masseestiverarmado...Não me fará mal disse Maura. E eu não quero fazer-lhe mal, que

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fiqueclaro.Vocêsnãovãoprendê-lo.Eseelenãoquiservir?Elevirá.Mauraabriuaportadocarro.Deixem-metratardoassunto.Meteram-se no elevador para o quarto piso, partilhando o espaço

comumjovemcasalprovavelmenteintrigadocomoarimplacáveldaqueletrio.LadeadaporRizzolieporFrost,Maurabateuàportadoquarto426.

Passaramalgunsinstantes.Maurapreparava-separabateroutravezquandoaportaseabriu.

Victor icou a olhar para ela. Tinha um ar cansado e uma expressãoinfinitamentetriste.

Estavaaveroqueiriasdecidirdisseele.Começavaateresperançaque...

Victorabanouacabeça.Victor...Mas creioquenão tenhomotivospara icar admirado.Victorolhou

para Rizzoli e Frost, que se mantinham no corredor. Soltou umagargalhadaamarga.

Trouxeramalgemas?Não é necessário algemas respondeuMaura. Eles só querem falar

contigo.Pois,claro.Sóqueremfalar.Devochamarumadvogado?Issoécontigo.Não,diz-metu.Vouprecisardeumadvogado?Sótuéquesabes,Victor.Éesseoteste,nãoé?Sóosculpadoséqueinsistemnacomparência

deumadvogado.Umadvogadonuncaéumamáideia.Então,parateprovaralgumacoisa,nãovouchamarnenhum.Victor

olhou para os dois detectives. Tenho de me calçar. Se não houverobjecções...

Virou-lhes as costas e aproximou-se do roupeiro. Maura disse aRizzoli:

Podemesperaraquifora?Entrou no quarto atrás deVictor e deixou que a porta se fechasse

atrás dela para assegurar um último momento de privacidade. Victorestavasentadonumacadeiraaatarasbotas.Maurareparouqueeletinhaamalaemcimadacama.

Estásafazeramalacomentouela.Tenho uma reserva para o voo das quatro. Mas aposto que estes

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planosvãoseralterados,nãoéverdade?Senti-meobrigadaacontar-lhes.Lamento.Nãoduvido.Nãotinhaalternativa.Victorlevantou-se.Tinhaseescolheste-a.Achoqueissodiztudo.Atravessouoquartoe

abriuaporta.Estou pronto anunciou ele, entregando a Rizzoli um molho de

chaves.Calculoquequeiraminspeccionaromeucarroalugado.ÉoToyotaazul que está na garagem, no terceiro piso. Não digam que eu nãocolaborei.

CoubeaFrostacompanharVictor.RizzolipuxouobraçodeMauraereteve-a,enquantoosdoishomenssedirigiamparaoelevador.

ÉnestafasequevocêtemdeseafastardisseRizzoliEuéqueoentreguei.Éporissoquenãopodeparticipar.Elefoimeumarido.Exactamente.Vocêtemdeseafastaredeixar-nostratardoassunto,

comosabe.Maurasabia.Mesmoassim,desceucomeles.Entrounoseucarroefoiatrásdeles

até Schroeder Plaza. Avistou Victor no banco traseiro. Só uma vez,enquantoestavamparadosnumsemáforo,équeeleseviroueolhouparaela. Os olhares de ambos cruzaram-se momentaneamente através dajanela.Depois,Victorvoltou-separaafrenteenuncamaissevirou.

Quando Maura conseguiu um lugar para estacionar no parque dasededaPolíciadeBoston,jáelestinhamlevadoVictorparacima.Meteu-seno elevador, subiu ao segundo andar e dirigiu-se para a Unidade deHomicídios.

BarryFrostinterceptou-a.Nãopodeentrarali,doutora.Elejácomeçouaserinterrogado?ARizzolieoCroweestãoatratardisso.Fuieuqueoentregueiavocês, comosdiabos.Pelomenosdeixem-

meouviroqueeletemadizer.Possoobservardasalaaolado.Temde esperar aqui. Por favor, doutora Isles acrescentou ele com

delicadeza.Maura correspondeu ao olhar compreensivo dele. De todos os

detectives da Unidade, Frost era o único que conseguia silenciar os seusprotestosapenascomumolharamável.

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Porque não se senta aqui, àminha secretária? alvitrou ele. Eu voubuscar-lheumcafé.

Maura sentou-se numa cadeira e observou a fotogra ia que estavaemcimada secretáriadeFrost.Umabela loura com rostode aristocrata.Poucodepois,elechegoucomocaféesentou-sediantedela.

Maura nem tocou no café. Continuou a olhar para a fotogra ia damulherdeFrostepensounoutroscasamentos.Emfinaisfelizes.

RizzolinãogostoudeVictorBanks.Ele sentou-se à mesa da sala de interrogatórios, a beber

tranquilamente um café, com os ombros descontraídos, numa posturaquase natural. Era um homem atraente, e sabia-o. Demasiado atraente.Rizzoliolhouparaocasacodecabedalcoçadoeparaascalçasdecaqui,elembrou-sedeumIndianaJonesbeminstaladonavida,semochicote.Eramédico e possuía sólidas credenciais humanitárias. Oh, sim, as mulheresnãolheresistiam.AtéadoutoraIsles,sempretãofriaecontroladanasaladeautópsias,perderaacabeçaporele.Etutraíste-a,filho-da-mãe!

DarrenCroweestavasentadoàdireitadela.Tinhamcombinadoqueseria quase sempre ela a falar. Até aí, Victor mostrara-se frio, mascolaborou, respondendo às perguntas introdutórias com as respostasbruscas de um homem que pretendia despachar-se, que não tinha umrespeitoespecialpelapolícia.

Quandoelaacabassedefalar,elehaviaderespeitá-la.Então,háquantotempoestáemBoston,MisterBanks?DoutorBanks.E já lhedissequeestoucáhánovedias.Chegueino

domingoànoite.DissequeveioaBostonparaparticiparnumareunião?ComoreitordaHarvardSchoolofPublicHealth.Equalomotivodessareunião?Aminhaorganizaçãotemconvéniocomváriasuniversidades.AsuaorganizaçãoéaOneEarth?Exactamente. Somos uma instituição de bene icência que presta

cuidadosmédicos.Temosclínicasemtodoomundo.Éclaroqueaceitamosde bomgrado todos os estudantes demedicina e de enfermagemque seoferecemparatrabalharnasnossasclínicas.Elesadquiremexperiênciadavida real no trabalho de campo. Em contrapartida, nós bene iciamos dassuascompetências.

EqueméquemarcouessareuniãoemHarvard?Victorencolheuosombros.

Tratou-seapenasdeumavisitaderotina.

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Masqueméquefezotelefonema?Silêncio.Apanhei-te!Foi você, não foi? perguntou ela. Você telefonou para Harvard há

duas semanas. Disse ao reitor que viria a Boston de qualquermaneira equepodiapassarpelogabinetedele.

Eutinhademanterosmeuscontactos.QualoverdadeiromotivoqueotrouxeaBoston,doutorBanks?Não

houveoutromotivo?Hesitação.Houve.Equalfoi?Aminhaex-mulhervivecá.Euqueriavê-la.Masnãofalavacomelahá...Háquasetrêsanos.Claroqueelalhecontoutudo.Paraqueestáafalarcomigo?De repente quer vê-la tão desesperadamente que atravessa o país

semsequersaberseelairárecebê-lo?Àsvezes,oamorexigequecorramosriscos.Éumaquestãodefé.De

acreditarmosemalgoquenãopodemosvereemquenãopodemostocar.Temosapenasdedarosalto.Victorfitou-a.Nãotemos,detective?

Rizzoli sentiu-se corar e não conseguiu encontrar nada para dizer.Victor invertera a situação, de tal modo que ela sentiu que a conversaincidiasobreela.Oamorexigeriscos.

Crowequebrouosilêncio.É uma senhora atraente, a sua ex-mulher disse ele. Não com

hostilidade,mascomotomnaturaledescontraídodeumhomemquefalacom outro, ambos ignorando Rizzoli. Compreendo que tenha feito umaviagemtãograndeparacomporascoisas.Econseguiu?

Ascoisasestavamaresultarentrenós.Pois, eu soube que você icou em casa dela nos últimos dias. Isso

cheira-meaprogresso.Porquenãovamosdireitoàverdade?interpôsRizzoli.Averdade?perguntouVictor.OverdadeiromotivoqueotrouxeaBoston.Porquenãomedizvocêqualarespostaquepretendesacar-me,que

eudou-lha?Poupava-nostempo.Rizzolipôsumdossiêemcimadamesa.Olheparaisto.Victor abriu o dossiê e veri icou que eram as fotogra ias da aldeia

destruída.Jáasvidisse,fechandoodossiê.AMauramostrou-mas.

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Nãoparecemuitointeressado.Nãosãopropriamenteimagensagradáveis.Nemtêmdeser.Vejaoutravez.Rizzoliabriuodossiê,tirouumadas

fotografiasepespegou-aemcimadamesa.Sobretudoesta.VictorolhouparaCrowe,comoseprocurasseumaliadocontraesta

mulherdesagradável,masodetectivelimitou-seaencolherosombros.Afotografia,doutorBanksdisseRizzoli.Oquedevoeudizerexactamenteacercadela?QueexistiaumaclínicadaOneEarthnaquelaaldeia.Isso é assim tão surpreendente? Vamos para onde as pessoas

necessitam de nós. O que signi ica que por vezes nos encontramos emsituações desconfortáveis ou mesmo perigosas. Victor continuava a nãoolhar para a fotogra ia, a evitar a imagem repugnante. É o preço quepagamos por desenvolver trabalho humanitário. Corremos os mesmosriscosqueosnossospacientes.

Oqueaconteceunaquelaaldeia?Achoqueissoébastanteóbvio.Olheparaafotografia.Estátudonorelatóriodapolícia,tenhoacerteza.Olheparaoraiodafotogra ia!Diga-meoquevê.Victorolhouparaa

fotografia.Poucodepois,respondeu:Corposqueimados.Emfrentedanossaclínica.Ecomoéqueelesmorreram?Disseram-mequefoiummassacre.Temacerteza?OolhardeVictortransferiu-separaela.Eu não estava lá, detective. Estava em casa, em São Francisco,

quandorecebio telefonemada índia.Portanto,nãocontecomigopara lhedarpormenores.

Comosabequefoiummassacre?Era o que dizia o relatório que recebemos da polícia de Andhra

Pradesh. Que foi um ataque commotivações políticas ou religiosas e quenão havia testemunhas, visto que a aldeia era relativamente isolada. Aspessoastendemaevitarcontactoscomosleprosos.

Masqueimaramoscorpos.Nãoachaissoestranho?Estranho,porquê?Oscorposforamarrastados,amontoadosesódepoisqueimados.Na

suaopinião,ninguémqueriatocarnumleproso.Então,porqueempilharamoscorpos?

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Parasermaiseficiente,suponho.Queimá-losemgrupos.Eficiente?Estouatentarencararistocomlógica.Equaléomotivológicoparateremqueimadooscorpos?Raiva?Vandalismo?Nãosei.Aqueletrabalhotodo,paradeslocaroscadáveres.Transportarlatas

de gasolina. Empilhar a lenha. E sempre sob a ameaça de seremdescobertos.

Ondequerchegar?Estouadizerqueoscorpostiveramdeserqueimados.Paradestruir

asprovas.Asprovasdequê?Éóbvioquefoiummassacre.Ofogonãopoderia

escondertalcoisa.Masofogopoderiaesconderofactodenãotersidoummassacre.Rizzoli não se admirou quando ele desviou o olhar. De repente,

Victortinharelutânciaemencará-la.Não sei porque me faz estas perguntas disse ele. Porque não

acreditanorelatóriodapolícia?Porqueouelesseenganaramouforamsubornados.Vocêsabe,nãoéverdade?Rizzolibateuaodelevenafotografia.Olheoutravez,doutorBanks.Prefironãoofazer.O que vemos aqui não são apenas cadáveres humanos queimados.

As cabras foram chacinadas e também foram queimadas. E as galinhas.Quedesperdício!Todaaquela carne tãonutritiva!Porquêmatar cabrasegalinhasedepoisqueimá-las?

Victorsoltouumagargalhadasarcástica.Porquetambémpoderiamterlepra?Seilá!Isso não explica o que aconteceu aos pássaros. Victor abanou a

cabeça.Oquê?Rizzoliapontouparaacoberturadezinco.Apostoquenemreparounisto.Estasmanchasescurasaquiemcima.

Àprimeira vista, parecem folhas caídas.Masnão acha estranhoquehajafolhasaqui,onde-aparentementenemháárvores?

Victornãodissenada.Ficoumuitoquieto,decabeçabaixaparaelanãolheveracara.Sópelalinguagemcorporal,Rizzolipercebeuqueelesepreparavaparaoinevitável.

Nãosãofolhas,doutorBanks.Sãopássarosmortos.Umaespéciedecorvos, suponho. Há três caídos neste canto da fotogra ia. Como explica

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isso?Victorencolheuosombros,comumarindiferente.Podiamtersidoalvejados,achoeu.A polícia nãomencionou quaisquer indícios de utilização de armas

de fogo. Não havia ori ícios de balas no edi ício, nem foram recuperadoscartuchos. Não se encontraram fragmentos de bala em nenhuma dasvítimas. Segundo a polícia, vários cadáveres apresentavam fracturas nocrânio, por conseguinte, concluiu-se que as vítimas foram todasmortas àpauladaduranteosono.

Étambémoqueeuconcluo.Entãocomoexplicaospássaros?Comcertezaqueestes corvosnão

icaramnotelhadoàesperaquealguémsubisseelhesdessecomumpaunacabeça.

Nãoseiaondequerchegar.Oquetêmospássarosmortosavercomisto?

Tudo. Eles não foram mortos nem à paulada nem a tiro. Victorresfolegou.

Porinalaçãodefumo?Quando a aldeia foi incendiada, os pássaros já estavam mortos.

Estava tudomorto.Os pássaros, o gado, as pessoas.Nada semexia, nadarespirava. Era uma zona esterilizada. Todas as formas de vida forameliminadas.

Victornãoreagiu.Rizzoliinclinou-sedemodoaolhá-lobemdefrente.QuantoéqueaOctagonChemicalsdoouàsuaorganizaçãoesteano,

doutorBanks?Victorlevouocopodeáguaàbocaebebeu,sempressa.Quanto?Foidaordemdas...Dezenasdemilhões.Euqueriamaiságua,senão

seimportapediu,olhandoparaCrowe.Dezenas de milhões? Porque não diz que foram oitenta e cinco

milhõesdedólares?perguntouRizzoli.Talvezfosseisso.Noanopassado,nãodeunada.Oquemudouentretanto?AOctagon

desenvolveuderepenteumaconsciênciahumanitária?Temdeperguntar-lhe.Éasiquepergunto.Euqueriamaiságua.Crowesuspirou,pegounocopovazioesaiudasala.RizzolieVictor

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ficaramsozinhos.Rizzoli aproximou-se mais dele, um ataque frontal à zona de

segurançadeVictor.É tudo por causa do dinheiro, não é? disse ela. Oitenta e cinco

milhões de dólares é uma pipa de massa. A Octagon devia ter muito aperder.Evocê,obviamente,tinhamuitoaganhar,colaborandocomeles.

Colaborandoemquê?Nosilêncio.Guardandoosegredodeles.Rizzolipegounoutrodossiêeatirou-oparaafrentedele.Eraumafábricadepesticidas.Apoucomaisdedoisquilómetrosda

aldeiadeBara,aOctagonarmazenavatoneladasdeisocianatodemetilonasua fábrica. Esta foi encerradano anopassado, sabia? Poucodepois de aaldeiadeBaratersidoatacada,aOctagonabandonoua fábrica.Despediutodoopessoalearrasouasinstalações.Medodeumataqueterroristafoiaexplicaçãooficial.Masvocênãoacreditanisso,poisnão?

Nãotenhomaisnadaadizer.Nãofoiummassacrequedestruiuaquelaaldeia.Nãofoiumataque

terrorista.Rizzolicalou-seedepoisacrescentouserenamente:Foiumacatástrofeindustrial.

VinteVictornemsemexeu.NemolhouparaRizzoli."Bhopal" diz-lhe alguma coisa? perguntou ela. Ele demorou a

responder.Claroquesimdisseele,emvozbaixa.Conte-meoquesabeacercadoassunto.Bhopal,na índia.OacidentedaUnionCarbideemmilnovecentose

oitentaequatro.Sabequantaspessoasmorreramnesseacidente?Foram...Milhares,creioeu.Seis mil pessoas precisou ela. A fábrica de pesticidas da Union

Carbidelibertouacidentalmenteumanuvemtóxicaquecobriuacidadede

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Bhopal durante a noite. Na manhã seguinte, seis mil pessoas tinhammorrido. Houve centenas de milhares de feridos. Com tantossobreviventes, tantas testemunhas, era impossível esconder a verdade.Nãofoipossívelocultá-la.Rizzoliolhouparaafotografia.ComoemBara.

Sópossorepetiroquejádisse.Eunãoestavalá.Nãovi.Masapostoquecalculaoqueaconteceu.Nóssóestávamosàespera

queaOctagon fornecesseuma listado seusempregadosnaquela fábrica.Umdelesacabaráporfalar.Umdelesacabaráporcon irmar.Éoturnodanoite, eumempregado sobrecarregadode trabalho temumdescuido.Ouadormece,nãoaccionao interruptorepu lLiberta-seumanuvemdegásvenenosoqueélevadapelovento.Rizzolicalou-se.Sabeoqueaexposiçãoagudaaoisocianatodemetiloprovocanocorpohumano,doutorBanks?

Elesabia,evidentemente.Tinhaquesaber.Masnãorespondeu.É corrosivo, basta tocar-lhe para icarmos com a pele queimada.

Portanto,imagineoqueelenosfazaorevestimentodasviasrespiratórias,aospulmões,quandoo inspiramos.Começamosa tossir e temosdoresdegarganta. Sentimo-nos atordoados. Depois, não conseguimos respirar,porqueogásestáliteralmenteadestruir-nosasmucosas.O luidopenetraeinunda-nosospulmões.Chama-seedemapulmonar.Morremosafogadosnas nossas próprias secreções, doutor Banks. Mas tenho a certeza quesabeisto,poisémédico.Victorconfirmou,comumarderrotado.

EaOctagontambémsabia.Elesnãodevemterlevadomuitotempoaperceber que tinham cometido um erro terrível. Sabiamque o isocianatode metilo é mais denso que o ar. Que se acumula em zonas baixas. Eapressam-seairveroqueaconteceuàaldeiadeleprososdovale,que icana direcção do vento. E o que encontram é uma zona demorte. Pessoas,animais... Nada sobreviveu. Olham para os cadáveres de quase cempessoasesabemquesãoresponsáveisporessasmortes.Sabemqueestãoem apuros. Certamente serão acusados de crime e talvez presos. O queachaqueelesfizeramaseguir,doutorBanks?

Nãosei.Entraramempânico,claroestá.Vocênãoentraria?Quiseramafastar

oproblema.Quiseramqueeledesaparecesse.Masoquehaviamdefazeratodas aquelas provas? Não é possível esconder uma centena de corpos.Não é possível fazer desaparecer uma aldeia. Além disso, havia duasamericanasentreosmortos,duasenfermeiras.Asmortesdelasnãoseriamignoradas.

Rizzoliespalhouas fotogra iaspelamesa,paraquesevissemtodasaomesmotempo.Trêsimagens.Trêsmontesdecadáveres.

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Queimaram-nas disse ela. Deitarammãos à obra para esconder osseuserros.Épossívelque tenhammesmo fracturadoalgunscrâniosparaconfundir os investigadores. O que aconteceu em Bara começou por nãoserumcrime,doutorBanks.Mas,nessanoite,transformou-senumcrime.

Victorempurrouacadeira.E eu estou preso, detective? É que gostava de ir-me embora neste

momento.Tenhodeapanharumavião.Há um ano que você sabia disto, não é verdade? Mas calou-se,

porqueaOctagonlhepagou.Umdesastrecomoesteteriacustadocentenasde milhões de dólares em multas. Além dos processos judiciais e dosprejuízos,jáparanãofalardasacusações.Aopçãomaisfácilfoicompraroseusilêncio.

Estáafalarcomapessoaerrada.Continuoadizer-lhequenãoestivelá.

Massoubeoquesepassou.Nãosouoúnico.Quem é que lhe contou, doutor Banks? Como é que soube? Rizzoli

inclinou-se mais, itando-o do outro lado da mesa. Porque não nos diz averdade, e talvez ainda tenha tempo de apanhar esse avião para SãoFrancisco?

Não respondeu logo e icou a olhar para as fotogra ias que tinha àsuafrente.

Elatelefonou-me.DeHyderabaddisseeleporfim.AirmãUrsula.Victorfezumsinalafirmativo.Doisdiasdepoisdo...Acontecimento.Nessaaltura, jáeusabiapelas

autoridades indianas que tinha havido ummassacre na aldeia. Que duasdasnossasenfermeirastinhammorridonaquiloqueelesjulgavamserumataqueterrorista.

NãofoiissoqueairmãUrsulalhedisse?Não,maseunãosabiaoquehaviade fazercomo telefonemadela.

Parecia assustada e agitada. O médico da fábrica tinha-lhe dado unstranquilizantes,ecreioqueoscomprimidosaumentavamaindamaisasuaconfusão.

Oquelhedisseelaexactamente?Que algo estava a correr mal na investigação. Que as pessoas não

estavam a falar verdade. Que tinha visto contentores de gasolina vaziosnumdoscamiõesdaOctagon.

Elafaloucomapolícia?

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Temdecompreenderasituaçãoemqueelaseencontrava.QuandochegouaBaranessamanhã,haviacorposqueimadosemtodaaparte,oscorposdaspessoasqueelaconhecia.Elafoiaúnicasobreviventeeestavarodeadaporempregadosdafábrica.Depois,chegouapolícia,eelachamouumdosagentesdeparteeapontouparaoscontentoresdegasolina.Partiudoprincípioqueiriaminvestigaroassunto.

Masnãoaconteceunada.Foientãoqueela seassustou.Foientãoquecomeçouaduvidarda

polícia.SóquandoopadreDoolina levoudecarroaHyderabadéquesesentiuseguraemetelefonou.

Eoquefezvocê?Depoisdessetelefonema?Oquepodiaeufazer?Euestavadooutroladodomundo.Ora,doutorBanks.Nãopossoacreditarquetenha icadosentadono

seugabinetedeSãoFranciscoedeixadocairoassunto.Vocênãoéo tipodehomemque,sabendodeumabombacomoessa,nãofizessenada.

Oquehaviaeudefazer?Oqueacabouporfazer.Eoquefoi?Bastaverificaroregistodosseustelefonemas.Develáestar,algures.

AchamadaquefezparaCincinnati.ParaasededaOctagon.Naturalmenteque lhestelefonei!Eutinhaacabadodesaberqueos

empregados deles tinham incendiado uma aldeia, com duas das minhasvoluntárias.

ComquemfalounaOctagon?Comumhomem.Umvice-presidenteexecutivo.Lembra-sedonomedele?Não.NãofoiHowardRedfield?Nãomelembro.Oquelhedisse?Victorolhouparaaporta.Porqueestáaprolongartantoestaconversa?Oquelhedisse,doutorBanks?Victorsuspirou.Disse-lhe que corriam boatos acerca domassacre de Bara. Que os

empregadosda fábricadaOctagontalvezestivessemimplicados.Eledissequedesconheciaoassuntoeprometeuaveriguar.

Oqueaconteceudepois?Cercadeumahoradepois, recebi um telefonemadopresidentedo

conselhodeadministraçãodaOctagon,quequeria saberaorigemdessesboatos.

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Foientãoqueeleofereceuàsuainstituiçãoumsubornodemilhõesdedólares?

Acoisanãofoiapresentadadessamaneira!Não posso censurá-lo por ter aceitado o acordo com a Octagon,

doutor Banks disse Rizzoli. A inal, o mal já estava feito. Não é possívelressuscitar os mortos e você talvez pudesse servir-se da tragédia parabene iciarmais gente. Rizzoli baixou a voz, conferindo-lhe um tom quaseíntimo. Foi esse o seu ponto de vista? Em vez de centenas demilhões dedólares iremparar aos bolsos dos advogados, porque não fazer bomusododinheiro?Faztodoosentido.

Aspalavrassãosuas,detective,nãominhas.EcomoéqueelescompraramosilênciodairmãUrsula?

Teriade fazeressaperguntaàarquidiocesedeBoston.Estoucertoquetambémentraramemacordocomeles.

Rizzoli calou-se, pensando de súbito na Abadia de Graystones. Acobertura nova, as obras de remodelação. Como é que uma irmandadepobre podia manter e restaurar um edi ício tão valioso? Lembrou-se doqueMaryClementdissera:quelhestinhavalidoumdonativogeneroso.

Aportaabriu-seeCroweentroucomumcopodeágua,quepousouemcimadamesa.Nervoso,Victorapressou-seabeberumgole.Ohomemquecomeçaraafalarcomtantacalma,eatécominsolência,pareciaagoradesfeito,desprovidodeautoconfiança.

Chegaraomomentodelheextorquirorestodaverdade.Rizzoliaproximou-seaindamaisdele,prontaadesferirogolpefinal.QualoverdadeiromotivoqueotrouxeaBoston,doutorBanks?Jálhedisse.EuqueriaveraMaura...AOctagonpediu-lhequeviesse.Nãoéverdade?Elebebeumaisum

goledeágua.Nãoéverdade?Elesestavampreocupados.Comquê?ElesestãonamiradeumainvestigaçãodaComissãodoMercadode

Valores Mobiliários. Não tem nada a ver com o que aconteceu na índia.Mas, dada a dimensão do donativo que a One Earth recebeu, a Octagonreceava que isso pudesse chamar a atenção da Comissão. Que elesizessemperguntas.Elesqueriamcerti icar-sedeque leríamos todospelamesmacartilha,sefôssemosinterrogados.

Pediram-lhequementisse?Não. Apenas que não falasse. Mais nada... Apenas que não... Me

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referisseàíndia.E se fosse chamado a depor? Se lhe izessem directamente a

pergunta?Teriaditoaverdade,doutorBanks?Querecebeudinheiroparaajudaraencobrirumcrime?

Não estamos a falar de um crime. Estamos a falar de um acidenteindustrial.

Foi por isso que veio a Boston? Para convencer Ursula a mantertambémosilêncio?Paramanterumafrenteunidadementiras?

Nãosãomentiras.Ésilêncio.Háumadiferença.É então que tudo se complica. Um vice-presidente executivo da

OctagonchamadoHowardRed ieldresolvedarcoma línguanosdentesefalar com o Departamento de Justiça. Não só o faz como arranja umatestemunhaindiana.Umamulherqueeletrouxedaíndiaparadepor.

Victorlevantouacabeçaefitou-a,deverassurpreendido.Quetestemunha?Ela esteve lá, em Bara. Foi um dos leprosos que sobreviveu. Está

admirado?Desconheçoaexistênciadetestemunhas.Elaviuoqueaconteceunaaldeia.Viuaqueleshomensda fábricaa

empilharemoscorposeaacenderemas fogueiras.Viu-osaesmagaremacabeça dos amigos e dos parentes. O que ela viu, o que ela sabia, podiadeixaraOctagondecócoras.

Nãoseinadadisso.Ninguémmedissequehaviaumasobrevivente.Viria tudo ao de cima. O acidente, a operação de disfarce. Os

subornos. Talvez você estivesse disposto amentir.Mas, e a irmã Ursula?Comoconvencerumafreiraamentirsobjuramento?Esseeraoproblema,não é verdade? Uma freira honesta podia deitar tudo a perder. Se elaabrisse a boca, lá fugiam os seus oitenta e cincomilhões de dólares. E lácaíaoSãoVictordopedestalperanteosolharesdetodos.

Acho que ico por aqui. Tenho de apanhar o avião disse Victor,levantando-se.

Vocêteveaoportunidadeeomotivo.Motivo?Victordeuumagargalhada incrédula.Paraassassinaruma

freira. Vocês também podiam acusar a arquidiocese, porque tenho acertezadequeelesforammuitobempagos.

OquelheprometeuaOctagon?Aindamaisdinheiro,sevocêviesseaBostonelhesresolvesseoproblema?

Primeiro, você acusa-medehomicídio. Agora a irmaque aOctagonme contratou? Imagina um executivo a correr o risco de ser acusado de

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homicídiosóparaencobrirumacidenteindustrial?Victorabanouacabeça.Nenhum americano foi para a cadeia por causa de Bhopal. E nenhumamericano irá para a cadeia por causa de Bara. E agora posso ir-meembora,ounão?

Rizzoli deitou um olhar interrogador a Crowe, que reagiu com umgestodescoroçoadodeconcordância,umareacçãoquelhedeuaentenderque ele já tivera notícias da Unidade de Peritagem. Enquanto elainterrogavaVictor,aUPrevistaraocarroalugado.Eraóbvioquenãotinhaencontradonada.

Nãodispunhamdeelementossuficientesparaoprender.Por agora, pode ir, doutor Banks. Mas temos de conhecer

exactamenteoseuparadeiro.Volto para casa, para São Francisco. Têm a minha morada. Victor

encaminhou-se para a porta. Parou e virou-se para ela. Antes de me irembora,queroquesaibaumacoisaameurespeito.

Oqueé,doutorBanks?Eu sou médico. Lembre-se disso, detective. Eu salvo vidas. Não as

tiro.Mauraviu-osairdasaladeinterrogatórios.Victorolhouemfrentee

nemsequervirouacaraaopassarpelasecretáriaemqueelaestava.Mauralevantou-sedacadeira.Victor?Ele parou, mas não se virou para ela, como se não suportasse

encará-la.Oqueaconteceu?perguntouela.O que achas que aconteceu? Contei-lhes o que sabia. Disse a

verdade.Foisóoqueeutepedi.Nadamais.Agoratenhodeirapanharoavião.O telemóvel deMaura começou a tocar. Ela olhou para o aparelho,

comvontadedeodeitarfora.Émelhoratenderesdisseele,comumtomdeirritaçãonavoz.Talvez

algumcadáverprecisedeti.Osmortosmerecemanossaatenção.Essaé adiferençaentre ti emim, sabes?Tu cuidasdosmortos.Eu

cuidodosvivos.Mauraviu-oafastar-se.Victornãoolhouparatrásnemsequeruma

vez.Otelemóveldeladeixaradetocar.

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Maura abriu-o e viu que a chamada era do Hospital St. Francis.QueriasaberoresultadodosegundoelectroencefalogramadeUrsula,masnessemomentonãoestavaemcondiçõesdelidarcomoassunto;aindanãoabsorveraoimpactodasúltimaspalavrasdeVictor.

Rizzolisaiudasalade interrogatórioseaproximou-sedela,comumarcomprometido.

Desculpe, mas não podíamos deixá-la entrar. Compreende porquê,nãoéverdade?

Não,nãocompreendo.Mauraguardouotelefonenacarteirae itouRizzoli.Fuieuquelhoentreguei.Fuieuquelhedeiaresposta.

Eelecon irmoutudo.OcenáriodeBhopal.Você tinharazãoacercadospássarosmortos.

Masvocêmandou-mesairdasala.Comosenãoconfiasseemmim.Euestavaatentarprotegê-la.Dequê?Daverdade?Dofactodeeleseterservidodemim?Maura

soltouumagargalhadaamargaepreparou-separasair.Issojáeusabia.Maura dirigiu-se para oHospital St. Francis nomeio de um nevão,

comasmãoscalmase irmesnovolante.ARainhadosMortosiaacaminhoparareclamarmaisumsúbdito.Quandoentrounagaragem,estavaprontaa representar o papel que sempre desempenhara tão bem, pronta parausaraúnicamáscaraqueelapermitiaqueopúblicovisse.

SaiudoLexuscomocasacopretoaarrastarnochãoeatravessouagaragem em direcção ao elevador. As lâmpadas de sódio envolviam oscarros numa luz misteriosa, como se ela atravessasse uma névoaalaranjada. Como se, ao esfregar os olhos, a luz desaparecesse. Não viuninguémeouviuapenasoecodosseusprópriospassosnocimento.

Noátriodohospital,passoupelaárvoredeNatal,quecintilavacomlâmpadas de várias cores, e pela secretária das voluntárias, onde seencontrava uma mulher de idade com um capuz vermelho de Pai Natalelegantemente encarrapitado no cabelo grisalho. Dos altifalantes saía osomde"JoytotheWorld".

Até na UCI reinava a boa disposição característica da época, o quenãodeixavadeserirónico.Obalcãodasenfermeirasestavaenfeitadocomgrinaldas de pinheiro arti icial e a recepcionista usava pequenas bolasdouradasdeNatalpenduradasnasorelhas.

Sou a doutora Isles, do Instituto deMedicina Legal. disseMaura. OdoutorYuenestácá?

Eleacaboudeserchamadoparaumacirurgiadeemergência.PediuaodoutorSutcliffequeviessedesligaroventilador.

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Tiraramumafotocópiadoexameparaeuver?Estátudoprontoparasi.Arecepcionistaapontouparaumenvelope

grossoqueestavaemcimadobalcãoeondeselia"Médico-Legista",escritoàmão.

Obrigada.Maura abriu o envelope e tirou a fotocópia do grá ico do exame. A

triste acumulação de sintomas demonstrava que a irmãUrsula não tinhasalvação: os dois electroencefalogramas revelavamuma ausência total deactividade cerebral e, numa notamanuscrita, o neurocirurgião, Dr. Yuen,admitiaaderrota:

A paciente continua a não reagir à dor profunda e não respiraespontaneamente.Aspupilaspermanecememposição intermédiae ixas.A repetição do EEG não revela actividade cerebral. As enzimas cardíacascon irmamenfartedomiocárdio.ODr. Sutcliffedeverá informara famíliasobreoestadodapaciente.

Avaliação: Coma irreversível resultante de anoxia cerebralprolongadaapósparagemcardíacarecente.

Por último, Maura, veri icou os resultados das análises, colunasimpecavelmente impressas com as contagens de glóbulos e os valoresrelativos ao sangue e à urina. Era uma ironia, pensou ela, que alguémmorresse apesar de quase todas as análises ao sangue apresentaremresultadosnormais.

Mauradirigiu-separaoCompartimento10,onde lavavamadoentecom uma esponja pela última vez. Aos pés da cama, Maura viu aenfermeira a afastaros lençóis e adespir a camisa aUrsula, revelandoocorponãodeumaasceta,masdeumamulherquegostavadecomer,comseiosgenerososdescaídoseancasdescoradas,pesadasecheiasdecelulite.Emvida,deviaterumaspecto formidável,easua iguracorpulentadeviaseraindamaisimponentedevidoaohábitovolumoso.Agora,semohábito,era igual a qualquer outra doente. A morte não discriminava; no im,santosepecadoreseramtodosiguais.

A enfermeira torceu a esponja e passou-a pelo tórax da doente,deixando a pele lisa e brilhante. Em seguida, começou a lavar-lhe aspernas, dobrando-as pelos joelhos para limpar por baixo dos tornozelos.Nas canelas viam-se antigas cicatrizes resultantes de mordeduras deinsectos infectados. Recordações de uma vida passada no estrangeiro.Terminadaa sua tarefa, aenfermeirapegounabacia comáguae saiudocompartimento,deixandoMaurasozinhacomadoente.

Oquesabias,Ursula?Oquenospodiastercontado?

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DoutoraIsles?Mauravirou-seedeparoucomoDr.Sutcliffeatrásdela.Oolhardele

era muito mais circunspecto que da primeira vez em que se tinhamencontrado. Já não era o mesmo médico hippie simpático de rabo-de-cavalo.

Nãosabiaqueestavaaquidisseele.OdoutorYuenchamou-me.OnossoInstitutovaiassumiracustódia

docorpo.Porquê?A causa damorte é bastante evidente. Basta olhar para o

electrocardiograma.É apenas uma questão burocrática. Assumimos a custódia sempre

queháumcrimeenvolvido.Bem, creio que é um desperdício do dinheiro dos contribuintes,

nestecaso.MauraignorouocomentárioeolhouparaUrsula.Calculo que tenha falado com a família sobre a intenção de lhe

retiraroapoiovital.O sobrinho concordou. Estamos só à espera do padre. As irmãs do

conventopediramqueopadreBrophyestivessepresente.Maura observou o peito da doente a subir e a descer ao ritmo do

ventilador. O coração continuava a bater e os órgãos a funcionar. Sealguém retirasseum tubode sanguedeumaveiadeUrsula e o enviassepara o laboratório, nenhuma análise, nenhum daqueles aparelhossofisticadosrevelariaqueaalmadaquelamulherjáabandonaraocorpo.

Gostaria que me enviasse os felatórios inais da morte para oInstituto.

SeráodoutorYuenaditá-los.Dar-lhe-eiorecado.Etambémosúltimosrelatórioslaboratoriais.Tudoissojádeveestarnafichaclínica.Nãohavianenhumrelatóriodadespistagemtoxicológica.Oteste foi

feito,nãofoi?Deve ter sido. Vou con irmar junto do laboratório e digo-lhe os

resultadospelotelefone.Tem de ser o laboratório a enviá-los directamente paramim. Se o

testenãotiversidofeito,fá-lo-emosnamorgue.Fazem despistagens toxicológicas a toda a gente? perguntou ele,

abanandoacabeça.Maisumdesperdíciododinheirodoscontribuintes.Sóas fazemosquandohádeterminados indícios.Estouapensarna

urticáriaquevinanoiteemqueelasofreuoataquecardíaco.

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Vou pedir ao doutor Bristol que faça a despistagem toxicológicaquandoaautopsiar.

Julgueiqueeravocêquefaziaaautópsia.Não. Vou entregar este caso a um dos meus colegas. Se tiver

perguntasafazerdepoisdoNatal,falecomodoutorAbeBristol.Maura icoualiviadaporelenãolheterperguntadoporquemotivo

não era ela a fazer a autópsia. O que lhe teria respondido? O meu ex-marido é agora um dos suspeitos neste caso. Não posso permitir quealguémfaçaomínimoreparoquantoaumaeventualfalhadaminhaparte.

O padre está aqui. Creio que chegou a hora disse Sutcliffe. Mauravirou-seesentiu-secoraraoveropadreBrophyàporta.

Os olhares de ambos cruzaram-se com uma familiaridadeinstantânea; eram os olhares de duas pessoas que, naquelemomento detristeza, tinham reconhecido subitamente um lampejo especial entre si.Maurabaixouacabeçaquandoeleentrounocompartimentoeretirou-se,tal como Sutcliffe, para permitir que o padre administrasse a extrema-unção.

Pela janela do compartimento, viu o padre Brophy a debruçar-sesobreacamadeUrsula,arezareaabsolvera freiradosseuspecados.Eosmeus padre?, interrogou-se ela, contemplando o per il impressionantedosacerdote.Ficariaescandalizadosesoubesseoquepensoeoquesintoporsi?Absolver-me-iaeperdoariaasminhasfraquezas?

OpadreBrophyungiuatestadeUrsulae fezosinaldacruzcomamão.Depois,levantouacabeça.

ChegaraomomentodeUrsulamorrer.O padre saiu e icou junto de Maura, do lado de fora da janela.

Sutcliffeentrou,acompanhadoporumaenfermeira.O que aconteceu a seguir foi de uma naturalidade perturbante.

Apenasoestalidodealgunsinterruptores.Oventiladordeixoudeseouvireos foles imobilizaram-secomumzumbido.Aenfermeiravirou-separaomonitorquandooritmocardíacocomeçouaabrandar.

Maura sentiu o padre Brophy a mexer-se a seu lado, como que alembrar-lhe que ele estava ali, no caso de ela precisar de conforto. Noentanto, não era conforto que ele lhe inspirava, mas confusão. Atracção.Maura continuava a acompanhar o drama que se desenrolava do outroladodajanelaeapensar:sãosempreoshomenserrados.Porquemesintoatraídaporhomensquenãopossoounãodevoter?

Nomonitor, surgiu o primeiro batimento vacilante, e depois outro.Comfaltadeoxigénio,ocoraçãocontinuoualutar,emboraassuascélulas

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estivessem amorrer. Seguiram-se outros batimentos descontrolados, quedeterioraramosúltimosespasmosde ibrilaçãoventricular.Mauratevedereprimir o instinto de reagir, interiorizado por muitos anos de práticaclínica.Aquelaarritmianãoseriatratada;aquelecoraçãonãoseriasalvo.

Porfim,otraçadoficouresumidoaumalinharecta.Mauradeixou-se icar juntodocompartimento,aobservaroquese

passavadepoisdamortedeUrsula.Opessoalnãoperdeutempoachorarnema re lectir.ODr. SutcliffeencostouoestetoscópioaopeitodeUrsula,abanou a cabeça e saiu do compartimento. A enfermeira desligou omonitor,oscaboseostubosintravenosos.Aequipaderesgatedamorguejávinhaacaminho.

Mauraconcluíraasuatarefa.DeixouopadreBrophynocompartimentoeregressouaobalcãodas

enfermeiras.Há mais uma coisa que me esqueci de pedir disse ela à

recepcionista.Sim?Para os nossos icheiros, precisamos de um contacto do parente

mais próximo. O único número de telefone que vi na icha foi o doconvento.Creioqueelatemumsobrinho.Temonúmerodotelefonedele?

DoutoraIsles?Virou-seeviuopadreBrophyatrásdela,aabotoarocasaco.Desculpe, eu não queria intrometer-me,mas posso dar uma ajuda.

Temos todos os contactos de família das irmãs no escritório da nossaparóquia.Vouprocuraronúmeroetelefono-lhemaistarde.

Fico-lhemuitograta.Maura pegou na fotocópia da icha clínica e encaminhou-se para a

saída.Ah,doutoraIsles?Elaolhouparatrás.Sim?Seique talveznãosejaomomentomaisadequado,masgostariade

lhedesejarumFelizNataldisse,sorrindo.FelizNataltambémparasi,padre.Irávisitar-me,umdia?Sóparadizerolá?Vou tentar respondeu ela, ciente de que estava a mentir por

delicadeza. De que a coisamais sensata que tinha a fazer era afastar-sedestehomemenuncamaisolharparatrás.

Efoioquefez.Ao sair do hospital, a lufada de ar frio apanhou-a desprevenida.

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Encostoua ichaclínicaaocorpoepreparou-separaoembatecomoventogelado.Nessanoitesagrada,estavasozinhaeasuaúnicacompanhiaeraomaçodedocumentosque levavanamão.Atravessoua garagem, semvermaisninguém,eouviuosomdosseuspassosaecoarnocimento.

Estugouopasso.Parouduasvezesparaolharparatrásecon irmarque ninguém a seguia. Quando chegou ao carro, ia a arfar. Tenho vistodemasiadoamorteàminhafrente.Agorasinto-aemtodaaparte.

Entrounocarroetrancouasportas.FelizNatal,doutoraIsles.Colhesoquesemeiaseestanoitecolheste

solidão.Aosairdoparquedeestacionamentodohospital,tevedesemicerrar

os olhos para se proteger de dois faróis cuja luz se projectava no seuespelho retrovisor. Vinha um carro mesmo atrás dela. Seria o padreBrophy?Eparaonde iria elenavésperadeNatal?Para a sua residênciaparoquial?Ou icarianaigrejaaacompanhartodasasovelhassolitáriasdoseurebanhoquepudessemaparecerporlá?

Otelemóvelcomeçouatocar.Mauratirou-odacarteiraeabriu-o.DoutoraIsles.Olá, Maura disse o colega, Abe Bristol. Fiquei admirado quando

soubequemevaiobrigarasairdoHospitalSt.Francis.Nãopossofazerestaautópsia,Abe.Epassa-aparamimnavésperadeNatal.Quesimpatiaasua!Desculpe.Bemsabequenãocostumopassarabola.Estaéafreiradequemtenhoouvidofalar?É. Mas não há urgência nenhuma. A autópsia pode esperar até

depois do Natal. Ela tem estado hospitalizada desde o ataque e foi-lheretirado o apoio vital há pouco. Foi submetida a uma extensaneurocirurgia.

Então,oexameintracranianonãoserámuitoútil.Não,porqueháalteraçõespós-operatórias.Qualfoiacausadamorte?Entrou em coma ao princípio da manhã de ontem, devido a um

enfarte do miocárdio. Como conheço o caso, já tratei dos preliminares.Tenhoumafotocópiadafichaclínicaelevo-adepoisdeamanhã.

Possoperguntarporquenãofazestaautópsia?Nãocreioqueomeunomedevafigurarnorelatório.Porquê?Mauranãorespondeu.

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Maura,porqueestáaafastar-sedestecaso?Pormotivospessoais.Conheciaadoente?Não.Então,oquehá?Euconheçoumdossuspeitos.Fuicasadacomelerespondeuela.Desligou,atirouotelemóvelparacimadobancoeconcentrou-seno

caminhoparacasa.Noregressoàsegurança.Quando entrou na sua rua, estava a nevar, e os locos de neve

pareciam bolas de algodão. Era um espectáculo mágico, aquela espessacortinadebrancuraque iaatapetandoosespaçosrelvadosemfrentedascasas.Atranquilidadedeumanoitesagrada.

Mauraacendeua lareiraepreparouumarefeiçãosimples:sopadetomate e uma tosta de queijo. Encheu um copo de vinho da Califórnia elevou-o para a sala, onde as lâmpadas da árvore de Natal acendiam eapagavam. Mas nem conseguiu comer o pouco que tinha à sua frente.Afastouotabuleiroparaoladoebebeuovinhoatéàúltimagota,semtirarosolhosdalareira.DominouoimpulsodepegarnotelefoneetentarfalarcomVictor.TeriaeleapanhadootalaviãoparaSãoFrancisco?Nemsequersabiaondeeleestavanessanoite,nemoque lhediria.Traímo-nosumaooutro,pensouela;nãoháamorqueconsigasobreviveratalcoisa.

Mauralevantou-se,apagouasluzesefoiparaacama.

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VinteeUmHáquaseduashorasqueum tacho commolhoestavaao lume, eo

odordotomate,doalhoedacarneguisadasobrepunha-seaoaromamaissuave do peru de nove quilos que se encontrava agora, bem tostado ebrilhante, numa assadeira em cima da bancada. Jane estava sentada àmesadacozinhadamãe,ajuntarovosbatidosemanteiraderretidaaumataçacheiadebatatascozidasqueacabaradereduzirapuré.Emsuacasa,raramente tinha tempo para cozinhar, e as suas refeições eramconstituídas por aquilo que conseguia desenterrar do armário ou docongelador.Mas ali, na cozinha damãe, nada se fazia à pressa. Cozinharera um acto reverencial, uma homenagem à própria comida, por muitomodestos que fossem os ingredientes. Cada fase, cortar,mexer ou regar,fazia parte de um ritual solene que culminava com o cortejo de pratos aseremlevadosparaamesa,ondeeramrecebidoscomosdevidossuspirosde apreço. Na cozinha de Angela, tudo levava o tempo que fossenecessário.

EporissoéqueJanejuntavalentamenteafarinhaaopurédebatatae aos ovos batidos, misturando tudo com as mãos. Agradava-lhe otrabalhar ritmado da massa quente e aceitava serenamente que oprocesso não podia ser acelerado.Não aceitavamuitas coisas que faziamparte da sua vida. Gastava demasiada energia a tentar ser mais rápida,melhor,mais e iciente. Sabia-lhe bem, pelomenos uma vez, render-se àsexigênciasinflexíveisdapreparaçãodegnocchi.

Polvilhou a massa com mais farinha e continuou a tendê-la,concentrando-senasuatexturasedosa.Nasalaaolado,olocaldereuniãodos homens, a televisão estava sintonizada na ESPN no volume máximo.Mas aqui, protegida pela porta fechada da algazarra da multidão nosestádios e da tagarelice dos jornalistas desportivos, trabalhavaserenamente a massa, que, entretanto, já adquirira elasticidade. Só sedistraiuquandoumdosgémeosde Ireneentrouna cozinhaa cambalear,bateucomacabeçanamesaecomeçouachorar. Ireneentrouacorrerepegou-lheaocolo.

Angela, tem a certeza que não posso ajudá-la? perguntou Irene,aparentementeumpoucoansiosaporfugiraobarulhodasaladeestar.

Angela,queestavaafritarcannoli,respondeu:

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Nempensesnisso!Vaitomarcontadosteusmeninos.OMichaelpodeolharporeles.Nãoestáa fazernadaanãoserver

televisão.Não, vai sentar-te na sala e não te incomodes. Eu e a Janie temos

tudosobcontrolo.Setemmesmoacerteza...Sim,tenhoacerteza.Irenesuspirouesaiudacozinha,comacriançaaespernearaoseu

colo.Janecomeçouaestenderamassadognocchi.Sabe, mãe, ela queria mesmo vir para aqui ajudar-nos. Angela

retirouoscannolidouradoseestaladiçosdoóleoepô-losaescorrersobrepapeldecozinha.

Épreferívelelatomarcontadosmiúdos.Tenhotudoorganizado.Elanãosaberiaoquefazernestacozinha.

Pois.Comoeu?Angelavirou-separaela,comaescumadeiraaescorreróleo.Tusabes.Sóporqueamãemeensinou.Eissonãobasta?Eudeviater-teensinadomais?Bemsabequenãofoiissoqueeuquisdizer.Comoseuolhocrítico,Angelaobservoua ilha,quecortavaamassa

embocadinhosdedoiscentímetrosemeio.AchasqueamãedaIrenelheensinouafazergnocchiassim?Duvido.Elaéirlandesa.Angelariu-se.Maisumarazãoparanãoadeixarmosvirparaacozinha.Mamã! exclamou Frankie, entrando de rompante na cozinha. Tem

maisalgumacoisaquesecoma?Jane levantou a cabeça quando o irmão mais velho entrou, com a

arrogânciahabitual.Eraumfuzileirodosquatrocostados;osseusombrosempinadoseramtãolargoscomoofrigoríficoemquemetiaagoraonariz.

Nãopossoacreditarquejátenhascomidotudooquehavianaqueletabuleiro.

Não, os miúdos é que andam sempre a chafurdar na comida comaquelasmãosimundas.Eunãotenhocomidonada.

HámaisqueijoesalamenaprateleiradofundodisseAngela.Eunspimentosassados,naquelataçaemcimadabancada.Porquenãoarranjasoutrotabuleiro?

Frankietirouumalatadecervejadofrigoríficoeabriu-a.

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Nãomepodefazerisso,mamã?Nãoqueroperderaúltimapartedojogo.

Janie,arranjasumtabuleiroparaeles?Porque hei-de ser eu? Ele não está a fazer nada de útil lembrou

Jane.MasFrankiejátinhasaídodacozinhaeomaisprováveleraestarde

novosentadoemfrentedatelevisãoabeberasuacerveja.Jane aproximou-se do lava-louça para passar por água as mãos

enfarinhadas. A serenidade que ainda há pouco sentia dera lugar a umairritação que ela já conhecia. Cortou uns cubos de queijo mozzarellacremoso, umas fatias de salame inas como papel e dispô-los numtabuleiro. Juntouunspimentosassadoseumamão-cheiadeazeitonas. Secomessemmais,oshomensficariamsemapetiteparaoresto.

Céus, estou a pensar como a mamã! Porque diabo me hei-depreocuparseelesperderemoapetite?

Levouo tabuleiroparaa sala, ondeopai eosdois irmãosestavamsentados no sofá, embasbacados, a olhar para a televisão. Irene estavaajoelhada no chão, junto da árvore de Natal, a apanhar migalhas debolacha.

Peço muita desculpa disse Irene. O Dougie deixou cair isto nacarpeteeeunãoconseguiapanhar...

Janie! Podes sair da frente? Assim não consigo ver o jogo disseFrankie.

Jane pousou o tabuleiro de acepipes em cima da mesa baixa eretirouaquelequeestavacontaminadocomosmicróbiosdosmiúdos.

Alguémpodia ajudar a Irene a tomar conta daquelesmeninos. Porfim,Michaellevantouacabeça,deolharvidrado.

Oquê?Ah,pois...Janie,afasta-te!pediuFrankie.Sóquandoagradeceres.Porquê?Jane tirou-lhe da frente o tabuleiro de aperitivos que acabara de

pousaremcimadamesa.Estábem,estábem.Raios!Obrigado.Nãotensdequê.Jane voltou a pousar o tabuleiro, com força, e dirigiu-se para a

cozinha. Parou à porta e observou a cena que se desenrolava na sala deestar.DebaixodaárvoredeNatal,comaslâmpadasaacendereaapagar,havia ummonte de presentes, oferendas ao grande deus do excesso. Os

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três homens plantados diante do televisor empanturravam-se de salame.Os gémeos rodopiavam à volta da sala como dois piões. E a pobre Ireneprocurava esforçadamente migalhas de bolacha, enquanto algumasmadeixasdoseubelocabeloruivosesoltavamdorabo-de-cavalo.

Deusme livre! pensou Jane. Preferiamorrer do que ser apanhadanestepesadelo.

Fugiuparaacozinhaepousouotabuleiro.Ficoualiporinstantes,arespirar fundo e a afastar uma terrível sensação de claustrofobia.Consciente,aomesmotempo,dovolumeque lhecomprimiaabexiga.Nãopossodeixarqueistomeaconteça.NãopossosercomoaIrene,esgotadaeconstantementeassediadapormãozinhassujas.

Oquesepassa?perguntouAngela.Nada,mamã.Oquê?Apostoquesepassaalgumacoisa.Janesuspirou.OFrankielixa-meojuízo,percebe?Nãopodesusarumtermomaisagradável?Não, é exactamente o que ele me faz. Não vê o idiota que é? Sem

dizernada,Angelatirouosúltimoscannolidolumeepô-losaescorrer.SabiaqueeleandavaatrásdemimedoMikepela casa foracomo

aspirador?AdoravaassustaroMikeedizia-lhequeiasugá-loparadentrodotubo.OMikegritavacomoumpossesso.Masamãenuncaouvia,porqueoFrankiefaziasempreaquilonasuaausência.Nuncasoubecomoeleeramauparanós.

Angelasentou-seàmesaeolhouparaospedacinhosdemassaqueafilhatinhacortado.

Eusabiadisseela.Oquê?Eusabiaqueelepodiatersidomelhorparavocês.Podiatersidoum

irmãomelhor.Masdeixava-ofazertudooqueelequeria.Issoéquenosentristecia,

mamã. E ainda entristece o Mike. O Frankie foi sempre o seu ilhopreferido.

TunãocompreendesoFrankie.Janeriu-se.Compreendo-omuitobem.Senta-te, Janie.Anda.Vamosfazerosgnocchiasduas.Assimémais

rápido.Jane suspirou e sentou-se na cadeira em frente de Angela. Em

silêncio, ressentida, começouapolvilharos gnocchi com farinhae a fazerem cada um uma amolgadela com o dedo. Existiria uma marca mais

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pessoalqueumcozinheiropudessedeixardoqueasuaprópriaimpressãodigital, fruto de ummomento de irritação? Tens de dar um desconto aoFrankiedisseAngela.

Porquê?Elenãomedánenhum.Tunãosabesoqueeletempassado.Estoufartadeouvirfalarnosfuzileiros.Não, re iro-me ao tempo em que ele era bebé. Ao que aconteceu

quandoeleerabebé.Aconteceualgumacoisa?Aindahoje tenho arrepios quandome lembroque ele bateu coma

cabeçanochão.Oquê?Caiudoberço?Janeriu-se.IssopodeexplicaroQ.I.dele.Não,istonãotemgraçanenhuma.Foigrave...Muitograve.O teu pai estava fora da cidade e eu tive de levar o Frankie às

urgências.Elesfizeramradiografiasedescobriram-lheumafissura,mesmoaqui. Angela tocou na parte lateral da cabeça, deixando umamancha defarinhanocabelopreto.Nocrânio.

Eusempredissequeelenãoregulavabem.Garanto-tequeistonãotemgraçanenhuma,Janie.Eleiamorrendo.Eleédemasiadoruimparamorrer.Angelaolhouparaataçadafarinha.Eletinhaapenasquatromesesdisseela.Jane calou-se, enterrando o dedo na massa mole. Não conseguia

imaginarFrankieembebé.Nãoconseguiaimaginá-lodesamparadonemvulnerável.Osmédicostiveramderetirar-lhesanguedocérebro.Disseramque

haviaumahipótese...Angelacalou-se.Dequê?Deelenãoterumdesenvolvimentonormal.Veio-lhe automaticamente à cabeça um comentário sarcástico, mas

Janeconteve-se.Nãoeraocasiãoparasarcasmos.Angelanãoolhavaparaela,masparaasuaprópriamão,agarradaa

umbocadodemassa.Evitandooolhardafilha.Quatromesesdeidade,pensouJane.Háqualquercoisaerradaaqui.

Seeletinhaapenasquatromeses,aindanãogatinhava.Nãopodiatercaídodoberçonemdacadeira.Aúnicapossibilidadeeraterem-nodeixadocair.

Janeolhouparaamãecomumarmaiscompreensivo.Perguntouasi própria quantas vezes teria Angela acordado de noite, horrorizada,

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lembrando-se do momento em que perdera a força nas mãos e deixaracair o seu bebé. Frankie, o menino de ouro, quase morto pela mãedescuidada.

Janetocounobraçodamãe.Masacabouporcorrertudobem,nãoéverdade?Angela respirou fundo. De repente, recomeçou a polvilhar e a

beliscarmaisgnocchicomumarapideznuncavista.Mãe,detodosnós,oFrankieéomaisrijo.Não,nãoé.Angelapôsumgnocchinotabuleiroeolhouparaa ilha.

Tuéqueés.Pois,estábem.És, Janie. Quando nasceste, olhei para ti e pensei: com esta nunca

terei deme preocupar. Esta vai dar luta, seja em que circunstâncias for.Quanto aoMike, sei que talvez devesse tê-lo protegidomelhor. Não é tãobomadefender-se.

OMiketornou-seumavítima.Há-deagirsemprecomotal.Mastu,não.Angelaesboçouumsorrisoténueaoolharparaa ilha.

Quandotinhastrêsanos,vi-tecairebatercomacaranamesinhadasala.Fizesteumcorteaqui,porbaixodoqueixo.

Pois,aindatenhoacicatriz.Ocortefoitãoprofundoquetivestedelevarpontos.Acarpete icou

cheiadesangue.Esabesoquefizeste?Adivinhaoquefizeste.Fartei-medechorar,imagino.Não.Começasteabaternamesinha.Aosmurrosaela,assim!Angela

bateunamesa como punho fechado, levantandoumanuvemde farinha.Comoseestivesses furiosacomela.Nãocorresteparamim.Nãochorasteaoverosangue.Fizestefrenteàquiloquetetinhamagoado.Angelariu-seepassouamãopelosolhos,deixandoum traçobrancona face.Erasumameninamuitoestranha!Detodososmeus ilhos,fosteaqueladequemaismeorgulhei.JaneRizzolifitouamãe.

Nãosabia.Nãofaziaideia.Ah! Filhos! Vocês não imaginam o que os pais passam por vossa

causa.Esperaatéosteresevaisver.Sódepoiséquevaissabercomoé.Comoéoquê?OamorrespondeuAngela.Jane olhoupara asmãos estragadas damãe.De repente, sentiu os

olhosaardereumadornagarganta.Levantou-seeaproximou-sedolava-louça. Encheu um tacho com água para cozer os gnocchi. Esperou que aáguaaquecesse,pensando:talvezeunãosaibaverdadeiramentecomoéo

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amor. Porque sempre o tenho afastado, como afasto tudoo resto quemepossamagoar.

Deixouotachoaolumeesaiudacozinha.Lá em cima, no quarto dos pais, pegou no telefone. Sentou-se na

cama, com o auscultador namão, e tentou ganhar coragem para fazer otelefonema.

Faz!Tensdefazer!Começoualigar.Otelefonetocouquatrovezes,edepoiselaouviuagravação,brevee

trivial: "Daqui fala o Gabriel. Demomento não estou em casa. Por favor,deixeumamensagem."

Janeesperoupelosinalsonoroerespiroufundo.FalaaJanedisseela.Tenhoumacoisaparatedizerecreioqueesta

é a melhor maneira, pelo telefone. É melhor do que falar contigopessoalmente,porqueachoquenãoquerovera tua reacção.De repente,deu uma gargalhada. Céus, sinto-me mesmo estúpida, a cometer o erromais velho do mundo. Nunca mais farei troça de gente estúpida. O queaconteceuéque,bem...Estougrávida.Deoitosemanas, creio.Oque, casoestejas interessadoem saber, signi icaqueo ilho é teu, semdúvida.Nãoestouapedir-tenada.Nãoqueroquetesintasobrigadoafazersejaoquefordaquiloqueoshomensdevemfazer.Maspenseiquetinhasodireitodesaber, porque... Jane calou-se, com a voz embargada pelas lágrimas.Pigarreou.Porqueresolvificarcomobebé.

Edesligou.Durante algum tempo, não se mexeu. Ficou a olhar para as mãos,

apanhadanumturbilhãodeemoções.Alívio.Medo,Expectativa.Masnãoambiguidade...Eraumaopçãoemrelaçãoàqualnãotinha

dúvidas.Levantou-se, sentindo-se de súbito mais leve, aliviada do fardo da

incerteza.Eramtantasaspreocupações,asmudançasparaasquais tinhade se preparar,mas sentiu umanova levezano andar quandodesceu asescadaseregressouàcozinha.

Aáguadotachojáestavaaferver.Ovaporaqueceu-lheaface,comoumacaríciamaterna.

Juntou-lheduascolheresdechádeazeiteeemseguidadespejouognocchi no tacho. Já havia mais três tachos ao lume, cada um dos quaislibertava a sua própria fragrância. O perfume da cozinha da mãe. Janeinalou os odores, apreciando aquele lugar sagrado, onde a comida eraamor.

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Retirou do tacho as almofadinhas de batata à medida que elasvinhamàsuper ície,colocou-asnumatravessaeregou-ascomomolhodacarne. Abriu o forno e retirou os pratos que aqueciam lá dentro: batatasassadas, feijão verde, almôndegas emanicotti. Um cortejo de abundância,que ela e amãe levaram em triunfo para a sala de jantar. E por último,evidentemente,operu,quefoiocuparolugardehonra,nocentrodamesa,rodeado pelos seus primos italianos. A família não conseguiria comeraquilo tudo,mas issoéqueera importante:aabundânciadecomidaedeamor.

Jane sentou-seàmesa, em frentede Irene,quedavade comeraosgémeos. Apenas há uma hora, quando olhara para ela na sala, vira umajovem cansada, cuja vida já terminara, com a saia descaída pelos puxõesconstantesdasmãozinhasdos ilhos.Agora,olhavaparaamesmamulherevia uma Irene diferente, que se ria ao en iar uma colher de molho dearandonasboquinhasdosgémeosecujaexpressãoseenterneciaaobeijarumacabecinhacheiadecaracóis.

Vejoumamulherdiferenteporqueeuéquemudei,pensouela.NãofoiaIrene.

Depoisdojantar,ajudouamãeafazerocaféearechearoscannolicom creme de pasteleiro e deu consigo a ver a mãe com outros olhos,também. Reparou que ela tinha mais cabelos brancos e que a facecomeçava a ganharuma certa lacidez.Algumavez te arrependesdenoster dado à luz, mamã?, interrogou-se Jane. Alguma vez pensas quecometeste um erro? Ou estavas certa, como eu estou em relação a estebebé?

Janie!gritouFrankiedasaladeestar.Oteutelemóvelestáatocar.Podesatender?gritouela.Estamosaverojogo!Tenhoasmãoscheiasdecreme!Atendes?Frankieentrounacozinhaeatirou-lhepraticamenteotelefone.Éumgajoqualquer,OFrost?Não.Nãoseiquemé.Gabriel, foi o primeiro pensamento dela. Ele ouviu a minha

mensagem.Aproximou-sedolava-louçaepassouasmãosporágua,sempressa.

Quandoatendeuotelefone,conseguiurespondercomcalma.Está?DetectiveRizzoli?ÉopadreBrophy.

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De repente, toda a tensão acumulada se desvaneceu. Sentou-senuma cadeira. Percebeu que a mãe a observava e tentou eliminar adesilusãodasuavoz.

Sim,padre?Desculpeligar-lhenavésperadeNatal,masnãoconsigodescobriro

telefonedadoutora Islese...Aconteceuumacoisaqueeuacheiquedeviasaber.

Oqueé?Adoutora Islesqueriaocontactodoparentemaispróximoda irmã

Ursula e eu ofereci-me para o procurar. Mas parece que o arquivo danossa paróquia está um pouco desactualizado. Temos um número detelefoneantigodeumirmãoemDenver,masessetelefonefoidesligado.

AmadreMaryClementdisse-mequeoirmãomorreu.Eladisse-lhequea irmãUrsula tambémtemumsobrinhoquevive

noutroestado?Amadrenãomefaloudele.Parece que tem estado em contacto com os médicos. Foi o que as

enfermeirasmedisseram.Rizzoliolhouparaatravessadoscannolirecheados,quecomeçavam

aficarensopadoscomocreme.Aondequerchegarcomisso,padre?Euseiqueistopareceumpormenorinsigni icante,tentarencontrar

umsobrinhoquenãovêatiaháanos.Eseicomoédi ícil localizaralguémque não reside neste estado, quando nem sequer sabemos o primeironome. Mas a Igreja tem recursos de que nem a polícia dispõe. Um bomsacerdoteconheceoseurebanho,detective.

Conhece as famílias e os nomes dos ilhos. Telefonei ao padre daparóquia de Denver onde vivia o irmão da irmã Ursula. Ele lembra-semuitobemdohomem.Foielequecelebrouamissadecorpopresente.

Perguntou-lheseelatinhaoutrosparentes?Otalsobrinho?Perguntei.Eentão?Nãohánenhumsobrinho,detective.

VinteeDois

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Maurasonhoucompirasfunerárias.Estava na sombra, a ver as labaredas alaranjadas a lamber os

corposempilhadoscomolenha,averacarneaserconsumidanocalordofogo. Vultos masculinos rodeavam os cadáveres ardentes, um círculo deobservadores silenciosos cujo rosto ela não conseguia descortinar. Nemelesaviam,porqueelaestavanaescuridão,encolhida.

As faíscas saltavam da pira alimentada por combustível humano edesapareciam em espiral na negrura do céu. Iluminavam a noite edesvendavamumarealidadeaindamaisterrível:oscorposcontinuavamamexer-se.Membrosenegrecidosquesedebatiamnatorturadofogo.

Umdoshomensvirou-se lentamentepara tráseolhouparaMaura.Eraumrostoqueelareconheceu,umrostocujosolhoseramdesprovidosdealma.

Victor.Mauraacordounessemesmo instante, comocoraçãoaospulosea

camisadenoiteensopadaemsuor.Umarajadadeventofezabanaracasa,eouviu-seosomlúgubredasjanelasaestremecer,ogemidodasparedes.Ainda em pânico devido ao pesadelo, deixou-se icar imóvel, sentindo osuoraarrefecernapele.Forasóoventoqueaacordara?Pôs-seàescuta,e todos os estalidos da casa lhe pareciam passos. De um intruso, que seaproximava.

Derepente,oseucorporetesou-se,alertadoparaumsomdiferente.Um arranhar, que lembrava as garras de um animal a tentar entrar emcasa.

Maura olhou para o mostrador luminoso do relógio; faltava umquartoparaameia-noite.

Saiudacamaesentiuofriodoquarto.Àsapalpadelas,procurouumroupão,masnãoacendeualuz,parapreservaravisãonocturna.

Aproximou-seda janeladoquarto e veri icouque jánãonevava.Osolocobertodebrancoresplandeciaaoluar.

Outravez...Osomdequalquercoisaaroçarnaparede.Aproximou-seomaispossíveldovidroeviuumaespéciedesombraamexer-sejuntodaesquinadacasa.Seriaumanimal?

Saiu do quarto, descalça, e desceu o corredor, em direcção à sala.EncostadaàárvoredeNatal,espreitoupelajanela.

Iamorrendodesusto.Umhomemsubiaosdegrausdoseualpendre.Maura não conseguiu ver-lhe a cara, que estava escondida na

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sombra. Como se sentisse que estava a ser observado, o homemvirou-separaajanela,eelaviu-lheasilhueta.Osombroslargos,orabo-de-cavalo.

Afastou-se da janela e icou encostada aos ramos espinhosos daárvoredeNatal,tentandoperceberporqueestavaMatthewSutclifFeali,àsua porta. Porque viria ele àquela hora, sem telefonar primeiro? Mauraaindanãoselibertaratotalmentedomedocausadopelopesadelo,eaquelavisita adesorasdeixou-a inquieta.Pensouduasvezes sehaviadeabrir aportaaalguém...Mesmoaumhomemqueconheciadenomeedevista.

A campainha tocou. Ela estremeceu, derrubando uma lâmpada devidroqueseestilhaçounosoalho.

Láfora,asombraencaminhou-separaajanela.Maura não se mexeu, sem saber o que havia de fazer. Não vou

acenderaluz,pensou.Elevaidesistir,,edeixar-meempaz.Acampainhatocououtravez.Vai-teembora,pensou.Vai-teemboraetelefona-medemanhã.Suspirou de alívio ao ouvi-lo descer os degraus do alpendre.

Aproximou-se da janela e espreitou lá para fora, mas não o viu. Nemavistounenhumcarroestacionadoemfrentedacasa.Paraondeforaele?

Ouviupassos,oruídodebotasnaneve,adirigirem-separaoladodacasa.Quediaboandavaeleafazer?Acontornarapropriedadedela?

Eleestáatentararranjarumamaneiradeentraremcasa.Maura conseguiu sair de trás da árvore e conteveumgrito dedor

quandopisoualâmpadapartidaeumpedaçodevidroselheenterrounopédescalço.

De repente, um vulto apareceu numa janela lateral. Estava aespreitarláparadentro,paraasalaàsescuras.

Maurarefugiou-senocorredor,avançandosemfazerbarulho,comaplantadopéensanguentada.

Étempodechamaresapolícia.Ligaparao112.Mauravirou-seeentrounacozinha,acoxear,apalpandoaparede,à

procuradotelefone.Comapressa,derrubouoauscultador.Agarrouneleeencostou-oaoouvido.

Nãodavasinal.Otelefonedoquarto,pensouela.Estariadesligadodaficha?Desligouotelefonedacozinhaevoltouaocorredor,sentindoovidro

a enterrar-se cada vez mais na planta do pé, repisando o soalho jáensanguentado.Entroudenovonoquartoetentouorientar-senomeiodaescuridão.Sentiuacarpetedebaixodospésedeuumacaneladanacama.Deixou-se guiar pelo colchão e procurou chegar à cabeceira. Ao telefone

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queestavaemcimadamesa.Nãodavasinal.O terror atravessou-a como um vento gelado. Ele cortou a linha

telefónica.Mauralargouoauscultadore icouàescuta,ansiosaporouviroque

ele faria a seguir. O vento fazia ranger a casa, disfarçando todos os sonsexceptoobaterdoseuprópriocoração.

Ondeestáele?Ondeestáele?Depois,pensou:omeutelemóvel.Aproximou-se da cómoda, onde deixara a carteira. En iou amão lá

dentro, apalpando o conteúdo, à procura do telemóvel. Tirou as chaves,várias canetas e uma escova de cabelo. O telefone, onde está o malditotelefone?

Nocarro.Deixei-onobancodafrentedocarro.Asuacabeçaestalouaoouvirosomdeumvidroapartir-se.Teriavindodafrentedacasa,oudastraseiras?Paraondeiriaele?Maurasaiudoquarto, já semsentiradorprovocadapeloestilhaço

de vidro que cada vez se enterrava mais no seu pé. A porta para agaragem icava mesmo ao fundo do corredor. Abriu-a e entrou,precisamente no momento em que ouviu mais vidros a partir-se e aespalhar-senochão.

Fechouaporta.Recuouatéaocarro,ofegante.Oseucoraçãopareciaum cavalo a galope. Não faças barulho. Não faças barulho. Levantou opuxadordaportadocarro,devagar,eencolheu-sequandoouviuosomdafechaduraaseraccionada.Abriuaportaesentou-seaovolante.Soltouumgemido estrangulado de frustração ao lembrar-se que tinha deixado aschavesdocarronoquarto.Nãopodia ligaromotore ir-seembora.Olhouparaolugardopassageiroe,àluzdalâmpadadotecto,viuotelemóvel.

Obrigada,meuDeus,pensouela,eligouparao112.ServiçodeEmergência.Fala do 2130, Buckminster Road disse ela em surdina. "Estão a

arrombaraminhacasa!Poderepetiramorada?Nãoconsigoouvi-la.Falado2130,BuckminsterRoad!Umintruso...Maura calou-se, de olhar ixo na porta que dava acesso ao interior

dacasa.Porbaixodela,via-seumanesgadeluz.Eleestáládentro.Eleandaarevistaracasa.Maurasaiudocarrocomopôdeefechouaportasemfazerbarulho,

apagandoalâmpadadotecto.Ficoudenovoàsescuras.Oquadroeléctrico

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da casa estava apenas a uns metros, na parede da garagem, e Mauraponderou desligar todos os circuitos e cortar totalmente a energia. Destemodo icariaprotegidapelaescuridão.Maseleadivinhariaondeelaestavaedirigir-se-iaimediatamenteparaagaragem.

Deixa-teestarquieta,pensou.Talvezelejulguequeeunãoestouemcasa.Talvezelejulguequeacasaestávazia.

Depois,lembrou-sedosangue.Deixaraumrastodesangue.Ouviu os passos dele. Os sapatos a atravessarem o soalho de

madeira, à saída da cozinha, seguindo as pegadas ensanguentadas. Umasériedelasnocorredor,paraumladoeparaooutro.

Eleacabariaporirteràgaragem.Maura pensou no modo como morrera a Senhora dos Ratos,

lembrou-sedobrilhodosestilhaçosespalhadosnopeitodamorta.Pensouna destruição que uma bala Glaser com cartucho de cobre provocava nocorpo humano. O chumbo rebentava e trespassava os órgãos internos. Arupturadosvasossanguíneos,ahemorragiamaciçanacavidadetorácica.

Foge.Saidecasa.Edepois?Gritavapelosvizinhos?Batiaàsportas?Nemsequersabia

quaiseramosvizinhosqueestavamemcasanessanoite.Ospassosaproximaram-semais.Éagoraoununca.Mauracorreuparaaportalaterale,aoabri-la,sentiuumalufadade

ar frio. Precipitou-se para o quintal. Os pés descalços enterraram-se, atéaos tornozelos, nanevequeentrouemcascata, bloqueandoaombreira eimpedindo-adefecharaporta.

Deixou-a entreaberta, avançou para o portão e levantou o trincoemperrado pelo frio. Deixou cair o telemóvel ao tentar abrir o portão,empurrando-o contra a barreira de neve que se formara entretanto. Porim,conseguiuentreabri-loosu icienteparapassareentrouaostropeçõesnoquintalàfrentedacasa.

Todasascasasdasuaruaestavamàsescuras.Desatou a correr, sentindo a neve a queimar-lhe os pés descalços.

Tinha acabado de chegar ao passeio quando ouviu o seu perseguidortambémamexernoportão,atentarabri-lomais.

O passeio estava implacavelmente exposto; Maura contornou assebes,emdirecçãoaoquintaldeMr.Telushkin.Masaliosmontesdeneveeram ainda mais altos, davam-lhe quase pelos joelhos, e ela teve deavançar a custo. Sentia os pés dormentes e as pernas enregeladas. Ore lexo do luar na neve transformava-a num alvo fácil, num vulto negro

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quecontrastavacomum impiedosomardebrancura.Aoavançar, comaspernasatoladas,perguntouasiprópriasenaquelemomentoeleestariaaapontar-lheumaarma.

Enterrou-se num monte que lhe dava pelas coxas, caiu eexperimentou o sabor da neve. Ajoelhou-se e começou a rastejar,recusando-se a ceder. A aceitar a morte. Mesmo sem sentir as pernas,continuouaavançareaouvirpassosatrásdela.Sutcliffeestavadispostoamatá-la.

Derepente,fez-seluznomeiodaescuridão.Maura levantoua cabeçaeavistouuns faróis acesos.Eraumcarro

queseaproximava.Aminhaúnicaoportunidade.Com um soluço, Maura levantou-se de repente e desatou a correr

paraarua.Aagitarosbraços,agritar.Ocarroderrapouaopararmesmoemfrentedela.Ocondutorsaiu.

Erauma iguraaltaeimponente,quefoiaoseuencontronomeiodaquelabrancuraespectral.

Maurafixou-a.Lentamente,começouarecuar.EraopadreBrophy.Acalme-se.Estátudobemdisseeleemvozbaixa.Mauravirou-seeolhouparaacasa,masnãoviuninguém.Ondeestá

ele?Paraondefoi?Naquele momento aproximaram-se mais luzes. Pararam mais dois

carros.Mauraviuopirilampoazuldeumcarro-patrulhaelevantouamãodiantedosfaróis,tentandodistinguirosvultosqueavançavamparaela.

OuviuRizzoligritar:Doutora?Estábem?EutomocontadeladisseopadreBrophy.OndeestáoSutcliffe?Nãoovi.EmcasarespondeuMaura.Eleesteveemminhacasa.Meta-anoseucarro,padreordenouRizzoli.Enãoadeixe.Mauraaindanãosemexera.Pareciacoladaaochãoquandoopadre

Brophy se aproximou dela. O padre despiu o casaco e pôs-lho sobre osombros.Cingiu-acomobraçoeajudou-aaentrarnocarro.

Nãopercebo.Porqueestáaqui?perguntouelaemsurdina.Chiu!Vamosabrigá-ladestevento.O padre Brophy sentou-se ao lado dela. Quando o jacto de ar do

radiador lheatingiuos joelhosea cara,Mauraaconchegoumaisocasaco

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paraseaquecer,masosseusdentestremiamtantoqueelanemconseguiufalar.

Pelo pára-brisas avistou uns vultos em movimento na rua.Reconheceu a silhuetadeBarry Frost quando ele se aproximoudaportadafrentedoladodela.ViuRizzolieumagenteadirigirem-separaoportãolateraldacasa,dearmaapontada.

Virou-seeolhouparaopadreBrophy.Emboranãoconseguisseler-lheaexpressão,sentiuaintensidadedoseuolhar,quenada icavaadeveraocalordoseucasaco.

Comoéquesoube?perguntouelaemvozbaixa.Comonãoconseguitelefonar-lhe,contacteiadetectiveRizzoli.Elepegou-lhenamão, tomou-a entre as suas, umgestoquedeixou

Maura de lágrimas nos olhos. De repente, não conseguiu olhar para ele;olhou em frente, para a rua, e viu-a através de uma nuvem de coresquando ele encostou a mão dela aos seus lábios, num beijo terno eprolongado.

Afastouaslágrimas,earuarecuperouanitidez.Oqueviu,alarmou-a. Vultos a correr. A silhueta deRizzoli, iluminada pelos pirilampos azuis,que atravessava a estrada a correr. Frost, de arma em riste, agachadoatrásdocarro-patrulha.

Porquevêmelestodosnanossadirecção?Oquesabemelesquenósnãosabemos?

Tranquemasportas!disseela.Brophyolhouparaela,atrapalhado.Oquê?Tranquemasportas!Rizzoli gritava-lhesda rua.Eramgritosdeaviso.Eleestáaqui.Está

agachadoatrásdonossocarro.Maura virou-se para o lado, tacteando a porta à procura do botão,

frenéticaporquenãoconseguiadescobri-loàsescuras.AsombradeMatthewSutcliffeapareceudoladodeforadovidrodo

ladodela.Mauraencolheu-sequandoaportaseabriueoarfrioentrou.Saiadocarro,padre!ordenouSutcliffe.Opadreficouimóvel.Erespondeutranquilamente:Aschavesestãonaignição.Leveocarro,doutorSutcliffe.AMaurae

euvamossair.Não,sóvocê.Sósaioseelasairtambém.Caraças!Saiadocarro,padre!Mauratinhaocabeloarrepeladoeaarmaapontadaàtêmpora.Porfavor!Façaoqueelediz.Jápediuela,emvozbaixa.

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Estábem!respondeuBrophy,empânico.Eufaço!Eusaio...Opadreabriuaportaesaiu.SutcliffedisseaMaura:Passeparaovolante!A tremer, desajeitada, Maura passou por cima da alavanca das

mudançase sentou-seno lugardocondutor.Olhoude lado lápara foraeviuBrophyjuntodocarro,aolharparaelaesemsaberoquefazer.Rizzoligritava-lhequeseafastasse,maselepareciaparalisado.

Guie!disseSutcliffe.Mauraengrenouaprimeiraelevantouopédotravão.Carregoucom

opédescalçonoaceleradoredepoistirou-o.Vocênãomepodematardisseela.A lógicaDra. Isles recuperarao

autodomínio. Estamos cercados pela polícia. Você precisa de mim comorefém.Precisaqueeuconduzaestecarro.

Passaramalgunssegundos.Umaeternidade.Maura icousemfôlegoquandoeleafastouaarmadacabeçadelaelheencostouocano,comforça,àcoxa.

E você não precisa da perna esquerda para conduzir. Querconservarojoelho,ounão?

Mauraengoliuemseco.Quero.Então,vamos.Mauracarregounoacelerador.Ocarrocomeçouaavançarlentamenteepassoupelocarro-patrulha

juntodoqualFrostestavaagachado.Àfrentedelesvia-searuaàsescuras,desobstruída.Ocarrocontinuouaandar.

Desúbito,MauraviuopadreBrophypeloretrovisor,acorreratrásdeles, iluminado pelos lampejos azulados do pirilampo do carro-patrulha.Brophyagarrou-seàportadoladodeSutcliffeeabriu-a.Meteuobraçoládentro,agarrounobraçodeSutcliffeetentoupuxá-loparafora.

Odisparoprojectouopadreparatrás.Mauraabriuaportadoseuladoeatirou-sedocarroemandamento.Caiunopavimento gelado e viu uns clarões ao bater coma cabeça

nochão.Por instantes, não conseguiu mexer-se. Ficou ali no escuro,

entorpecidapelofrio,semsentirdornemmedo.Sentiaapenasoventoeoslocos de neve penugentos na face. Ouviu alguém a chamá-la muito aolonge.

Osomaumentoudeintensidade.Doutora?Doutora?

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Maura abriu os olhos e encolheu-se ao ver o foco da lanterna deRizzoli.Virouacabeçaparaoladoeavistouumcarroadezmetros,comopára-choquesenfeixadonumaárvore.Sutcliffe,deitadonochão,debarrigaparabaixo,tentavalevantar-se,comasmãosalgemadasatrásdascostas.

PadreBrophydisseMauraemvozbaixa.ondeestáopadreBrophy?Jáchamámosaambulância.Mauralevantou-sedevagareolhouparaofundodarua,ondeFrost

estavaagachadojuntodocorpodopadre.Não,pensou.Não.NãoselevanteporenquantodisseRizzoli,tentandoimobilizá-la.Mas Maura empurrou-a e levantou-se, com pouca irmeza nas

pernaseumnónagarganta.Mal sentiuogelodebaixodospésdescalçosaoaproximar-sedeBrophy,acambalear.

Frostlevantouacabeçaquandoelachegouaopédeles.Éumaferidanopeitodisseeleemvozbaixa.Ajoelhando-seaolado

dele,Mauraabriuacamisadopadreeviuosítioemqueabalaentraranocorpo. Ouviu o som terrível do ar a ser sugado para o peito. Encostou amãoàferidaesentiuosanguequenteeacarneviscosa.Brophytremiadefrio. O vento varria a rua, cortante. E eu aqui com o teu casaco vestido,pensouela.Ocasacoquemedesteparameaquecer.

Atravésdouivodovento,Mauraouviuasirenedaambulânciaqueseaproximava.

Brophytinhaoolharturvoeestavaquaseaperderossentidos.Fique comigo! Está a ouvir-me? A voz deMaura começou a falhar.

Vocêvaiviver!Maura debruçou-se, com as lágrimas a cair sobre o rosto dele, e

disse-lheaoouvido:Porfavor,façaissopormim!Temdeviver.Temdeviver...

VinteeTrêsNa sala de espera do hospital, a televisão estava sintonizada, como

sempre,naCNN.Maura estava sentada com o pé ligado apoiado numa cadeira e de

olhar ixo nas notícias que passavam na banda móvel do ecrã, mas sem

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conseguir registar uma única palavra. Apesar de já ter vestido umacamisola de lã e umas calças de bombazina, continuava com frio e nemacreditavaquepudessevoltarasentir-sequente.Quatrohoras,pensou.Háquatro horas que ele estava namesa de operações. Olhou para amão ereparou que ainda tinha o sangue de Daniel Brophy debaixo das unhas,ainda sentia o coração dele a pulsar, como um pássaro a debater-se napalmadasuamão.Nemprecisavadeverumaradiografiaparasaberquaisosestragosprovocadospelabala;viraopercursoletalqueumaGlaserdeponta azul descrevera no tórax da Senhora dos Ratos e sabia o que oscirurgiões enfrentavam nesse momento. Um pulmão dilacerado pelosestilhaços. O sangue a jorrar de doze pontos diferentes. O pânico que seapoderava dos membros da equipa na sala de operações quando viamumavidaaesvair-seemsangueeoscirurgiõesnãoconseguiamestancarahemorragiaatempo.

LevantouacabeçaquandoRizzolientrounasala,comumachávenadecaféeumtelemóvelnamão.

Encontrámos o seu telemóvel junto do portão lateral disse ela,entregando-oaMaura.Eocafééparasi.Beba-o.

Maura bebeu um gole. Estava demasiado doce, mas nessa noite oaçúcar soube-lhe bem. O seu corpo cansado e dorido recebia de boavontadequalquerfontedeenergia.

Posso fazer-lhe mais alguma coisa? Precisa de mais alguma coisa?perguntouRizzoli.

Preciso.respondeuMaura, levantandoacabeça.Queroquemedigaaverdade.

Eudigosempreaverdade,doutora.Bemsabe.Entãodiga-mequeoVictornãotevenadaavercomisto.Nãoteve.Temacertezaabsoluta?Tantoquantoépossível.Oseuex-maridopodeseromaiorpatifedo

mundo. Pode ter-lhe mentido. Mas tenho a certeza que ele não matouninguém.

Maura reclinou-se no sofá e suspirou. De olhar ixo na chávenafumegante,perguntou:

EMatthewSutcliffe?Émesmomédico?De facto, é. Licenciou-se na Universidade de Vermont. Fez o

internato em Boston. É interessante, doutora. Se o nosso nome éantecedidopor"senhordoutor",somosmuitoimportantes.Podemosentrarnumhospital,dizeraopessoalqueonossodoenteacaboudeseradmitido,

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e ninguém nos questiona. Emuitomenos quando um familiar do doentetelefonaeconfirmaanossahistória.

Ummédicoquetrabalhacomoassassinocontratado?Não sabemos se a Octagon o contratou. Aliás, estamos convencidos

de que a empresa não tem nada a ver com estes assassínios. O Sutcliffedevetertidoassuasprópriasrazões.

Querazões?Paraseproteger.Paraocultaraverdadesobreoqueaconteceuna

índia.AoveroarconfusodeMaura,Rizzoliacrescentou:A Octagon acabou por fornecer aquela lista do pessoal que

trabalhavanafábricadeles,naíndia.Ehaviaummédico.Eraele?Rizzolifezumsinalafirmativo.OsenhordoutorMatthewSutcliffe.Mauraolhouparaatelevisão,masoseupensamentonãoestavanas

imagens que se sucediam no ecrã. Pensava em piras funerárias, emcrâniosselvaticamentefracturados.Elembrou-sedoseupesadeloemqueo fogo consumia carne humana. Dos corpos, ainda a mexer, ainda acontorcer-senomeiodaslabaredas.

EmBhopalmorreramseismilpessoasdisse ela.Rizzoli reagiu comumacenodecabeça.

Mas na manhã seguinte, havia centenas de milhares que aindaestavamvivas.MauraolhouparaRizzoli.Onde icaramossobreviventesdeBara?NãoépossívelqueaSenhoradosRatostenhasidoaúnica.

Esenãofoi,oqueaconteceuaosoutros?Olharam uma para a outra. Ambas compreendiam agora o que

Sutcliffepretenderadesesperadamenteocultar.Nãooacidenteemsi,masas consequências. E o papel que desempenhara nele. Maura pensou noterrorqueeledevia tersentidonessanoite,depoisdeanuvemvenenosateratravessadoaaldeia.Famílias inteiras,mortasnassuascamas.Corposespalhados lá fora, imóveisnasuaagonia inal.Omédicoda fábricadeviatersidooprimeiroacomparecernolocalparaavaliarosestragos.

Talvez não se tivesse apercebido de que algumas vítimas aindaestavam vivas senão depois de tomada a decisão de incinerar oscadáveres. Talvez tivesse sido um gemido a alertá-lo, ou um espasmo,quandoarrastavamoscorposparaapira.

Como cheiro damorte e da carne queimada a elevar-se no ar, eledevia ter icadoempânicoaoolharparaosvivos.Mas,nessa fase, jánão

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erapossívelvoltaratrás;játinhamidolongedemais.Era isto que vocês não queriam que o mundo soubesse: o que

fizeramaosvivos.Porque é que ele a atacou esta noite? perguntou Rizzoli. Maura

abanouacabeça.Nãosei.Você viu-o no hospital. Falou com ele. O que se passou lá? Maura

pensounasuaconversacomSutclifFe.Tinham icadoaolharparaUrsulaea falar da autópsia. Das análises e dos relatórios. E das despistagenstoxicológicas.

Creio que saberemos a resposta quando izermos a autópsia disseela.

Oqueesperadescobrir?O motivo pelo qual Ursula sofreu uma paragem cardíaca. Você

estevelánessanoite.Edisse-mequeelaestavaempânico,antesdesofreroataque.Quepareciaaterrada.

Porqueeleestavalá.Mauraconcordou.Elasabiaoqueiaacontecerenãopodiafalarporquetinhaumtubo

en iadonagarganta.Jápresencieimuitosataquescardíacos.Seicomosão.Toda a gente a correr para a sala, uma grande confusão. Meia dúzia demedicamentos a serem administrados ao mesmo tempo. Maura hesitou.Ursulaeraalérgicaàpenicilina.

Issoaparecenadespistagemtoxicológica?Nãosei.Maseledeviaestarpreocupadocomisso,nãoacha?Eeufui

aúnicaainsistirnoteste.DetectiveRizzoli?Viraram-se ambas para trás e viram uma enfermeira da sala de

operaçõesàporta.O doutor Demetrios manda dizer que correu tudo bem. Estão a

fechá-lonestemomento.Daquiacercadeumahora,odoentedevepassarparaaUCIdoblocooperatório.

AdoutoraIslesgostariadevê-lo.Não poderá receber visitas tão depressa. Continua entubado e

sedado.Serápreferívelvoltarmaistarde.Talvezdepoisdoalmoço.Mauraconcordoucomasugestãoelevantou-se.Rizzolifezomesmo.Eulevo-aacasadisseela.O sol já tinhanascidoquandoMauraentrouemcasa.Olhouparao

rasto de sangue seco que deixara no chão, a prova da sua experiênciapenosa. Percorreu todas asdivisões, comoque a reclamá-las à escuridão.

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Para se certi icar de que aquela continuava a ser a sua casa, de que omedo não tinha lugar dentro daquelas paredes. Entrou na cozinha e viuquealguémjápregaraumastábuasnosítiodovidropartidoparaimpedirqueofrioentrasse.

PorordemdeJane,semdúvida.Algures,umtelefonecomeçouatocar.Maurapegounoauscultadordo telefonedeparede,masnãohavia

sinal.Alinhaaindanãotinhasidoreparada.Omeutelemóvel,pensou.Entrounasala,ondedeixaraacarteira.Quandopegounotelemóvel,

estejátinhadeixadodetocar.Digitouoseucódigoparaouviramensagem.AchamadaeradeVictor.Mauradeixou-secairnosofá,estupefacta

porouviravozdele."Sei que ainda é muito cedo para te telefonar. E talvez estejas a

pensarporquediabomehás-dedarouvidos,depoisde...Bem,depoisdetudooqueaconteceu.Masagoraestátudoesclarecido.Sabesquenãotivenadaaganharcomestecaso.Eporissotalvezacreditesemmimquandotedigo que sintomuito a tua falta,Maura. Acho que podíamos tentar outravez. Podíamos criar mais uma oportunidade. Dá-me outra oportunidade,estábem?Porfavor!"

Mauradeixou-se icarsentadanosofádurantealgumtempo,comotelefone nas mãos entorpecidas e a olhar para a lareira apagada. Nemtodasaschamassepodiamreacender,pensou.Erapreferívelquealgumaspermanecessemextintas.

Guardouo telemóvel na carteira, levantou-se e foi limpar o sanguequeestavanochão.

Porvoltadasdezhorasdamanhã,osol tinha inalmente irrompidoatravés das nuvens e, no caminho para casa, Rizzoli foi obrigada asemicerrarosolhosparaseprotegerdoseure lexonanevequeacabarade cair. As ruas estavam silenciosas e os passeios imaculadamentebrancos.NaquelamanhãdeNatal,sentia-serenovada.Libertadetodasasdúvidas.

Tocou na barriga e pensou: acho que só nos temos um ao outro,miúdo.

Estacionouocarroemfrentedoseuprédioesaiu.Parouali,aosoleaofrio,parainspirarumaboalufadadearpuro.

FelizNatal,Jane!Janeficouimóvel,comocoraçãoaospulos.Virou-selentamente.GabrielDeanestavaàportadoseuprédio.Janeviu-oaproximar-se,

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masnãoconseguiulembrar-sedenadaparalhedizer.Nopassado,tinhamsido tão íntimosumcomooutro comoumhomemeumamulherpodiamser,masagoraestavamali,caladoscomosefossemdoisestranhos.

JulgueiqueestavasemWashingtondisseelaporfim.Cheguei há cerca de uma hora. Apanhei o primeiro avião de

Columbia. Gabriel hesitou. Obrigada por me teres dito acrescentou eleserenamente.

Pois,estábem.Janeencolheuosombros.Eunãotinhaacertezaquequisessessaber.

Porquenãohaviadequerer?Porqueéumacomplicação.A vida é uma série de complicações. Temos de lidar com elas à

medidaquevãosurgindo.Que resposta tão banal! O homem de fato cinzento. Fora a sua

primeira impressão sobreGabrielquandoo conheceraeeraassimqueovia nesse momento, à sua frente, de sobretudo escuro. Tão calmo edistante!

Háquantotemposabias?perguntouele.Só há uns dias é que tive a certeza. Fiz um daqueles testes de

gravidezcaseiros.Masachoquejádesconfiavaháumassemanas.Porqueesperastetantotempoparamedizer?Eunãotencionavadizer-tenada,porquenãopensavaficarcomele.Porquê?Janeriu-se.Por uma razão. Não tenho jeito para lidar com crianças. Quando

alguém me entrega um bebé, não sei o que fazer com ele. Ponho-o aarrotaroumudo-lheafralda?Ecomohei-deirtrabalharsetiverumbebéemcasa?

Nãosabiaqueospolíciassecomprometiamanãoterfilhos.Mas é tão di ícil, sabes? Olho para as outras mães e não sei como

conseguem.Nãoseisesereicapaz.Janeexalouumanuvemesbranquiçadaeendireitou-se.Pelomenos,aminhafamíliavivecá.Tenhoacertezaqueaminha icaráencantadaportomarcontadobebé.Eháuminfantárioaquiperto.Hei-depassarporláparasaberapartirdequeidadeosaceitam.

Então,éisso.Tenstudoorganizado.Maisoumenos.Atéquemvaitomarcontadonossobebé.Onossobebé.Janeconteve-se,pensandonavidaquecresciadentro

desiequeeraumapartedopróprioGabriel.Aindaprecisodeacertaralgunspormenores.

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Elecontinuava impecável, aindaadesempenharopapeldohomemdefatocinzento.Mas,quandofalou,Janedetectouumacertairritaçãoqueasurpreendeu.

Eondeéqueeuentro?perguntouele.Fizeste todosessesplanosenão te lembraste de mim nem sequer uma vez. Não é que eu estejaadmirado.

Elaabanouacabeça.Porqueestástãoaborrecido?É sempre amesma coisa, Jane. Não conseguesmudar. Jane Rizzoli

toma as rédeas da sua própria vida. Totalmente segura dentro da suacarapaça.Queméqueprecisadeumhomem?Comosdiabos,tunão.

Oquequeresqueeudiga?Tensdefazerumaopção.Ejáfiz.Játedissequeficocomobebé.Jane começou a dirigir-se para a porta do prédio, avançando

impetuosamenteatravésdaneve.Eleagarrou-lhenobraço.Nãoestoua falardobebé.Estoua falardenós.Optapormim, Jane

disseele,baixinho.Janevirou-separaele.Oquequerissodizer?Querdizerquepodemosfazeristojuntos.Querdizerquemedeixas

furar a carapaça. Só assim é que isto pode resultar. Tu deixas que eu temagoeeeudeixoquetumemagoes.

Óptimo!Eficamososdoischeiosdecicatrizes.Ouacabamosporconfiarumnooutro.Malnosconhecemos.Conhecemo-nossuficientementebemparatermosfeitoumbebé.Jane sentiu-se corar e, de repente, não conseguiu olhar para ele.

Concentrou-senaneve.Não estou a dizer que vamos conseguir. Nem sequer sei ao certo

comoéqueistovaifuncionar,tuaquieeuemWashington.Gabrielhesitou.E,sejamoshonestos.Asvezes,Jane,sabessermuitomazinha.

Elariu-seeesfregouosolhos.Eusei.Céus,eusei.Masoutrasvezes...Gabrieltocou-lhenaface.Outrasvezes...Outrasvezes,pensouela,vês-mecomosou.Eissoassusta-me.Não,aterra-me.Talvezestesejaomaioractodecoragemdaminhavida.Porfim,levantouacabeçaeolhouparaele.Respiroufundo.

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Edisse:Achoqueteamo.

VinteeQuatroTrêsmesesmaistardeMaura sentou-se na segunda ila de bancos da Igreja de Santo

António, e o som do órgão despertou nela recordações da infância.Lembrou-se da missa de domingo na companhia dos pais e de como osbancos da igreja eramduros e impiedosos, quando alguémpassavameiahorasentadoneles.Nuncaestavaquieta, tentandosentir-seconfortável,eo pai sentava-a ao colo, o melhor poleiro de todos porque eraacompanhado de dois braços protectores. E dali ela observava os vitraisdas janelas e as imagens, que a amedrontavam. Joana d'Arc, amarrada àestaca.Jesuspregadonacruz.Ossantos,curvadosdiantedoscarrascos.Esangue,muitosangue,derramadoemnomedafé.

Nesse dia, a igreja não tinha um aspecto ameaçador. A música doórgão era alegre. Grinaldas de lores cor-de-rosa adornavam as naveslaterais.Maura viu crianças a balouçarem-se, satisfeitas, ao colo dos pais,crianças não afectadas pelas imagens de sofrimento estampadas nosvitrais.

Oórgãocomeçouatocara"OdeàAlegria",deBeethoven.Duasdamasdehonorenvergandofatoscinzento-clarocomeçarama

desceranavecentral.Maurareconheceu-as;eramduasagentesdaPolíciadeBoston.Nessedia,osbancosestavamrepletosdepolícias.Mauraolhoupara trás e viu Barry Frost e o detective Sleeper na ila a seguir à dela,ambosdescontraídosebem-dispostos.Quandoospolíciaseas famílias sereuniam na igreja, era quase sempre para chorar a morte de alguém.Nessedia,Mauraviusorrisosevestidosdecoresgarridas.

E, por im, apareceu Jane, pelo braço do pai. Por uma vez, o seucabelo escuro fora amansado e penteado com elegância. O fato de cetimbranco,comumcasacolargo,nãodisfarçavatotalmenteabarriga.

Ao aproximar-se do banco de Maura, os olhares de ambas

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cruzaram-se por instantes. Jane revirou os olhos, como que a perguntar:acreditaqueeuestouafazeristo?Depois,concentrou-senoaltar.

EmGabriel.Àsvezes,pensouMaura,asestrelasalinham-se,osdeusessorrieme

oamortemumaoportunidade.Apenasumaoportunidadeésóissoquesepodeesperar.Nãohágarantias,nãohácertezas.GabrielpegounamãodeJane.Emseguida,viraram-separaoaltar.Nessediaestavamunidos,masdecerto haveria outros dias em que trocariam palavras de cólera ou emqueosilênciofariagelaracasa.Diasemqueoamor icariaemsuspenso,comoumaaveavoarsócomumaasa.DiasemqueairascibilidadedeJanee a naturezamais fria de Gabriel os empurrariampara os seus próprioscantos,eemqueambosquestionariamasensatezdaquelaunião.

Edepoishaveriadiascomoaquele.Diasperfeitos.A tarde já ia adiantada quando Maura saiu da Igreja de Santo

António.Estavaumdiadesol,epelaprimeiravezelasentiucalornoar.Oprimeiro sussurrodaPrimavera. Conduziu coma janela aberta, deixandoentrar os aromas da cidade. Não ia para casa, mas para o bairro deJamaicaPlain.ParaaigrejadaparóquiadeNossaSenhoradaLuzDivina.

Transpôs aportamaciça e entrounumaatmosferadepenumbra ede silêncio. As janelas de vitral captavam os últimos raios de sol. Viuapenasduasmulheres,sentadasumaaoladodaoutranobancodafrente,comacabeçainclinada,arezar.

Maura dirigiu-se para o nicho. Ali acendeu três velas por trêsmulheres. Umapela irmãUrsula. Umapela irmãCamille. E umapor umaleprosa sem rosto, cujo nomenunca viria a saber.Não acreditava no céunemno inferno; nem sequer sabia se acreditavana alma eterna.Mas ali,naquele local de culto, acendeu três velas e sentiu-se confortada, porqueacreditava na força da lembrança. Só os esquecidos morriamverdadeiramente.

SaiudonichoereparouqueopadreBrophyestavanessemomentojunto das duas mulheres, dirigindo-lhes palavras de consolo. Levantou acabeça.Eosolharesdeamboscruzaram-se,enquantoosderradeirosraiosdesolatravessavamasjanelaseprojectavamtonalidadesdemuitascores.Porinstantes,ambosesqueceramondeestavam.Quemeram.

Mauraergueuamão,numgestodedespedida.Saiudaigrejaeregressouaoseumundo.

FIM